Opinião

Insubmissão das PPPs aos limites impostos à subdelegação pela LNSB

Autor

  • Fernando Vernalha Guimarães

    é doutor e mestre em Direito pela UFPR ex-visiting scholar na Columbia University School of Law (EUA) professor de Direito Administrativo convidado de instituições diversas e advogado.

16 de fevereiro de 2023, 16h16

Com a edição da Lei 14.026/2020, introduziu-se na Lei 14.445/2007 (aqui chamada de Lei Nacional de Saneamento Básico ou LNSB) o artigo 11-A, que cuida de autorizar a celebração de parcerias público-privadas e de subdelegações no âmbito da prestação de serviços de saneamento por meio de contrato, impondo limites a estas últimas. As normas deste artigo têm ensejado interpretações divergentes no tocante à extensão dos limites estabelecidos às PPPs. A elucidação da questão vem ganhando relevância no atual contexto, uma vez que as parcerias público-privadas têm sido uma ferramenta importante para que as companhias estaduais que exploram a operação do serviço de saneamento possam atrair investimentos privados para a implementação das metas de universalização trazidas com a nova legislação.

A prevalecer interpretação pela submissão destes contratos àqueles limites, a utilização das PPPs para esse fim estará praticamente inviabilizada em muitos casos, o que poderá prejudicar o avanço da agenda da universalização do saneamento.

No meu entendimento, tais limites constantes da regra do caput do artigo 11-A da LNSB são inaplicáveis às hipóteses de parcerias público-privadas, como pretendo demonstrar adiante [1].

Retome-se que o artigo 11-A da LNSB traz algumas regras voltadas a disciplinar a hipótese de subdelegação dos serviços de saneamento básico prestado por meio de contrato. Dentre elas está a norma do caput, que, ao autorizar a subdelegação, a limita a 25% do valor do contrato originário. Em seus termos, "na hipótese de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por meio de contrato, o prestador de serviços poderá, além de realizar licitação e contratação de parceria público-privada, (…), desde que haja previsão contratual ou autorização expressa do titular dos serviços, subdelegar o objeto contratado, observado, para a referida subdelegação, o limite de 25% (vinte e cinco por cento) do valor do contrato".

Já o Decreto 10.710/2021 admitiu, conforme a norma do artigo 2º, III, que a subdelegação possa se dar na forma de parceria público-privada, para os fins do disposto no § 4º do artigo 7º do regulamento — e, por extensão, do disposto no caput do artigo 11-A da lei 11.445/2007.

No exercício de interpretação combinada das normas dos artigos 2º, III, e 7º, § 4º, do regulamento, à luz da norma do caput do artigo 11-A, tem sido cogitadas três possibilidades hermenêuticas, ainda que apenas uma se revele conforme ao direito. A primeira importaria em submeter toda e qualquer parceria público-privada (contendo ou não subdelegação) ao limite do caput do artigo 11-A (e do artigo 1º, § 4º, do regulamento). A segunda linha de interpretação significaria restringir a incidência daquele limite apenas às parcerias público-privadas que pressupusessem "subdelegação", conforme a conceituação dada pelo próprio regulamento. Já a terceira importaria o reconhecimento da invalidade da norma do Decreto, na parte que admite que as subdelegações, para esses fins, possam se dar (também) na forma de parceria público-privada.

Tenho para mim que a terceira alternativa hermenêutica é a que deve prevalecer na aplicação das normas regulamentares, pois que resulta de sua interpretação conforme a norma do artigo 11-A da Lei 11.445/2007.

A primeira possibilidade hermenêutica cogitada é induvidosamente descabida. Em primeiro lugar, porque traduz interpretação que não se afigura compatível com a redação do dispositivo regulamentar. Isto é: a mera interpretação gramatical da norma já conduz a conclusão diversa. Em segundo lugar, porque os contratos de parceria público-privada não pressupõem em todos os casos a delegação de um serviço público. Assim se passa com como as concessões administrativas para a prestação de serviço tomado diretamente pela administração pública, como explicado adiante.

