Opinião

ICMS monofásico e princípio da não cumulatividade

Autor

  • Eduardo R. Botelho

    é pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e atua na área do Direito Tributário e de Relacionamento com o Governo (RelGov).

9 de fevereiro de 2023, 13h17

O reflexo da tributação no setor de energia foi objeto de debate recente na sociedade brasileira. Como consequência, foram publicadas as Leis Complementares 192 e 194, ambas de 2022, as quais, respectivamente, inovaram ao trazer o instituto do ICMS monofásico e a definição de essencialidade para os combustíveis, o gás natural e a energia elétrica.  Contudo estas mudanças ainda carecem de discussão sobre a sua forma de implementação. Neste texto se discutirá a aderência das novas regras ao princípio da não cumulatividade do ICMS.

A legislação, ao possibilitar que as alíquotas do ICMS sejam específicas (ad rem), desindexa o tributo do preço do produto e deixa de potencializar a volatilidade decorrente das oscilações da cotação internacional do petróleo.

Especificamente sobre a tributação monofásica, cabe registrar a promessa de simplificação que fundamentou a sua defesa. A aplicação da essencialidade veda que as alíquotas dos combustíveis sejam superiores à alíquota geral do ICMS de cada Estado.

O ICMS monofásico é fruto de uma discussão antiga. A redação vitoriosa é originária do Projeto de Lei Complementar nº 11/2020, o qual transformado na LC 192 no dia 11/03/2022. Seu fundamento é extraído do artigo 155, §2º, inciso XII, alínea "h" e dos §§4º e 5º que foram incluídos na Carta Magna pela Ementa Constitucional 33/2001. 

Nas palavras do senador Jean Paul Prates, que relatou o projeto de lei, trata-se de medida de caráter estruturante e não de uma solução apenas de curto prazo. A sua aplicação demanda uma regulamentação do Confaz [1], sem a qual poderia ser considerada inconstitucional [2].

Contudo, apenas em dezembro de 2022 os estados editaram o Convênio ICMS 199/2022 regulamentando a sistemática de tributação monofásica do ICMS para os seguintes produtos/mercadorias: diesel, biodiesel, GLP e GLGN.  Suas normas produzirão efeitos a partir de 1° de abril de 2023.  O convênio é omisso em relação ao etanol anidro e à gasolina [3], que, também, constam na LC 192/22.

Não cumulatividade
Quanto à regulamentação já realizada, destaca-se o fato do texto inicial da cláusula décima sétima do Convênio ICMS 199/2022 vedar a compensação do ICMS recolhido na etapa anterior à tributação monofásica.

A vedação é inconstitucional, pois o inciso I do §2º do artigo 155 da CF determina que o ICMS é um imposto não cumulativo. É verdade que há muito tempo se discute quais seriam os contornos dessa não cumulatividade e que o STF já admitiu que a matéria seja delimitada por norma infraconstitucional [4]. Entretanto não é permitido a Lei excluir a não cumulatividade. No caso concreto, cabe observar que a referida vedação não é encontrada nas normas gerais do ICMS (LC 87/1996) e nem mesmo na LC192/2022.

Oportuno lembrar que os convênios, conforme inciso IV, artigo 100 do CTN, são normas complementares das leis. Em manifestação na ADI 5.866, realizada em 2018, a Procuradoria Geral da República (PGR) assim se manifestou: 

"Não cabe ao Confaz dispor sobre base de cálculo, compensação tributária, substituição tributária, contribuinte etc. Isso porque o Confaz não possui a legitimidade democrática necessária para a instituição de tributo, exigida pelos diversos dispositivos do ordenamento constitucional (nº 75/2018 — SFConst/PGR)."

Além disso, cabe observar que o fim da não cumulatividade poderá onerar a cadeia produtiva e gerar efeitos contrários aos objetivos do novo marco legal.

A advogada Vanessa Dexheimer (2017), no seu estudo sobre a não cumulatividade, nos ensina que ela favorece a neutralidade do tributo, dado que a incidência do imposto que não é compensado com o tributo incidente na fase posterior se torna custo de produção e, portanto, potencial causa de distorções. 

Adicionalmente, destaca-se que o hiato entre o momento da arrecadação e o do consumo trazido pela incidência única diminui a correlação entre o ato de tributar e a capacidade contributiva, já que o imposto não é mais cobrado do consumidor final [5]

Neste sentido, é oportuno citar os ensinamentos do douto José Eduardo Soares de Melo (2009, pg. 272) que nos lembra que a não cumulatividade trata de uma autêntica obrigação que deve ser cumprida tanto pelo Poder Público como pelo contribuinte. 

Reforçam os argumentos até aqui apresentados as observações realizadas na obra o "ICMS e a EC 33/2001" pelos destacados Sacha Calmon Navarro Coêlho e Misabel Abreu Machado Derzi (2002, pg. 185), os quais alertam que a incidência monofásica para as operações com combustíveis e lubrificantes não deve prejudicar a aplicação do princípio da não cumulatividade porque não significa não incidência, tampouco isenção ou imunidade e, portanto, não poderia resultar em estorno ou vedação ao crédito. Prosseguindo, os autores ensinam que:

É evidente que, imposta a monofasia, e apesar dela, não pode ser quebrado o princípio da não-cumulatividade.  A incidência única do ICMS nas operações com combustíveis e lubrificantes deve, harmonicamente, conciliar-se com a não-cumulatividade, pois incidência única significa, no contexto da Constituição da República, não-cumulatividade. (Coêlho e Derzi, 2002, pg. 195)

Importante pontuar que não se questiona a impossibilidade de crédito da mercadoria incluída na tributação monofásica e destinada à revenda. Mas esta vedação não deve alcançar os créditos das aquisições realizadas para a produção da mercadoria, dado que esta etapa da cadeia segue na tributação plurifásica.

