Opinião

Impactos da vigência plena da Lei 14.133/21 nas licitações de estatais

Autor

  • Renila Bragagnoli

    é advogada chefe da assessoria jurídica da Codevasf mestranda em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade de Buenos Aires (UBA) especialista em políticas públicas gestão e controle da administração pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) professora de cursos de pós-graduação na temática da Lei das Estatais e palestrante na área de contratações públicas.

8 de fevereiro de 2023, 11h06

A Lei nº 13.303/16 instituiu o estatuto jurídico das empresas estatais em cumprimento ao que determina o artigo 173, §1º, da Constituição, dispondo sobre a sua função social e as formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; a sua sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas; licitação e contratação; a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal; os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores e, apesar de ter já não ser uma legislação inédita e recente, novos desafios sempre surgem para aqueles que atuam com empresas públicas e sociedades de economia mista, especialmente matérias atinentes às licitações e aos contratos.

Em 2021, com o advento da Lei nº 14.133, a Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC) passou a ser mais um tema debatido e, eventualmente, harmonizado com as licitações e contratos regidos pela Lei das Estatais.

O tema ganha fôlego em 2023, já em que em 1º de abril a Lei nº 14.133 alcança vigência plena, estando, portanto, apta a reger as contratações públicas das administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos municípios, quando no desempenho de função administrativa, além dos fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela administração pública.

O ponto nevrálgico é que a NLLC tem implicações diretas e reflexos transversais nas contratações públicas regidas pela Lei nº 13.303/16 e, considerando o poder-dever de regulamentação e constante atualização do regulamento interno de licitação e contrato (Rilc), invariavelmente, em 2023, as estatais terão os olhos fortemente voltados para a Lei nº 14.133/21.

Nesse sentido, passou a ser premente a necessidade de que as empresas estatais alterem seus RILCs. Para Justem Neto, "edição da Lei 13.303 é uma excelente oportunidade para as empresas estatais adaptarem as condutas e a gestão conforme as especificidades de sua atuação" [1], atualizando o normativo interno para verificar o que pode ser melhorado, acrescentando disposições faltantes e excluindo previsões desnecessárias ou incompatíveis, agora tendo como referencial a NLLC e suas implicações no regime jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista.

Antes de adentrar especificamente nas repercussões da NLLC para as estatais, é conveniente reforçar que a Lei nº 14.133/21 não se aplica às licitações regidas pela Lei nº 13.303/2016. E a conclusão, para esse ponto, é confortável pois a NLLC dispõe expressamente em seu artigo 1º, §1º que não são abrangidas por ela as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, pois estas entidades são regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016.

A exclusão das estatais é literal e taxativa: a NLLC não se aplica às contratações públicas das empresas estatais, o que combate qualquer eventual entendimento divergente e reforça ainda sobre a não aplicação subsidiária da quase revogada Lei nº 8.666/93 à Lei das Estatais.

Para maior aprofundamento sobre a aplicação da NLLC às estatais, recomendamos leitura do texto que escrevemos especificamente acerca dessa temática [2], não sendo despiciendo, no entanto, acrescentar que, não obstante a não aplicação da NLLC às empresas estatais, há repercussões indiretas da Lei nº 14.133/2021 nos procedimentos licitatórios das empresas públicas e sociedades de economia mista.

Nessa senda, por força do artigo 189, aplica-se a NLLC às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, à Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e aos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011 e convém citar que a Lei nº 13.303/16 expressamente remete à Lei nº 8.666/93 e à Lei nº 10.520/02:

"Art. 41. Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate: […]
III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993;
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: […]
IV – adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado;"

Dessa maneira, por força do artigo 189 da Lei nº 14.133/21, os temas crimes licitatórios, critérios de desempate e utilização preferencial do pregão, instituído pela Lei nº 10.520/02, passarão a ter o rebatimento doravante na NLLC, o que vai requerer ajustes no Rilc, para a correta adequação, destacando que os crimes licitatórios, por disposição expressa do artigo 178 c/c artigos 185 e 193, inciso I, já estão em plena vigência também para as estatais.

Sobre os critérios de desempate, a NLLC mantém redação semelhante ao artigo 55 da Lei nº 13.303/16 [3], devendo as estatais harmonizarem, a partir do inciso III, o desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho e desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle, para após, se for o caso, usarem o sorteio como critério de desempate.

