Opinião

Juízes garantistas e a pauta da igualdade

Autor

  • Ana Cláudia Pinho

    é doutora em Direito professora da UFPA (Universidade Federal do Pará) promotora de Justiça do MP-PA coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do MP-PA e coordenadora do grupo de pesquisa "Garantismo em Movimento".

15 de fevereiro de 2023, 12h17

Há um senso comum (não de todo equivocado) no sentido de que um juiz garantista possui atributos para atuar, preferencialmente, em matérias criminais. O equívoco é, parcialmente, justificado. Explico.

O Garantismo de Luigi Ferrajoli — como já destaquei em artigos anteriores — chega aqui no Brasil como "Garantismo Penal", já que vem por meio da tradução de seu Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale (1989), publicada pela editora Revista dos Tribunais, em sua primeira edição, no ano de 2002. Importa registrar que, antes de Direito e Razão, o autor italiano já havia publicado um sem número de textos, artigos e reflexões sobre Teoria do Direito e Política, em livros e revistas especializadas, mas sem tradução para o português. Isto é, Ferrajoli chega ao Brasil tomado por um autor do campo penal, coisa que jamais foi (ele é um grande filósofo do Direito), muito embora domine, de forma impressionante, os fundamentos do Direito e do Processo Penal, o que o credenciou a formular a teoria do Garantismo Penal.

Mas, o que poucos sabem é que o Garantismo de Luigi Ferrajoli não se esgota na teoria do Garantismo Penal. Aliás, na quinta e última parte do Diritto e Ragione, intitulada "per una teoria generale del garantismo", o maestro deixa claro que as formulações propostas nas seções anteriores do livro, em relação ao modelo do Garantismo Penal (liberal), podem ser alargadas para outros campos do ordenamento jurídico, a partir da compreensão de três acepções genéricas do termo "Garantismo": i) como modelo normativo de Direito; ii) como teoria jurídica e iii) como uma filosofia política[1].

E, de fato, essa formatação bem mais ampla do Garantismo Jurídico vem, alguns anos depois, na forma do capolavoro do professor Ferrajoli, que é o seu Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia, em três volumes. Aqui Ferrajoli trabalha, com uma profundidade inigualável, fundamentos da democracia e da teoria do direito, a partir do método axiomático, deixando bastante clara a sua preocupação com os rumos e o futuro da democracia constitucional, bem como do sistema de garantia de direitos, não somente em nível local, mas, sobretudo, global.

Podemos, assim — após conhecer um pouco mais da obra de Ferrajoli — falar em cinco dimensões do Garantismo: i) penal (liberal), ii) civil, iii) patrimonial, iv) social e v) internacional[2]. De modo geral, aqui no Brasil, as discussões sobre o Garantismo ainda se limitam ao campo penal. Insisto, porém, em algo fundamental: a importância da teoria do Garantismo Penal é indiscutível! (oxalá a conhecêssemos a fundo e corretamente). Todavia, se queremos falar (como é a pretensão deste breve artigo) em uma dimensão mais alargada da teoria cunhada pelo mestre italiano, a fim de situar a questão da igualdade e correlacioná-la com o modelo de juiz garantista, precisaremos ampliar o foco e fazer alguns necessários recortes críticos.

Onze anos depois do Principia Iuris, em 2018, Luigi Ferrajoli publica o sensacional Manifesto per l'uguaglianza (Manifesto pela igualdade), no qual se dedica a demonstrar a imprescindibilidade de se compreender o significado complexo e de múltiplos valores pragmáticos do princípio da igualdade. Para isso, parte do que ele chama de domanda di fondo: por quê, por quais razões, a igualdade? Por quais razões o princípio da igualdade é tutelado em todos os ordenamentos jurídicos avançados, como norma de categoria constitucional e fundamento de seu caráter democrático[3]?

"A igualdade é estipulada porque somos diferentes (entendida a diferença aqui como a diversidade de identidades pessoais) e porque somos desiguais (entendida a desigualdade aqui como diversidade nas condições materiais de vida)." Com essa resposta apriorística, Ferrajoli abre seu universo de análise, passando por todos os temas mais caros a essa questão, advertindo que é "uma necessidade da razão, um dever moral e uma obrigação jurídica que a política leve finalmente a sério o princípio da igualdade, reduzindo, a nível não só local, mas também internacional, essa gigantesca lacuna de garantias e de instituições de garantias dos direitos fundamentais, de cuja efetividade depende o futuro da paz, da democracia e da segurança geral"[4].       

