Opinião

A (in)constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002

Autor

  • Géssica Guimarães Santos

    é advogada especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e Direito Constitucional pela Escola Paulista de Direito (EPD) atuante na área de Direito das Famílias palestrante escritora e professora.

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12 de fevereiro de 2023, 9h19

Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito das Famílias
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 representa um marco no processo de redemocratização do Brasil, desencadeando grandes mudanças no ordenamento jurídico, com destaque especial ao Direito Privado (PEREIRA, 2009).  

Para Caio Mário da Silva Pereira com a CRFB/88, "delinearam-se novos paradigmas e novos modelos de família centrados na dignidade da pessoa humana e na solidariedade familiar, visando à realização integral de seus membros (2009, p. 50)".

Maria Berenice Dias (2015, p. 33), por outro lado, entende que o Código Civil de 2002 (CC/02) já nasceu velho, em virtude de o projeto original do código ser anterior a 1975, ou seja, anterior à promulgação da CRFB/88; o que teria ensejado diversas modificações para adequação aos ditames constitucionais.

Qualquer que seja o prisma que se observe a questão do CC/02, fato é que o código apresenta modificações substanciais em relação ao Código Civil de 1916 (CC/16), parecendo atentar a importantes princípios constitucionais para delinear seus comandos normativos.

Diversos são os princípios constitucionais que norteiam o CC/02 e, em particular, o Direito das Famílias. Para fins deste trabalho, serão analisados os princípios da 1) dignidade da pessoa humana, 2) liberdade, e 3) igualdade.

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O Estado Democrático, bem como o sistema e ordenamento jurídicos no Brasil, estão pautados no princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no artigo 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

O Direito das Famílias também está norteado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Conceituar o princípio da dignidade da pessoa humana é uma tarefa árdua e que deve ser realizada com ponderação, sob pena de acabar limitando limitando-o (PEREIRA, 2009, p. 53).

Entretanto, sinteticamente é possível afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana está ligado à capacidade de autodeterminação, cabendo ao Estado tão somente criar institutos que garantam sua efetivação.

Maria Berenice Dias (2015, p. 45) compreende que o princípio da dignidade da pessoa humana "encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem".

Vê-se, assim, que o princípio da dignidade da pessoa norteou a elaboração do atual Código Civil, devendo também ser respeitado em todas as decisões concernentes ao Direito das Famílias.

Princípio da Liberdade
O princípio da liberdade é um importante direito humano, consagrado pela CRFB/88, devendo ser aplicado ao Direito das Famílias em suas diversas facetas.

José Afonso da Silva (2015, p. 235) define a liberdade, em sentido geral, como a "possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal".

No Direito das Famílias, o princípio da liberdade garante a todos o direito de escolher seu (sua) parceiro (a), bem como possibilita a escolha da entidade familiar que melhor lhe aprouver (DIAS, 2015, p. 46).

A liberdade possibilita também que a pessoa escolha o regime de bens mais adequado à sua situação, sendo possível a alteração na vigência do casamento, nos termos do artigo 1.639, §2º, CC/02.

O princípio da liberdade é valioso na interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, devendo ser aplicado em conjunto com os demais princípios orientadores do Direito das Famílias.

Princípio da Igualdade
O título sobre os direitos e garantias fundamentais na CRFB/88 é inaugurado com o artigo 5º que disciplina que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

No Direito das Famílias, o princípio da igualdade garante tratamento isonômico aos cônjuges e companheiros, conforme estabelecido no artigo 226, §5º, da CRFB/88.

O CC/02, em atenção aos princípios constitucionais, também assegura que a igualdade será a base da vida conjugal, nos termos do artigo 1.511.

Maria Berenice Dias (2015, p. 47) destaca que o princípio da igualdade no âmbito do Direito das Famílias não está pautado apenas "pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros".

Breves considerações sobre o casamento e seus efeitos
O CC/02 disciplina o casamento a partir do artigo 1.511, tratando da capacidade para o casamento, impedimentos, causas suspensivas, processo de habilitação, celebração, dissolução, proteção à pessoa dos filhos, dentre outros aspectos importantes.  

O código, no entanto, não aponta o conceito de casamento, cabendo à doutrina estabelecer tal conceituação, mas não sem bastante divergência.

