Opinião

Tema 1.199 do STF e a nova LIA: parâmetros fixados e complementos

Autores

  • Zulmar Fachin

    é doutor em Direito Constitucional (UFPR) mestre em Direito (UEL) mestre em Ciência Política (UEL) bacharel em Direito (UEM) licenciado em Letras (Unicesumar) professor na UEL e no Programa de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica na Unicesumar coordenador do mestrado profissional em Direito Sociedade e Tecnologias da Escola de Direito das Faculdades Londrina e membro eleito da Academia Paranaense de Letras Jurídicas.

  • Roberto Beijato Junior

    é advogado doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

13 de fevereiro de 2023, 13h09

O regime de persecução e regulamentação às práticas de improbidade administrativa no direito brasileiro receberam especial atenção do constituinte originário que já no parágrafo 4º, do artigo 37, da Constituição de 1988, deu vazão à necessária gravidade que tais atos importam. Para tanto, muito embora tenha delegado à lei ordinária a definição típica dos atos ímprobos, determinou a aplicação de sanções graves a tais tipos, quais sejam: a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário.

A Lei 8.492, de 2 de junho de 1992 — Lei de Improbidade Administrativa (LIA) —, cumpriu, desde então, o papel de disciplinar os atos de improbidade administrativa, o procedimento processual a ser aplicado, assim como as penalidades cabíveis e suas gradações. Este microssistema normativo da improbidade administrativa foi, contudo, nuclearmente modificado com o advento da Lei nº 14.230/2021, que não apenas alterou diversos dispositivos da Lei 8.429, como inseriu novos.

Dentre as principais novidades da mencionada lei, dois pontos geraram, de imediato, relevante controvérsia acerca de sua aplicação. Primeiramente, a nova redação do artigo 10 da LIA exclui a existência de ato de improbidade administrativa na modalidade culposa. O único elemento subjetivo admitido, portanto, e que deve ser comprovado pelo Ministério Público, é o dolo. Surgiu aqui, então, a dúvida quanto aos efeitos no tempo da nova norma. Estaríamos diante de uma hipótese análoga ao abolitio criminis no âmbito do direito penal e que deveria produzir efeitos retroativos, por força do inciso XL, do artigo 5º da CF/88? Poderia produzir efeitos aos casos já transitados em julgado ou aos casos em andamento, mas que foram ajuizados na vigência da lei anterior? Este foi o primeiro problema surgido.

Em um segundo ponto, tem-se também que o regime de prescrição para punibilidade das práticas de improbidade administrativa também foi sensivelmente alterado pela nova lei. Na vigência da lei anterior, o artigo 23 da LIA impunha um prazo prescricional de cinco anos para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, sendo que o termo inicial do prazo se dava: a) com o término do exercício do mandato, cargo em comissão ou função de confiança na qual se teria, em tese, praticado o ato ímprobo; b) dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, para as hipóteses em que o agente responsável fosse detentor de cargo efetivo ou emprego público e, por fim; c) da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades privadas que recebessem subvenção ou outras formas de fomento administrativo, que eram então mencionadas na redação primeva do parágrafo único do artigo 1º da LIA.

Se, por um lado, a Lei 14.230/2021 majorou o prazo prescricional de cinco para oito anos, contados a partir da ocorrência do fato, ou no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência, fato é que inseriu, também, no âmbito dos processos por improbidade administrativa, a figura da prescrição intercorrente, que outrora inexistia nesta modalidade procedimental. Como se observa do parágrafo 4º do artigo 23 da LIA, sob a atual redação dada pela Lei 14.230/2021, verifica-se que passam a existir alguns marcos interruptivos da prescrição — similares àqueles da ação penal previstos no artigo 117 do Código Penal —, sendo que após a ocorrência de um marco interruptivo, inicia-se novamente a contagem do prazo prescricional, o qual, dessa vez, passa a ser de apenas quatro anos. É dizer: se entre a ocorrência de um primeiro marco interruptivo e o segundo, consumar-se o prazo de 04 anos, a pretensão punitiva estará extinta. Se, por exemplo, entre o ajuizamento da ação de improbidade — primeiro marco interruptivo — e a publicação de sentença condenatória, advier o período de quatro anos, a punibilidade estará extinta. Como muitas ações de improbidade acabam contando com elevado número de pessoas no polo passivo, é bastante factível a consumação deste prazo entre um marco e outro.

Surgiu, então, a questão acerca da aplicabilidade retroativa dos novos marcos prescricionais, em benefício dos acusados, por raciocínio análogo àqueles do direito penal, cuja retroatividade da lei mais benéfica ao réu é imposição constitucional decorrente do inciso XL do artigo 5º da CF/88.

