Opinião

Pano de fundo da discussão judicial no STF sobre o curso de medicina

Autor

9 de fevereiro de 2023, 18h14

Há uma discussão acirrada no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à autorização de cursos de medicina no país, que é objeto de Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 81, ajuizada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). A referida associação defende a constitucionalidade do artigo 3º, caput, parágrafos e incisos, da Lei nº 12.871/2013, que implementou procedimento a ser adotado no tocante à autorização para o funcionamento de cursos de medicina no âmbito do Programa Mais Médicos. Com essa defesa enfática, a Anup objetiva cautelarmente suspender a autorização de todos os cursos de medicina no país que não tenham sido autorizados por meio de chamamento público da Lei do Mais Médicos, após a publicação desta.

Reprodução
Em contraposição, várias entidades representativas de ensino superior apresentaram pedidos para ingressarem na lide como amicus curiae (amigo da corte), figura processual que tem a função de subsidiar o STF com fundamentos necessários para a resolução da demanda. Essas entidades argumentam basicamente que o STF já declarou a constitucionalidade do artigo 3º da Lei do Mais Médicos em função do que já fora decidido na ADI nº 5.053/DF e que a Lei do Mais Médicos não veda a abertura de cursos de Medicina por intermédio da avaliação feita por meio da Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).

Em que pese haver outros fundamentos que objetivam desqualificar os argumentos deduzidos pela Anup, a discussão primordial é saber se a Lei do Mais Médicos vedaria a autorização de novos cursos de medicina avaliados por meio da Lei do Sinaes, o que seria objeto dessa análise.

Como é cediço, o artigo 3º da Lei nº 12.871, de 2013, a chamada Lei dos Mais Médicos, foi instituído para implementar uma política pública que objetivava diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de diminuir as desigualdades regionais na área de saúde e aprimorar a formação médica no país, além de proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação.

Esse fundamento está previsto na Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 24/2013 MS/MEC/MP, da então Medida Provisória nº 621, de 8 de julho de 2013, convertida na Lei nº 12.871, de 2013, que instituiu o programa. A referida EMI nº 24/2013 ainda enfatizava a baixa proporção de médicos no Brasil, esclarecendo:

12. A proporção de médico/1.000 habitantes constatadas no Brasil é menor do que em outros países latino-americanos com perfil socioeconômico semelhante ou países que têm sistemas universais de saúde, a saber: Canadá 2,0; Reino Unido 2,7; Argentina 3,2; Uruguai 3,7; Portugal 3,9; Espanha 4,0 e Cuba 6,7 (Estadísticas Sanitarias Mundiales de 2011 e 2012 – Organização Mundial da Saúde – OMS).
19. A população brasileira percebe e manifesta o desconforto com essa escassez de médicos, que tem impacto no acesso ao SUS. Em estudo do Sistema de Indicadores de Percepção Social, realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em 2011, 58,1% dos 2.773 entrevistados disseram que a falta de médicos é o principal problema do SUS. No mesmo estudo, a resposta mais frequente como sugestão de melhoria para o sistema de saúde foi de aumentar o número de médicos.
20. Desse modo, encontramos um quadro de extrema gravidade, no qual alguns estados apresentam um número insuficiente de médicos e de vagas de ingresso na graduação, com ausência de expectativa de reversão desse quadro a curto e médio prazos, caso não haja medidas indutoras implementadas pelo Estado. Nesse cenário, a expansão de 2.415 vagas de cursos de medicina, anunciada pelo MEC em 2012, só contribuiria para atingir o número de 2,7 médicos a cada 1.000 habitantes no ano de 2035.
21. O Ministério da Educação autorizou em 2012 a oferta de cerca de 800 vagas privadas em cursos de medicina. Em que pese o aumento de vagas, o atual momento exige a adoção de iniciativas estatais para criar e ampliar vagas em cursos de medicina nos vazios de formação e de assistência, a partir do papel indutor do Estado na regulação da educação superior. Com isso, incentiva-se a criação de instituições de educação superior voltadas à área da saúde e à oferta de cursos de medicina nessas regiões. A autorização para oferta de cursos de medicina obedecerá a uma regulação educacional específica, com a publicação de chamamentos públicos às instituições de educação superior interessadas em se habilitar para atuação nas regiões que apresentem vulnerabilidade social, conforme critérios a serem estabelecidos pelo Ministério da Educação.
22. Além disso, entende-se que é fundamental agregar novas ações para garantir a ampliação da formação de médicos para a atenção básica no país, possibilitando à população brasileira o acesso ao sistema de saúde de qualidade.
23. Uma das iniciativas é a ampliação de 12 mil novas vagas de residência médica acompanhadas da oferta de bolsas, a serem implementadas até 2017, uma vez que se entende a importância dessa modalidade para a fixação de profissionais. Estudo recente denominado Migramed, do Observatório de Recursos Humanos de São Paulo/ObservaRH, de 2012, demonstra que 86% dos médicos permanecem no local em que cursaram a graduação e a residência médica.

Nos termos da EMI nº 24/2013, a Lei nº 12.871, de 2013, seria uma política pública que incentivaria a criação de instituições de ensino superior voltadas à oferta de cursos de medicina em regiões carentes. Os chamamentos públicos sempre foram franqueados às instituições de ensino superior que desejassem se habilitar para atuar nessas regiões, não estabelecendo qualquer hipótese de suspensão ou impossibilidade de autorização de cursos por meio da Lei nº 10.861, de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).