Lembre-se que a norma do inciso III do artigo 2º define como contrato de subdelegação o "contrato por meio do qual o prestador subdelega a execução de obrigações que detém perante o titular, na forma de subconcessão, parceria público-privada ou outra modalidade legalmente admitida". Ao que se nota, a norma regulamentar não define a parceria público-privada como um contrato de subdelegação, nem equipara as figuras para o fim de submeter aquela aos limites impostos a esta pela norma do artigo 11-A da Lei 11.445/2007. O que a norma admite é que a subdelegação possa também se dar na forma da parceria público-privada, assim como de outras modalidades contratuais. Isso ocorrerá, segundo os termos da norma, quando o ajuste de parceria público-privada importar na subdelegação "da execução de obrigações que detém perante o titular". Ou seja: o regulamento pressupõe a existência de parcerias público-privadas com delegação; mas não que toda e qualquer parceria público-privada contenha delegação.

E sequer faria sentido que o decreto pretendesse equiparar as figuras para o fim de estender às parcerias público-privadas os limites impostos às subdelegações. Isso porque, como dito, os contratos de parceria público-privada não contêm em todos os casos a delegação da prestação do serviço. As concessões administrativas são modalidades contratuais que podem ter por objeto a prestação de serviços diretamente à administração, que se põe na qualidade de usuária direta do serviço. Nestes casos, não ocorrerá a delegação — ou a subdelegação — da prestação do serviço ao parceiro privado.

Em minha obra Parceria Público-Privada, já adverti acerca da necessidade de se distinguir concessões administrativas com ou sem delegação da prestação do serviço, o que se extrai "da qualidade de usuária direta ou indireta da Administração". Em se tratando de "concessão administrativa de serviços tomados diretamente pela administração (sem delegação de gestão), põemse na condição de sujeitos apenas a Administração e o parceiro privado. Terseá, aqui, uma estruturação subjetiva equivalente àquela dos contratos administrativos gerais ordinários. Será um vínculo bilateral, com efeitos que alcançam apenas as partes contratuais (e a terceiros a que a Lei deferiu direitos subjetivos em face daqueles sujeitos, como o agentefinanciador)" [2].

Isto é: nos ajustes de concessão administrativa que pressupuserem a prestação de um serviço diretamente à administração (e não ao usuário), não haverá a transferência ao parceiro privado do direito de explorar o serviço em face dos usuários. Nestes casos, não caberá ao parceiro privado (por exemplo) exercer o direito da cobrança tarifária, mantendo uma relação jurídico-contratual diretamente com o usuário. Isso porque o serviço será prestado à administração e não ao usuário.

Esta circunstância importa a ausência de (sub)delegação. Tal como já afirmei em outra local, "a delegação da gestão importará fixar a responsabilidade do concessionário-delegatário em face dos usuários, que titulariza (o concessionário) posição jurídica própria (pois assume a gestão do serviço por sua conta e risco), exercendo o serviço público em nome próprio. Daí que a delegação envolve a transferência de atribuições de controle (gerencial) sobre a operação econômica do serviço público, situação que atrai ao concessionário a responsabilização pela prestação da atividade em face do usuário" [3].

Insista-se que a delegação da prestação do serviço faz nascer uma relação jurídica diretamente entre o parceiro privado e o usuário do serviço. Por meio da delegação, o concessionário adquire posição jurídica própria perante os usuários. Tal não ocorre nos casos em que a concessão administrativa pressupuser a prestação do serviço diretamente à administração, em que o parceiro privado atua exclusivamente no interesse e em face do parceiro público. Assim considerada, a concessão administrativa de serviço ao Estado dará ensejo a uma relação jurídico-contratual equivalente àquela que se estabelece no âmbito dos contratos de terceirização [4].

A existência ou não de delegação, ou a qualidade da administração de usuária direta ou indireta do serviço — para usar as expressões constantes do artigo 2º, § 2º, da Lei 11.079/2004 —, dependerá da configuração do ajuste nos casos concretos. Nada impedirá que serviços relacionados ao esgotamento sanitário ou mesmo ao abastecimento de água sejam objeto de um contrato de concessão administrativa sem que se promova a delegação de sua prestação ou gestão [5]. Tal ocorrerá caso esses serviços não sejam prestados diretamente aos usuários, mas à própria administração. Se esta mantiver o vínculo de prestação do serviço público com os usuários, não se há de falar em sua delegação ao parceiro privado — ou em subdelegação, na hipótese de o parceiro público ser o delegatário do direito de exploração do serviço.