A concepção clássica, conhecida ainda por individualista ou contratualista, considera o casamento como um contrato. Assim, a validade e eficácia do casamento decorreriam apenas da vontade das partes. Opõe-se à essa ideia a teoria institucionalista ou supraindividualista, que pressupõe o casamento como instituição social (GONÇALVES, 2012, p. 41).

Diante da contenda conceitual acima narrada, surge uma terceira teoria chamada eclética ou mista, que "considera o casamento ato complexo, ao mesmo tempo contrato e instituição. Trata-se de um contrato especial, um contrato de direito de família" (GONÇALVES, 2012, p. 41).

Autores como Maria Helena Diniz (2011, pag. 425) comungam do entendimento de que o casamento é uma instituição social.

Quer se considere o casamento como contrato ou instituição social, a sua celebração gera efeitos jurídicos em três esferas: 1) social; 2) pessoal, e 3) patrimonial.

Quanto aos efeitos sociais do casamento, pondera Carlos Roberto Gonçalves que "os efeitos do casamento, em razão de sua relevância, projetam-se no ambiente social e irradiam as suas consequências por toda a sociedade" (GONÇALVES, 2012, p. 182).

O artigo 1.511 do CC/02 ao disciplinar que o casamento "estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges" estabelece o principal efeito pessoal do casamento.

O casamento ainda trará consequências patrimoniais aos cônjuges, dentre as quais, a escolha do regime de bens.

Em decorrência da ausência de hierarquia entre o casamento e a união estável, é possível afirmar que os conviventes sofrerão também efeitos sociais, pessoais e patrimoniais da união estável, assim como os cônjuges.

A (in)constitucionalidade do regime de separação de bens obrigatório para maiores de 70 anos
Posicionamento doutrinário
A doutrina tem se debruçado e discutido sobre a possível inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, CC/02.

Maria Berenice Dias (2015, p. 46) entende que a imposição do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos é inconstitucional por violar o princípio da liberdade. Nesse mesmo sentido entende Caio Mário da Silva Pereira (2009, p. 197/198).

Há, por outro lado, os doutrinadores que reforçam a obrigatoriedade do regime de separação de bens para maiores de setenta anos.

Essa linha de raciocínio se pauta, principalmente, na proteção de que algumas pessoas precisariam da proteção do Estado contra o famoso "golpe do baú".

Ao tratar das hipóteses de obrigatoriedade do regime de separação de bens, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 464) assim se situa, parecendo concordar com a aplicação do artigo 1.641, II, CC/02:

“Em alguns casos, tal imposição é feita por ter havido contravenção a dispositivo legal que regula as causas suspensivas da celebração do casamento. Em outros, mostra-se evidente o intuito de proteger certas pessoas que, pela posição em que se encontram, poderiam ser vítimas de aventureiros interessados em seu patrimônio, como as menores de 16, as maiores de 70 e todas as que dependerem, para casar, de suprimento judicial."

A separação obrigatória de bens, no texto originário do CC/02 previa a idade de sessenta anos. A Lei nº 12.344/2010 alterou o dispositivo, aumentando a idade para setenta anos.

O Projeto de Lei (PL) 108/2007, de autoria da senadora Solange Amaral (PFL-RJ), que buscou elevar a idade para separação obrigatória de bens foi pautada no aumento da expectativa de vida do brasileiro.   

Não houve, de fato, uma discussão aprofundada sobre quais as razões para manutenção do dispositivo no CC/02, ainda que com a idade elevada.

Ou seja, o raciocínio utilizado é o mesmo de parte da doutrina que entende que o idoso estaria desprotegido de pessoas temerárias e perigosas, cujo objetivo com o casamento seria apenas monetário.

A doutrina majoritária entende que o disposto no artigo 1.641, II, CC/02 é inconstitucional, merecendo alteração legislativa. Há parte da doutrina que brada pela constitucionalidade do dispositivo, sob o argumento da proteção ao idoso, que estaria mais vulnerável do que pessoas mais jovens.

Violação ao Estatuto da Pessoa Idosa
A proteção aos direitos fundamentais dos idosos mereceu especial resguardo do Estado, consubstanciada na Lei nº 10.741/2003, o Estatuto da Pessoa Idosa.

O estatuto, no entanto, não retira a capacidade civil do idoso, seja parcial ou completamente. O objetivo da lei está bem delineado em seu artigo 2º.