O tema ocupa, no pensamento de Ferrajoli, uma importância destacada. Portanto, diferentemente do que algumas críticas ácidas costumam sugerir — de que se trataria de um autor com ingenuidade iluminista e, de certa forma, desconectado da realidade (sobretudo da realidade de países periféricos, como o Brasil) — Ferrajoli está preocupado, e não é pouco, com os caminhos que o Direito, a democracia, a igualdade e os bens fundamentais estão tomando em nível global[5]. Por isso, aconselho, fortemente, a leitura desse livro. Importante que superemos (ou melhor, extirpemos) alguns mitos…

Não é demais relembrar, ainda, que Luigi Ferrajoli foi juiz na Itália e, também por isso, conhece, de forma privilegiada, o funcionamento do sistema de justiça, a estrutura do Poder Judiciário e, sobretudo, a real deficiência do sistema de garantias. Em outras palavras: não se trata somente (o que não seria pouco) de um dos maiores teóricos do Direito da atualidade, senão de alguém que — para além disso — domina de perto a realidade a partir da qual fala.

No seu Manifesto, após estabelecer os parâmetros epistemológicos de sua tese (trabalhando conceitos que lhe são caros, como direitos fundamentais, democracia formal e substancial, legge del più debole, antinomias e lacunas, dentre outros), Luigi Ferrajoli transita por temas como: direitos sociais e economia, igualdade e seus inimigos (onde desenvolve questões como a discriminação, a antropologia racista da desigualdade, a posição propriedade x igualdade), trabalho e soberania popular, a utopia concreta da renda mínima garantida, a situação dos imigrantes (que ele chama de "pessoas sem direitos") e, por fim, o seu projeto de um constitucionalismo do futuro.

Pode-se ver, com clareza, que existe uma densa e sofisticada formatação teórica para dar conta de aspectos do Garantismo, que estão para muito além do penal (liberal). Conhecer somente uma parte da (complexa) arquitetura ferrajoliana pode credenciar um juiz para lidar — sob a luz do Garantismo — com uma parcela das questões que lhes forem submetidas à análise, mas talvez não para lidar com outras.

O juiz garantista, portanto, há de estar preparado para enfrentar a pauta da igualdade, com o mesmo rigor com o qual enfrenta, por exemplo, a pauta do encarceramento em massa. Mas, para isso, é crucial que compreenda o Garantismo em todas as suas dimensões, a partir das formulações próprias e conhecendo, sobretudo, os fundamentos da teoria, aqueles criteriosamente construídos em Principia Iuris. Isso é inegociável! Por quê?

Respondo: se o juiz não compreender as bases, não conhecer como se estruturam as categorias ferrajolianas, não estudar a fundo a teoria dos direitos e bens fundamentais, não assimilar corretamente a distinção entre as obrigações de não lesão e as obrigações de prestação, correrá o enorme risco de: i) no campo penal, tornar-se um punitivista e ii) no campo social, não ser arrojado o suficiente para dar conta das pautas da igualdade.

Esclareço: um juiz que não compreenda bem os fundamentos e não conheça as dimensões do Garantismo, corre um sério risco de acreditar, por exemplo, ser possível — em nome do que quer que seja (bem comum, interesse público, direitos de determinados grupos vulnerabilizados, etc.) comprometer garantias fundamentais de pessoas acusadas de crimes. Forja-se uma crença de que é possível flexibilizar algumas garantias penais/processuais penais em nome de algo "maior". Já vimos o quanto formulações do tipo “garantismo integral" atacam, na essência, a tese de Ferrajoli[6]. Exemplos muito comuns são de tentativas, tanto teóricas, quanto legislativas, de hiperinflacionar o Direito Penal e amputar garantias caras ao Processo, em nome de pretensos “combates" à corrupção, às drogas, etc. Esse mesmo juiz pode ser totalmente comprometido com as agendas sociais, com a questão da diversidade e compreender muito bem a necessidade de assegurar a igualdade, porém, na seara criminal, pode facilmente claudicar e, por exemplo, desrespeitar garantias constitucionais, em nome de uma "boa causa", se não compreender bem a inexorabilidade dos fundamentos garantistas.

Insisto: foi por conta, exatamente, do discurso "das pessoas de bem", em torno do "combate à corrupção" que — de uns tempos para cá — na senda do que Luigi Ferrajoli chama de "gigantismo processual"[7], próprio de um Direito Penal de exceção (e que, entre nós, tem data, nome e sobrenome: 17 de março de 2014 — operação "lava jato") — o Garantismo passou a ocupar as pautas. Agora, não mais as acadêmicas, senão as midiáticas. Deixou de ser tema dos corredores universitários, para virar papo de mesa de bar… Daí a minha insistência (às vezes, reconheço, enfadonha) em falar seriamente sobre Garantismo.

