Opinião

É preciso falar de proteção social e mudanças climáticas

Autor

  • Bruna Borsatto

    é advogada especialista em direito previdenciário no Estado do Rio de Janeiro com experiência profissional junto ao INSS e membra da Comissão de Direitos dos Desastres e Defesa Civil da OAB/RJ.

    View all posts

5 de fevereiro de 2023, 7h07

O ano de 2022 findou com mais evidências de que ações de contenção e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas precisam, urgentemente, pautar a agenda política dos três níveis de governo. As fortes chuvas deixam milhares de desabrigados e causam dezenas de perdas, sejam de vidas, sejam patrimoniais. Isso demonstra que, sem planejamento sério, a intensidade cada vez maior de eventos climáticos extremos vai ser fator de amplo flagelo social, tal qual a seca.

As cidades apresentam, desde os primórdios da expansão urbana, contradições entre meio ambiente artificial e natural. As contradições são ainda mais evidentes nas grandes metrópoles, dadas as suas dimensões demográficas e condições históricas de ocupação. O processo de adensamento populacional segue uma lógica na qual os espaços de melhor habitabilidade são ocupados segundo critérios de renda. Pessoas economicamente mais pobres, assim, vivem em lugares menos desejáveis, em ambientes menos resilientes ao clima e de menor infraestrutura [1].

É possível então perceber que planejamento urbano débil, acesso à terra segundo fatores puramente econômicos e mudanças climáticas de larga escala reforçam as condições de vulnerabilidade social de parcela considerável da população. Enquanto fenômeno climático, a chuva é também um fenômeno político e jurídico, dado o fato de que interage desigualmente com os diferentes grupos sociais, causa danos nem sempre reparáveis e aprofunda a pobreza.

As recorrentes inundações, os deslizamentos e desabamentos, pelos quais, constantemente, é culpada a chuva, na verdade não passam de reflexos de escolhas humanas conscientes.

O objetivo principal deste artigo é tratar a mudança climática como evento de interesse da seguridade social, pois a ocorrência de eventos extremos impacta toda a lógica de proteção presente na Constituição de 1988. No século 21, a seguridade social deve proteger não apenas as pessoas a partir da perspectiva do processo econômico de produção e suas externalidades negativas, mas também aqueles que sofrem os reflexos da produção econômica na dimensão dos danos de ordem climática.

Com efeito, o debate é multidisciplinar. Por exemplo, o estudo do espaço urbano é de fundamental importância para a climatologia geográfica. Devido aos seus processos peculiares de formação, pode-se constatar a existência de um clima também urbano. O uso e a ocupação do solo geram situações que levam à uma realidade climática reprodutora de problemas recorrentes. Além de proteger a natureza, o direito deve pensar em proteger as pessoas quando, literalmente, a casa cai.

Todavia, o panorama entre as chuvas intensas e eventos em decorrência dos defeitos de estrutura do planejamento das metrópoles não se apresenta de maneira direta e evidente. Desse modo, o estudo dos eventos extremos requer intensa análise dos elementos físicos e ambientais e apresenta a necessidade de buscar métodos para mapear as áreas vulneráveis, como estudado pelo acadêmico Iury Tadashi Hyrota Simas, da Unesp (Universidade Estadual Paulista)  [2].

A vulnerabilidade é vista como a característica de um indivíduo ou grupo, definida por sua capacidade de antecipar, resistir ou recuperar-se de um impacto negativo em sua esfera jurídica. Os desastres naturais contemporâneos são consequência da forma de organização da sociedade capitalista. Isto é, os fatores potencializadores do risco ambiental geram lucros privados. Em razão disso, esses mesmos fatores devem ser contabilizados na legislação orçamentária na dimensão da distribuição econômica segundo critérios indicadores de maior vulnerabilidade.

A cidade é o espaço mais frágil de todos. Afinal, a urbanização é marcada pela desigualdade de acesso entre os grupos sociais. A desigualdade de acesso leva à desigualdade de segurança. O mercado imobiliário atua segundos seus interesses e com tolerância regulatória dos governos. Muitos processos de licenciamento acabam cedendo a grupos de interesses econômicos em detrimento do interesse da coletividade. Os prejuízos ambientais, enquanto parte dessa dinâmica, não podem ser socializados à conta dos mais vulneráveis. 

Mesmo que famílias de distintas classes sociais sejam atingidas pelas tragédias climáticas, as de poder aquisitivo mais baixo são as que mais sofrem prejuízos, muitos dos quais morais, com perdas de vida de arrimos de família e de filhos que ajudam no sustento doméstico. A própria assimetria no acesso à informação frente aos riscos já é um fator que agrava essa fragilidade. Após o dano, existe assimetria também no tempo de recuperação e no reassentamento das vítimas. Pessoas de maior renda podem mudar de domicílio mais facilmente.

O que deve ser evidenciado é que, na maioria das vezes, as famílias vulneráveis possuem pouca ou quase nenhuma alternativa frente ao risco e, mesmo com o conhecimento do risco, a sua capacidade de reação continua limitada. Diante desses fatos, e de seu adequado enquadramento no processo econômico de produção, os legisladores devem pensar em mecanismos compensatórios das vítimas de eventos climáticos, mesmo que possuam emprego ou alguma poupança. Planejamento urbanoambiental importa. Mas enquanto falharem, é dever da seguridade social compensar as perdas daqueles que, além de receberem menores salários, são mais expostos a danos.

Em tempos de neoliberalismo, desregulamentação da economia e esvaziamento das competências do Estado, sobretudo no campo dos direitos sociais, o advento de um governo contratraumático desses valores, como o do Brasil de 2023-2026, que se ocupa das questões climáticas e sociais, deve repensar a nossa seguridade social. Por meio de leis adequadas, a serem pensadas por estudiosos e debatidas por representantes das populações mais afetadas pelas mudanças climáticas, os riscos do desenvolvimento pouco ou nada sustentável devem ser cobertos pelo orçamento público, tudo como expressão de uma solidariedade social adequada ao tempo presente.


[2] SIMAS, Iury Tadashi Hyrota. Chuva, vulnerabilidade social e percepção do risco na cidade de São Paulo: impactos de eventos extremos nos bairros da Freguesia do Ó e do M'Boi Mirim. Monografia de graduação em geografia apresentada à Unesp, 2013, acessado em 29.01.2023 aqui.

Autores

  • é advogada especialista em direito previdenciário no Estado do Rio de Janeiro, com experiência profissional junto ao INSS e membra da Comissão de Direitos dos Desastres e Defesa Civil da OAB/RJ.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!