O artigo 5º do CC/02 assegura que a minoridade cessará aos dezoito anos completos. Nesse exato momento, a pessoa estará apta a praticar todos os atos da vida civil, incluindo o casamento. Entretanto, não consta no ordenamento jurídico qualquer possibilidade de supressão de direitos em virtude do avançar da idade.

A CRFB/88, por exemplo, torna o voto facultativo aos maiores de setenta anos (artigo 14, II, c), mas não os impede de votar.

Aos eventuais casos de pessoas idosas que não estejam em pleno uso de suas faculdades mentais e mesmo assim acabem casando com golpistas, haverá possibilidade de anulação do matrimônio.

A lei criou mecanismos de promoção dos direitos fundamentais dos idosos, mas não se propôs a retirar quaisquer de seus direitos, razão pela qual mitigar o princípio da livre escolha de regime de bens aos maiores de setenta anos não parece coadunar com o Estatuto.

Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.309.642
Muitos casos têm sido levados ao Poder Judiciário visando o questionamento da constitucionalidade do artigo 1.641, II, CC/02.

Um destes casos chegou ao STF e foi reconhecida, pelo Plenário, a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, em 29/09/2022. O Recurso Extraordinário com Agravo foi autuado com nº 1309642.

Trata-se de um processo de inventário aberto pelos herdeiros de um homem falecido aos 83 anos. Habilitou-se nos autos uma mulher que alega ter vivido 26 anos em união estável com o de cujus. Como não havia contrato de união estável, o regime de bens aplicável seria o de comunhão parcial de bens.

Em primeiro grau, a magistrada reconheceu o regime de bens apontado pela convivente do de cujus, além de declarar que há inconstitucionalidade no artigo 1.641, II, CC/02.

Os herdeiros, então, interpuseram Agravo de Instrumento, pretendendo a reforma da decisão para que o regime de bens aplicável ao caso fosse o da separação obrigatória de bens, por força da constitucionalidade do art. 1.641, II, CC/02. O TJ-SP acolheu os pedidos formulados, dando provimento ao recurso.

A convivente interpôs recurso extraordinário com vistas à declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, CC/02, uma vez que esse dispositivo afrontaria os artigo1º, III, 3º, IV, 5º, I, X, LIV, e 226, §3º, 230, todos da CRFB/88.

Pretendeu-se também a resposta se a restrição do artigo 1.641, II, CC/02 atingiria também uniões estáveis ou estaria adstrita ao casamento.

Espera-se que o STF possa julgar a repercussão geral de forma coerente, considerando os princípios constitucionais aplicáveis ao Direito das Famílias, especialmente a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade.

Conclusão
Ao tratar da obrigatoriedade da adoção do regime de separação de bens para os maiores de setenta anos, fundamental analisar a questão a partir da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade.

Parcela da doutrina e grande parte da jurisprudência entendem que a disposição do artigo 1.641, II, CC/02 não pretende discriminar os maiores de setenta anos, mas sim protege-los de aventureiros que possam buscar um casamento por interesse.

Infelizmente, casamentos pautados em mero interesse podem ocorrer em qualquer momento da vida. O avançar da idade não é sinal automático de perda das faculdades mentais.

O sistema jurídico brasileiro não retira qualquer direito daquele que envelhece; ao contrário: foram criados mecanismos para proteção dos direitos fundamentais dos idosos, não para mitigação destes direitos.  

Impedir o maior de setenta anos de escolher seu regime de bens é trata-lo como verdadeiro incapaz. Ofende frontalmente os princípios constitucionais aplicados no Direito das Famílias, quais sejam, dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade.

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Bibliografia
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

DINIZ, Maria Helena. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2011.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro  Direito de Família. Vol. VI. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil  Direito de Família e Sucessões. Vol. V. 5ª ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2009.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil  Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. Vol. I. 17ª ed. Revisto e atualizado por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

___________________. Instituições de Direito Civil – Direito de Família. Vol. V. 17ª ed. Revisto e atualizado por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38ª ed. rev e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

STF, Recurso Extraordinário com Agravo nº 1309642; Carlos Alberto Escada e Outros x Maria Cecília Nispeche da Silva, ministro relator Roberto Barroso; disponível em < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6096433>. Acesso em 27.nov.2022.

Autores

  • é advogada, especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e Direito Constitucional pela Escola Paulista de Direito (EPD), atuante na área de Direito das Famílias, palestrante, escritora e professora.

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