Logo, é descabido reputar que a norma regulamentar estaria equiparando as parcerias público-privadas que não contêm subdelegação às hipóteses de subdelegação.

Já a segunda possibilidade hermenêutica cogitada acima, embora extraia da norma regulamentar um sentido compatível com seus termos e, ainda, com o conteúdo jurídico das parcerias público-privadas, sustentando que aquele limite aplicar-se-ia restritamente às parcerias público-privadas que contenham sub-delegação (ou sub-delegação com sub-rogação), ainda assim não parece se conciliar com a norma do caput do artigo 11-A da Lei 11.445/2007. A interpretação da regra legal, por vários ângulos distintos, conduz ao acolhimento da terceira possibilidade hermenêutica referida.

Trata-se de afirmar que a norma do artigo 2º. III, do Decreto 10.710/2021 não poderia presumir a submissão das parcerias público-privadas ao aludido limite de 25% do valor original do contrato, aplicável exclusivamente às subdelegações. Apesar de os dispositivos do referido artigo 11-A revelarem uma técnica legislativa sofrível, com diversas imprecisões redacionais, essa parece ser a conclusão a que se chega a partir do processo de interpretação da norma.

Iniciando-se pela sua interpretação gramatical, parece-me inexistir dúvida que a intenção do legislador foi preservar as contratações de parceria público-privada da incidência do referido limite de 25%. Isso se evidencia pelo emprego da locução "além de", inserida na primeira parte da redação do dispositivo, denotando que o ato de subdelegar é algo inconfundível com a celebração do contrato de parceria público-privada. Além disso, já na segunda parte da redação do dispositivo, dispõe-se que o limite de 25% é de observância "para a referida subdelegação". A composição sintática do texto da norma não deixa qualquer dúvida quanto à reserva da dita limitação apenas à hipótese da subdelegação.

Três conclusões, portanto, são extraídas da interpretação gramatical da norma: (1) o prestador do serviço poderá celebrar parcerias público-privadas e subdelegações; (2) parceria público-privada e subdelegação são hipóteses inconfundíveis; (3) apenas a hipótese de subdelegação está sujeita à observância do limite de 25% do valor do contrato.

Essas conclusões não são desmerecidas pela interpretação sistemática da norma, tomando-se em consideração o conjunto das regras que compõem o artigo 11-A. É verdade que a norma do § 4º, a despeito de sua redação confusa, parece sugerir, contraditoriamente, que as parcerias público-privadas estariam também submetidas ao limite estabelecido no caput. Diz o dispositivo: "os Municípios com estudos para concessões ou parcerias público-privadas em curso, pertencentes a uma região metropolitana, podem dar seguimento ao processo e efetivar a contratação respectiva, mesmo se ultrapassado o limite previsto no caput deste artigo, desde que tenham o contrato assinado em até 1 (um) ano". Mas esta norma sequer parece tratar da mesma hipótese da norma do caput, que é a prestação do serviço público por meio de contrato. O comando da norma do § 4º está endereçado aos municípios e não aos prestadores que atuam por meio de delegação ou de contrato. Os municípios, como é evidente, não prestam o serviço público mediante contrato, mas na condição de titulares do serviço de saneamento local. Nesta qualidade, constituem o poder concedente originário do serviço. Não parece fazer qualquer sentido, portanto, a alusão da redação do dispositivo ao limite estabelecido na norma do caput.

Daí que a ausência de equivalência entre as hipóteses reguladas torna o conteúdo da regra do § 4º indiferente à interpretação da norma do caput. Aliás, a incompatibilidade da hipótese de delegação originária do serviço pelos titulares, pressuposta pela primeira parte da redação da norma, com a restrição à celebração de subdelegação, referida na sua segunda parte, por remissão à norma do caput, a torna imprestável para quaisquer fins hermenêuticos. Há um defeito intrínseco à regra que impede que dela se extraia qualquer interpretação racional.

Note-se também que a diferenciação entre parceria e público-privada e subdelegação é acolhida ainda pelas normas do artigo 18 (caput e parágrafo único) da Lei 14.026/202.

Por isso, parece-me que a regra do caput do artigo 11-A da LNSB preserva as parcerias público-privadas da incidência do referido limite de 25% aplicável às hipóteses de subdelegação. Não vejo, então, como possa a norma regulamentar (artigo 2º, III, do Decreto 10.710/2021) equiparar aquilo que a norma legal (caput do art. 11-A da Lei 11.445/2007) explicitamente distinguiu, com vistas a submeter às parcerias público-privadas a restrição imposta por esta exclusivamente às subdelegações.