É justamente esse o cerne da questão, pois a Lei n. 12.871, de 2013, assim como atesta a sua exposição de motivos, estabelece uma política pública indutora de criação de instituições e cursos de medicina em regiões carentes, mas não impossibilita a autorização de cursos em outras regiões por meio da Lei do Sinaes (Lei nº 10.861, de 2004).

A Constituição estabelece, em seu artigo 209, que o ensino é "livre à iniciativa privada", desde que cumpra as normas gerais da educação nacional, que seja autorizado e que tenha a qualidade avaliada pelo poder público. O termo "livre iniciativa" se refere a liberdade de pleitear, que não afastará a avaliação e a autorização. Contra esse princípio expresso, não cabe interpretação ou mesmo lei que esgote o núcleo central do comando constitucional, ou seja, é inviável qualquer posicionamento, lei ou portaria que ao final proíba a "livre iniciativa na área de ensino".

Ao tratar dessa questão, a Lei nº 9.394, de 1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), estatuiu de forma clara as regras de autorização de cursos, segundo a qual toda autorização está vinculada à respectiva avaliação, ou seja, o ato regulatório de autorizar a abertura de uma instituição de ensino superior e seus cursos está vinculado estritamente à avaliação dos critérios educacionais da referida instituição.

Seguindo essa lógica, o Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino, estabelece que o Ministério da Educação definirá calendário anual de abertura do protocolo de ingresso e conclusão de processos regulatórios em sistema próprio, para fins de expedição dos atos autorizativos e de suas modificações, não excluindo o curso de medicina.

O referido Decreto, ao tratar da autorização de cursos, estabeleceu no artigo 41, §2º, que nos processos de autorização de cursos de graduação em medicina, realizados por meio de chamamento público, serão observadas as disposições da Lei nº 12.871, de 2013. Por uma questão de lógica booleana, a própria norma regulatória trata os processos de chamamento público como um dos meios para a autorização do curso de medicina, mas não o único.

Para este trecho, não há outra interpretação literal, sistemática ou conforme a constituição senão a de que somente os processos que usarem o chamamento públicos ficariam sujeitos à Lei do Mais Médicos (Lei 12.871/2013). Os demais processos de autorização de medicina, por conclusão óbvia, deveriam seguir os trâmites regulares, assim como fora referendado pela Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 24/2013 MS/MEC/MP.

Respeitando a Constituição Federal e a Norma Infraconstitucional já mencionada, conclui-se que devem coexistir dois fluxos de processos de autorização do Curso de Medicina: 1. o processo regular de autorização, similar aos demais cursos, e 2. o chamamento público, exceção criada pela Lei do Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013). É imprescindível ratificar que a legislação em questão prevê rito especial para o chamamento público sem, em momento algum, proibir o processo regular de autorização.

Esse é o entendimento revelado nas diversas manifestações judiciais exaradas no país no sentido de que a sistemática prevista pela Lei do Mais Médicos não deve ser a única para a autorização de novos cursos de medicina, tendo em vista que se trata de nova espécie de autorização que deve coexistir com via ordinária, à luz dos princípios constitucionais da isonomia e da livre iniciativa.

No contexto da ADC nº 81, que tramita no STF, o relator da ação, Ministro Gilmar Mendes, determinou com que o Ministério da Educação (MEC) e a Advocacia Geral da República (AGU) apresentassem informações acerca das ações que tratavam sobre a abertura de novos cursos de medicina. Da informação prestada é possível concluir que nenhum processo judicial determinou a abertura de curso diretamente por via judicial, ou seja, não há abertura de curso por força de determinação judicial (tutela de urgência ou liminar), sendo todas as determinações judiciais objetivavam a abertura de processo de avaliação que deveria ser feita pelo próprio MEC/Inep.

Na prática, não há absolutamente nenhuma ilegalidade em requerer que o MEC avalie a instituição para fins de autorização de curso, assim como acontece regularmente com os demais cursos ofertados pelas IES. Todo ato administrativo de autorização, no final, decorre do próprio Ministério da Educação. Esse fato, por si só, faz emergir a dúvida sobre o pano de fundo do ajuizamento dessa ação, o qual foi abordado por diversas entidades representativas em suas petições de amicus curiae na ADC nº 81.

Por outro lado, dos processos citados para fins de autorização de curso de medicina na ADC nº 81, parte deles discute justamente editais dos Mais Médicos em função de litígios decorrentes de conflitos técnicos havidos nos editais de 2014, 2015, e 2018. Como se trata de chamamento público, muito similar ao procedimento licitatório, os editais estabelecem diversas etapas a serem cumpridas pelas IES, como etapas de habilitação, classificação e recursos. Essas etapas sempre foram objeto de diversos questionamentos judiciais.

Por todas essas razões, não restam dúvidas que o pano de fundo da discussão judicial no STF sobre o curso de medicina não está afeto exclusivamente aos procedimentos de autorização, haja vista que existem duas formas de autorização regulares e que podem conviver harmoniosamente.

A instituição que desejar participar do edital de chamamento público do Programa Mais Médicos, objeto da Lei nº 12.871, de 2013, pode se credenciar a participação desse certame. Da mesma forma, nada obsta que uma instituição de ensino superior se submeta à avaliação prévia dos procedimentos regulatórios para fins de autorização com base na Lei nº 10.861, de 2004, a Lei do Sinaes. Se são dois procedimentos legais e convergentes, qual seria a razão pela qual inumar uma dessas vias? Se ambas são avaliadas pelo próprio MEC, não há que se falar em falta de qualidade ou falta de critério para identificar as regiões prioritárias para o SUS passíveis de autorização. Por essa razão, o pano de fundo da discussão judicial no STF sobre o curso de medicina refere-se a elementos que certamente não estão em discussão no STF.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!