A repercussão mais sensível é a da referência à utilização do pregão eletrônico, tema que é polêmico desde a publicação da Lei nº 13.303/16, porém que teve sua discussão negligenciada. De um extenso texto que abordamos a matéria [4], frise-se os pontos necessários ao debate:

"[…] não há imposição de utilização ortodoxa da modalidade pregão eletrônico em si, mas uma indicação de que o rito célere, ágil e em busca da eficiência que tende a ser a tônica desta modalidade, seja aplicado pelas regulamentações das estatais, com fundamento no próprio procedimento moldável que a Lei nº 13.303/16 apresentou.
Desde a publicação da Lei das Estatais, 'a diretriz sobre a adoção da modalidade pregão eletrônico é discutida sob o espectro da aplicabilidade e utilidade', matéria que ganhou novos contornos com a edição do Decreto nº 10.024/2019.
O Decreto facultou às estatais a utilização do pregão eletrônico, assunto que ficará a cargo do regulamento interno de licitações e contratos de cada entidade, nos termos do art. 40 da Lei nº 13.303/16, fazendo ainda o destaque de que aplicação será apenas no que couber, já pelo normativo entender, ao nosso sentir, que há disposições no Decreto que são incompatíveis com o regime jurídico das empresas estatais.
Diante da inovação, há que se questionar os limites da discricionariedade da aplicação do Decreto nº 10.024/19 às empresas estatais, sob a perspectiva de, em se aplicando, haver derrogação do uso das disposições da Lei das Estatais, no que for conflitante com o novo Decreto ou, ainda, a possibilidade de se admitir, de certa medida, a juridicidade de haver pinçamento apenas os institutos que eventualmente a empresa estatal entender juridicamente viáveis e compatíveis com seus respectivos regulamentos.
Adotando-se o entendimento de que a diretriz é realmente impositiva, um novo problema advirá para as estatais: a revogação da Lei nº 10.520/2002 e a previsão do art. 189 da Nova Lei de Licitações, que determina que aplica-se a Lei nº 14.133/2021 às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, de maneira que poderá ser entendido que as empresas estatais estariam autorizadas a utilizar o pregão trazido pela Lei nº 14.133/2021, o que não parece fazer sentido, especialmente considerando que o art. 1º, §1º da mesma Lei é taxativo ao admitir que não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016.
A discussão ganhou novo relevo com a publicação, em 03 de outubro de 2022, da Instrução Normativa Seges/ME Nº 73/2022, que dispõe sobre a licitação pelo critério de julgamento por menor preço ou maior desconto, na forma eletrônica, para a contratação de bens, serviços e obras, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
Sobre a inovação normativa, destacamos que há expressa previsão para sua utilização por parte das empresas estatais, tendo em vista que, nos termos do art. 2º, os órgãos e entidades da Administração Pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, quando executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, deverão observar as regras e os procedimentos de que dispõe esta Instrução Normativa, exceto nos casos em que a lei ou a regulamentação específica que dispuser sobre a modalidade de transferência discipline de forma diversa as contratações com os recursos do repasse."

Destarte, para a repercussão acerca da utilização do pregão eletrônico, o tema deverá ser amadurecido internamente no âmbito de cada entidade para que primeiro haja debate acerca do entendimento sobre a extensão da diretriz trazida pela Lei nº 13.303/16. Após fincada posição, decidir sobre o uso ou não da modalidade, considerando, ainda, a utilização do próprio sistema que processa os pregões eletrônicos e das regulamentações acessórias da Lei nº 14.133/21.

De maneira objetiva, as repercussões imediatas da Lei nº 14.133/21, e que demandam uma atenção mais forte no sentido de alteração do regulamento interno de licitações e contratos das estatais, são as três aqui apresentadas (crimes licitatórios, critérios de desempate e utilização do pregão eletrônico), mas há, ainda, as repercussões indiretas ou transversais, como o sistema de registro de preços e a ordem cronológica de pagamento, ou ainda a absorção de boas práticas das NLLC, como a exigência de programa de integridade para contratos de grande vulto, a definição de infrações, detalhamento do mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, por exemplo.

 


[1] JUSTEN NETO, Marçal. Os regulamentos internos de licitações e contratos das empresas estatais. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 119, jan. 2017. Disponível em: http://www.justen.com.br/pdfs/IE119/IE%20119%20-%20MJN%20-%20Prazo%20Regulamento.pdf. Acesso em 16 de março de 2022.

[2] Para maior aprofundamento sobre o tema, recomendo leitura do texto "A aplicação analógica da Nova Lei de Licitações e Contratos para as licitações regidas pela Lei das Estatais" disponível em https://www.olicitante.com.br/aplicacao-analogica-nova-lei-licitacoes-lei-estatais/

[3] Art. 55. Em caso de empate entre 2 (duas) propostas, serão utilizados, na ordem em que se encontram enumerados, os seguintes critérios de desempate:

I – disputa final, em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta fechada, em ato contínuo ao encerramento da etapa de julgamento;

II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, desde que exista sistema objetivo de avaliação instituído;

III – os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, e no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993;

IV – sorteio.

Autores

  • é mestranda em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade de Buenos Aires (UBA), especializada em Políticas Públicas, Gestão e Controle da Administração pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF), advogada de carreira empresa pública federal desde 2009, gerente da Procuradoria Jurídica da EPL, professora, autora e palestrante.

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