Trata-se de equiparação, a meu ver, ilegal e que importa o tolhimento do direito dos prestadores em dispor da via da parceria público-privada como técnica de contratação, com vistas a promover novos investimentos e ampliar eficiência na operação do serviço, buscando o atingimento das metas impostas pela legislação. Afinal, não se duvida que as parcerias público-privadas podem ser um instrumento relevante para isso.

Além disso, em atenção a regra fundamental de hermenêutica aplicável a normas restritivas de direito, não seria possível interpretar-se extensivamente a restrição contida na norma legal do artigo 11-A da Lei 11.445/2007. Dado que a limitação de 25% do valor do contrato foi imposta pela norma do caput apenas às hipóteses de subdelegação, não cabe ao interprete, por meio de interpretação ampliativa, entende-la aplicável também às parcerias público-privadas. Trata-se aqui de homenagear a clássica regra de interpretação segundo a qual normas de restrição a direitos apenas podem ser interpretadas restritivamente.

Não se argumente também que essa interpretação importaria tratar desigualmente objetos equivalentes, uma vez que as parcerias público-privadas podem conter delegação/sub-rogação, e, nestas específicas hipóteses, estariam compreendidas no conceito de subdelegação. O fato de a parceria público-privada conter (em certos casos) delegação da prestação do serviço – e, neste sentido, ser considerada um contrato de subdelegação – não impede que possa ter um tratamento normativo distinto de outras hipóteses de subdelegação. Isto é: ainda que se admita que a parceria público-privada possa importar em subdelegação, seus característicos próprios podem fundamentar tratamento singularizado de outras hipóteses para os fins daquela limitação. E essa foi a vontade da lei, retratada numa redação que nitidamente segregou as parcerias público-privadas, com ou sem delegação da prestação do serviço, do tratamento das (demais) hipóteses de subdelegação.

Não vejo, por isso, no tratamento singularizado das parcerias público-privadas no tocante à incidência do referido limite de 25%, qualquer prejuízo à coerência sistêmica da disciplina legal. Entendo que se deva extrair da regra do artigo 2º, III, do Decreto 10.710/2021 interpretação conforme a norma do caput do artigo 11-A da LNSB, excluindo-se as parcerias público-privada do conceito de subdelegação, para os fins da aplicação da regra do seu artigo 7º, § 4º.

 


[1] O tema já mereceu abordagem no artigo de minha autoria intitulado ”Apontamentos sobre o Decreto n. 10.710/2021 e a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização” In "O Novo Direito do Saneamento Básico". Coord. Fernando Vernalha Guimarães. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 167 a 192. O presente reproduz uma série de conclusões veiculadas no referido artigo.

[2] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Parceria Público-Privada, 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 179. Talvez se possa dizer que arranjos desta espécie não se configuram como verdadeiros contratos de delegação, mas como contratos de colaboração.

[3] GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público, 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 68.

[4] Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld, "a concessão administrativa de serviços ao Estado é a que tem por objeto os mesmos serviços a que se refere o art. 6º da Lei de Licitações, isto é: o oferecimento de utilidades à própria Administração, que será havida como usuária direta dos serviços e versará a correspondente remuneração. Quanto a estes aspectos a concessão administrativa de serviços ao Estado aproxima-se do contrato administrativos regidos pela Lei de Licitações". "Guia Jurídico das Parcerias Público-Privadas", In: Parcerias Público-Privadas (coord. Carlos Ari Sundfeld), 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 32.

[5] No contexto da prestação dos serviços de saneamento, por exemplo, tem sido comum a celebração de concessões administrativas por companhias estaduais, cujo objeto é constituído por prestações e serviços diversos relacionados ao esgotamento sanitário, sem que haja a transferência da sua posição jurídica de delegatária da prestação. Este conjunto de serviços e atividades é prestado pelo parceiro privado diretamente à companhia estadual, mantendo esta posição jurídica própria perante os usuários e o poder concedente. Concessões administrativas desta natureza não importam na transferência da atividade-fim do serviço público, assemelhando-se, neste aspecto, a contratos administrativos ordinários de prestação de serviços.

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