PIS/Cofins monofásico
A propósito, é isto que ocorre na legislação sobre o PIS e a Cofins onde a tributação monofásica atribuída a alguns produtos não veda a apropriação de créditos obtidos na etapa anterior a sua fabricação.  Esse entendimento foi manifestado pela Receita Federal do Brasil por meio da Solução de Consulta COSIT nº 496/2017. In verbis:

"… os produtos cujas receitas se submetem à incidência concentrada das contribuições não podem ser considerados como 'não sujeitos ao pagamento das contribuições', circunstância que vedaria os créditos com base no artigo 3º, §2º, II da Lei nº 10.833, de 2003, e seu correlato da Lei nº 10.637, de 2002. Dessa sorte, assiste razão à consulente ao dizer que os produtos tratados nos anexos da Lei nº 10.485, de 2002, 'não se enquadram no conceito de produtos não sujeitos à contribuição'."

Neste ponto, cabe observar que o artigo 24 da Lei Federal nº 11.727/2008 estendeu às pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa do PIS e da Cofins, produtoras de produtos sujeitos à incidência monofásica, a possibilidade de descontar créditos sobre à aquisição desses produtos de outra pessoa jurídica importadora/produtora, para revenda no mercado interno, de forma que todas as suas vendas sejam tributadas, inclusive no caso de revenda.

A redação atual do Convênio ICMS 199/2022 não detalha a forma de tributação na operação entre produtores de combustível. Porém, indica o diferimento na operação de importação do óleo diesel "A", biodiesel, GLP e GLGN e, ainda o diferimento do biodiesel na saída do produtor. 

Operação interestadual
A legislação sobre o ICMS Monofásico é silente quanto à incidência do imposto na saída para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. O artigo 5º da Lei Complementar 192/2022 determina que o fato gerador será a saída do estabelecimento do contribuinte ou o desembaraço aduaneiro. Contudo, a jurisprudência dos tribunais superiores (Súmula 166 do STJ e ADC 49 do STF) esclarece que não há incidência do ICMS na operação de transferência para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.

A tributação concentrada numa etapa anterior à da transferência pode gerar dificuldades. Por exemplo, caso o contribuinte decida posteriormente exportar o produto, estaria configurado o recolhido indevido do tributo [6].

Importante observar que as transferências, principalmente nas operações interestaduais, impactam o cenário em que será possível a apropriação do crédito de ICMS.  Nesta hipótese, ainda não está claro como seria a forma de compensação do imposto devido ao estado de origem e de destino.  Como o ICMS dos combustíveis derivados de petróleo é devido ao estado onde ocorrer o consumo, o estado de origem tende a resistir em assumir o ônus pelo crédito dos insumos utilizados na produção de mercadorias em seu território. Uma solução possível seria a dedução dos créditos dos valores devidos ao estado de destino no caso de uma operação interestadual.

Atualmente, a repartição de receitas é operacionalizada no sistema (Scanc [7]) utilizado pelo fisco para garantir o repasse do ICMS entre estados em função das transferências de combustível realizado pelas distribuidoras e demais agentes.

Conclusão
A incidência monofásica reduz gastos com a conformidade fiscal e favorece a transparência sobre a carga tributária efetiva do setor de combustíveis (Silveira, 2018).  Ela possui vantagens e desvantagens, mas é inegável que sua regulamentação, após mais de 20 anos de sua inclusão na Constituição, teve como um dos objetivos simplificar e otimizar o arcabouço tributário do setor de combustíveis.

Em sentido contrário caminha a vedação aos créditos trazida pelo Convênio ICMS 199/2022. Prevalecendo a redação atual haverá impacto na neutralidade do ICMS, na transparência e na carga tributária do imposto.

Como as discussões sobre o tema ainda são incipientes, espera-se que o modelo seja alterado e que se espelhe na legislação federal do PIS/Cofins incidente sobre os combustíveis. 

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Referência bibliográfica
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[1] Conselho Nacional de Política Fazendária.

[2] Ver Senado Federal – parecer de plenário número 62. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151606

[3] A essencialidade da gasolina não foi aceita pelos estados e é discutida na ADPF 984 e na ADI 7191.

[4] Conforme STF (RE 689.001 AgR, Relator: ministro Dias Toffoli, 2ª T, DJE de 26-2-2018): "O princípio constitucional da não cumulatividade é uma garantia do emprego de técnica escritural que evite a sobreposição de incidências, sendo que as minúcias desse sistema e o contencioso que daí se origina repousam na esfera da legalidade".

[5] A autora afirma, ainda, que a não cumulatividade do ICMS consiste em um direito do consumidor de só suportar o ônus de imposto correspondente à aplicação da alíquota sobre a base de cálculo na última operação.

[6] Para aprofundamento sobre o direito a crédito de ICMS vinculado à operação de exportação ver tema 633 da repercussão geral (STF RE 704.815/SC) sobre direito aos créditos de mercadoria adquirida como uso e consumo.

[7] Ver ATO COTEPE/ICMS n° 47/03 e ATO Cotepe/ICMS 13/2014.

Autores

  • é pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e atua na área do Direito Tributário e de Relacionamento com o Governo (RelGov).

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