Opinião

Novas tendências da regulação de mídia: sinais do Media Freedom Act

Autor

  • Daniel Eustachio

    é advogado no Bialer Falsetti Advogados doutorando em Direito na Universidade Pompeu Fabra (Espanha) graduado em Direito e mestre em audiovisual pela Universidade de São Paulo (FD e ECA-USP).

4 de fevereiro de 2023, 14h19

A recente onda de regulamentos europeus nos últimos anos vem pautando debates regulatórios em todo o mundo. Para ficar nos mais célebres exemplos no Brasil, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), de 2016, serviu como a principal fonte de inspiração da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); o recém-aprovado pacote Digital Markets Act/Digital Services Act (DMA/DSA), focado em plataformas, já influencia discussões similares no Congresso Nacional e em autarquias; e o AI Act, proposta de regulamento para a inteligência artificial, serviu como referência central para o substitutivo ao PL 21/2021 apresentado pela Comissão de Juristas no Senado.

Mas, para além dos tão falados exemplos acima, há outra nova proposta de regulamento que tem o potencial de ditar novas tendências para o debate da regulação de mídia mundo afora: o Media Freedom Act (MFA), apresentado com o objetivo de garantir a pluralidade e a independência editorial dos serviços de mídia na Europa, atualizando dispositivos da Diretiva de Serviços de Mídia Audiovisuais (a AVMSD), que serve como base da atual regulação de televisão e vídeo sob demanda no continente.

Naturalmente, como se trata de uma proposição no seio do ordenamento jurídico europeu, há elementos que não encontram eco além das fronteiras europeias – pense-se, por exemplo, nas regras de uma nova autoridade regulatória europeia (o European Board for Media Services) ou de interação entre os diferentes reguladores nacionais do bloco continental. Por outro lado, há temas que podem fazer sentir sua influência em outras jurisdições que discutam regulação de mídia:

a) Expansão do conceito de serviços de mídia
No presente, de acordo com a atual AVMSD, serviços de mídia se limitam a duas atividades audiovisuais: a provisão de serviços de televisão ou de vídeo sob demanda. Pela proposta do MFA, a definição de serviços de mídia seria expandida para abranger todas as atividades de oferta de conteúdo informativo, educativo ou de entretenimento realizadas de modo profissional e com responsabilidade editorial.

Desta forma, a definição iria muito além de serviços audiovisuais tradicionais, passando a incluir atividades essencialmente jornalísticas, incluindo em mídia impressa, e até mesmo os influencers – que nada mais são do que pessoas físicas que produzem e/ou fazem curadoria de conteúdos para o público como uma forma de ganhar a vida.

Por trás desta escolha legislativa estão preocupações com o fato de que a comunicação hoje não é mais realizada apenas pelos agentes tradicionais da velha mídia de massa, de modo que a assimetria regulatória entre os diferentes meios e comunicadores passa a ser parte importante da agenda.

b) Distinção entre usuários e comunicadores nas plataformas
Definidos de modo expansivo, os serviços de mídia teriam tratamento diverso no contexto de plataformas como redes sociais, sobretudo devido à avaliação de que seus conteúdos são essenciais para o debate público e, por conseguinte, à democracia. Em concreto, haveria distinção entre usuários finais, que usam as redes para fins pessoais, e usuários profissionais de comunicação, que produzem conteúdo como exercício de uma profissão.

Com relação aos usuários profissionais de comunicação, que seriam basicamente os serviços de mídia, as plataformas ganhariam mais deveres além daqueles já descritos no DSA, passando a ter que oferecer tratamento prioritário de denúncias, informação detalhada sobre motivos de exclusão de conteúdos, relatório anual sobre remoção de serviços de mídia e um diálogo multissetorial orientado ao estabelecimento de boas práticas nas relações com estes serviços.