Pois bem. Estes dois pontos cruciais foram alvo de profundo debate e divergências aferíveis em inúmeras decisões judiciais por todo o território nacional. O Supremo Tribunal Federal, para pacificar a questão, reconheceu sua repercussão geral nos autos do Agravo em Recurso Extraordinário nº 843.989, da relatoria do ministro Alexandre de Moraes e definiu o Tema 1.199, cujo objeto era: "definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente".

O acórdão, que conta com mais de 400 páginas, bem demonstra a dificuldade de se chegar a um posicionamento pacífico sobre as diversas questões que tangenciam a aplicabilidade da Lei 14.230/2021. Tanto assim que há votos que sustentaram pela plena aplicabilidade retroativa da nova lei (votos dos ministros André Mendonça, Nunes Marques e Dias Toffoli) e outros que defenderam o pleno oposto, ou seja, sua irretroatividade (votos dos ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber e Carmen Lúcia). E, ainda, no caso do ministro Gilmar Mendes, houve, inclusive, a sustentação da possibilidade de anulação de condenações transitadas em julgado quando por modalidades culposas de improbidade, que agora deixaram ser figuras típicas, ou seja, em raciocínio similar ao dos efeitos da abolitio criminis, na seara criminal.

Ao final, entendeu, por maioria, a corte, no que tange à extinção da modalidade culposa de improbidade administrativa, que se preservam os efeitos da coisa julgada material sobre condenações que tenham tido por base este tipo, de modo que não poderão ser modificadas por esta razão. Aos procedimentos que não contem, ainda, com condenação transitada em julgada, contudo, a nova lei se aplicará imediatamente.

Por sua vez, quanto aos novos prazos prescricionais, estes não retroagirão de qualquer maneira, aplicando-se somente a partir da publicação da nova lei. Ao final, a tese aprovada para o Tema 1.199 restou assim concluída:

"1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

A Lei 14.230/2021 estabeleceu parâmetros mais claros e seguros para uma eventual condenação por improbidade administrativa. Para tanto, impôs maior ônus argumentativo ao órgão de acusação, assim como acrescentou elementos mais rígidos à sentença condenatória, de modo a fazer cumprir o mandamento constitucional que impõe a fundamentação adequada a todo pronunciamento jurisdicional (artigo 93, inc. IX da CF/88). Tais alterações vieram em boa hora, tendo em vista a difusão do modus operandi da "lava jato", hoje reconhecidamente um deletério fato para a história recente brasileira.

Neste sentido, por exemplo, o parágrafo 6º, do artigo 17, da LIA, sob atual redação, ao dispor sobre os requisitos da petição inicial a ser intentada pelo Ministério Público impõe que sejam individualizadas as condutas imputadas. Parece algo um tanto quanto óbvio e que a nosso ver já constituía autêntico dever do órgão ministerial, mas que, face à recalcitrância de tantos em proferir condenações genéricas, sem condutas claras, muitas vezes condenando diversas pessoas indiscriminadamente sob o manto do "conjunto da obra", levou o legislador a positivar expressamente este requisito para as iniciais de improbidade administrativa, muito embora a individualização seja requisito de toda e qualquer inicial. Afinal, a imputação que se almeja deve estar clara, sob pena de se impedir que a parte contrária exerça minimamente o contraditório. Nesta hipótese, parece-nos que, mesmo antes da nova LIA, estaríamos diante de aplicação analógica do artigo 41 do Código de Processo Penal. Isto porque, tratando-se do âmbito do direito administrativo sancionador, sua similaridade estrutural se arvora muito mais à seara processual penal que à processual civil, o que também foi expressamente reconhecido com a Lei 14.230/2021, a qual, em seu artigo 1º, parágrafo 4º, estabeleceu que "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador".

O que se busca observar, portanto, neste breve texto, é o fato de que muitas questões e repercussões advêm das modificações e criações trazidas pela Lei 14.230/2021. O Tema 1.199 resolve apenas duas delas. Outras permaneceram de fora, mas devem ser, em algum momento, objeto de novas discussões, que ainda não foram abrangidas pelo Tema 1.199 do Supremo Tribunal Federal.

Autores

  • é doutor em Direito Constitucional (UFPR), mestre em Direito (UEL), mestre em Ciência Política (UEL), bacharel em Direito (UEM), licenciado em Letras (Unicesumar), professor na UEL e no Programa de Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica na Unicesumar, coordenador do mestrado profissional em Direito, Sociedade e Tecnologias da Escola de Direito das Faculdades Londrina e membro eleito da Academia Paranaense de Letras Jurídicas.

  • é advogado, doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

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