É sintomático que o Garantismo tenha ocupado esse lugar de "maldito", com a deflagração da "lava jato" e tudo o quanto de nefasto veio a reboque, próprio daquilo que um sistema penal de exceção põe de manifesto. Um verdadeira cruzada (antigarantista) à emergencia da vez: a corrupção. Eleito o inimigo (e hoje nós bem sabemos quem foi), o sistema penal é apresentado como solução e, para isso, tudo pode, tudo vale; os fins justificam os meios. Essa é a lógica que caracteriza, conforme descrito por Ferrajoli, um modelo de Direito Penal autoritário/substancialista e de Processo Penal inquistório/decisionista, que é o modelo antípoda ao idealizado pelo Garantismo (Direito Penal mínimo/racionalista e Processo Penal acuasatório/cognoscitivista).

Eis aí exposto o gravíssimo risco de uma má compreensão da teoria…

Esclareço, ainda: do contrário, um juiz totalmente cumpridor das garantias penais e processuais penais, se desconhecer a dimensão mais alargada do universo de Ferrajoli, corre um grave risco de não se implicar com a pauta da igualdade, por não entender essa outra dimensão transformadora (obrigações de prestação) e, assim, permanecer inerte, quando seu agir seria indispensável à sedimentação da democracia.

Concluo: o que pretendi deixar claro, a partir de uma breve apresentação (reconheço, superficial) dessa outra dimensão do Garantismo de Luigi Ferrajoli é que um juiz verdadeiramente garantista precisa estar atento para toda essa construção teórica, entendendo as especificidades a partir das quais cada estrutura se compõe. Não dá para misturar as estações. Isso pode implicar graves e irreversíveis riscos à Constituição e à democracia. A coisa é complexa, sim. Mas, Luigi Ferrajoli jamais prometeu facilidades…


[1] FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. Roma: Editori Laterza, 1989. Páginas 891/893.

[2] Há uma excelente passagem que esclarece essa formulação, que deixo de transcrever pelo curto espaço desse artigo. FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris: teoria del diritto e della democrazia. 1. Teoria del diritto. Roma: Editori Laterza, 2007. Páginas 194/198.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Manifesto per l’uguaglianza. Roma: Editori Laterza, 2018. Página 3. 

[4] In op. cit. Página XI (Prefazione). Tradução livre. 

[5] Nem mesmo temas como o aquecimento global, o risco dos conflitos nucleares, a morte de milhões de pessoas a cada ano por falta de alimentação básica e de atendimento de saúde, a centena de milhares de imigrantes em fuga, o poder selvagem do mercado, dentre outros, estão fora das lentes de Luigi Ferrajoli. Sobre isso, conferir o indispensável livro Per una Costituzione della Terra: l’umanità al bivio. Milano: Feltrinelli Editore, 2022.

[6] Sobre o tema, cf. O garantismo (penal) de Luigi Ferrajoli: apontamentos (des)necessários a certas “críticas” Made in Brazil. PINHO, Ana Cláudia Bastos de. ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. SALES, José Edvaldo Pereira. In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Belo Horizonte, ano 17, n 26, p. 155-186. Jul/Dez 2019.

[7] Ao trabalhar a questão da falta de efetividade das garantias no Direito Penal italiano (corresponde à quarta parte do “Direito e Razão”), Luigi Ferrajoli identifica o que ele denomina de um “subsistema penal de exceção”, que toma assento todas as vezes que existe uma opção política por um regime de legislação de emergência, que compromete as garantias, sob a justificativa de combate a algum tipo específico de crime. Na Itália, os anos 70 foram emblemáticos na utilização desse modelo, tendo como alvo o “terrorismo”. Mais tarde, aparece a “máfia" a exigir exatamente a mesma resposta emergencial. Como características desse modelo de exceção, Ferrajoli descreve o gigantismo processual e os maxiprocessos. Tal gigantismo compreende três dimensões: horizontal (abertura de macro investigações contra centenas de imputados, mediante medidas invasivas, baseadas em frágeis indícios), vertical (multiplicação, a cargo de cada imputado, dos delitos adjudicados, circularmente deduzidos uns dos outros – os delitos associativos dos delitos específicos, e vice versa) – ou, ainda, induzidos a título de concurso moral dos adstritos aos co-imputados) e temporal (prolongamento desmedido dos processos, que se arrastam, não raro sem razão, às vezes com intervalos de anos entre a conclusão da instrução e o início do juízo, de modo que se cumpra o máximo de prisão preventiva. In Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 2000. Página 823)  

Autores

  • é doutora (2011) e mestre (2004) em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará). Professora de Direito Penal da UFPA. Promotora de Justiça do MP-PA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Garantismo em Movimento”. Professora visitante na Università degli Studi di Roma Tre.

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