Trata-se, na verdade, de uma distinção mais específica do que aquela já prevista entre usuários profissionais e finais no DMA/DSA, seja baseado nos conceitos de trader ou business user. Uma distinção que busca dar tratamento diverso àqueles que exercem atividades que caracterizam responsabilidade editorial, entendida como o controle efetivo sobre a seleção e organização dos conteúdos – de modo amplo, e não apenas nos contextos dos serviços de televisão e vídeo sob demanda, como na atual AVMSD.

c) Customização de interfaces
Especificamente no domínio audiovisual, os usuários finais ganhariam um direito de customização, sendo capazes de personalizar as interfaces dos diferentes serviços que oferecem variados conteúdos audiovisuais – pense-se, por exemplo, em agregadores de numerosas ofertas, exibidas ao consumidor em forma de lista ou catálogo.

Expandindo a proeminência de títulos europeus, já normatizada na última revisão da AVMSD, este novo direito parte do princípio de que os conteúdos e/ou serviços audiovisuais devem ser oferecidos de modo plural, possibilitando aos espectadores que organizem a visualização do conteúdo como lhes parece adequado, e não de uma única maneira para todos, o que poderia favorecer a concentração.

d) Análises de pluralidade e independência editorial
Num contexto em que atos de concentração têm cada vez mais lugar no setor de mídia, a proposta propõe que os exames de fusões e aquisições devem ir além da análise econômica, passando a incluir, seja no nível nacional ou a partir do regulador continental, apreciações sobre impactos e salvaguardas à pluralidade de mídia e à independência editorial da entidade resultante, de modo a não prejudicar o papel que eventualmente desempenha no debate público.

Embora se trate de uma proposta que ainda demandaria substanciosa regulamentação para se tornar concreta, já é possível perceber que se busca um critério diferente do preço ou da eficiência econômica para a avaliação de concentrações de mercado no amplo contexto dos serviços de mídia — no qual, afinal de contas, as ofertas podem ser gratuitas ao consumidor, já que baseadas em publicidade.

e) Controles para a publicidade estatal
Com o objetivo de dificultar a captura de serviços de mídia por autoridades públicas, propõe-se que agentes estatais possam contratar espaços de anúncios publicitários apenas com base em procedimentos abertos e não discriminatórios, calcados em ampla transparência sobre agentes beneficiados e preços pagos.

Neste particular, é digno de nota que estes controles não são apenas para as mídias tradicionais, mas para todos os serviços de mídia, o que inclui os influencers — que, embora essenciais para o debate público contemporâneo, ainda podem ser opacos no que diz respeito a seu financiamento.

f) Transparência e códigos de conduta em mensuração de audiência
Segundo a proposta, serviços de mídia, anunciantes ou ainda terceiros autorizados pelos anteriores poderiam ter acesso a descrições detalhadas de metodologias de mensuração de audiência dos serviços de mídia, protegidos os segredos comerciais envolvidos. Mais do que isso, para garantir mensurações imparciais e verificáveis, a proposta incentiva a criação de códigos de conduta costurados entre as diversas partes interessadas, sempre de modo a diminuir a opacidade do mercado ao mesmo tempo em que se preservam suas práticas comerciais consolidadas — neste caso, a extrema cautela que se tem com dados de audiência, principalmente no ambiente digital.

Em especial, o instrumento dos códigos de conduta é de especial relevância na regulação de mídia, já que implica no reconhecimento de que a disciplina pública — sobretudo aquela mais antiga chamada de comando e controle, na qual, grosso modo, o Estado ordena e o particular deve obedecer — pode não ser instrumento regulatório mais adequado para a abordagem de alguns dos problemas complexos do atual cenário da comunicação.

Como a proposta ainda deve passar pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União da Europeia antes de se tornar um regulamento vinculante, muita coisa pode mudar. De qualquer maneira, os dispositivos propostos, ainda que não sejam perfeitos e às vezes mereçam extensas emendas, já se encontram em debate no continente — e em breve talvez deem as caras em âmbitos oficiais no Brasil.

Autores

  • é advogado no Bialer Falsetti Advogados, doutorando em Direito na Universidade Pompeu Fabra (Espanha), graduado em Direito e mestre em audiovisual pela Universidade de São Paulo (FD e ECA-USP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!