Opinião

Marco dos Criptos é suficiente para proteger investidor de fraudes e esquemas?

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2 de fevereiro de 2023, 7h02

Sancionada em dezembro de 2022, a Lei 14.478/2022 trouxe diversas alterações para o mercado brasileiro de criptoativos, que até então contava com apenas atos esparsos visando sobretudo a arrecadação de impostos [1].

Mas será que esta lei, conhecida por Marco Regulatório dos Criptoativos (MRC), é suficiente para proteger o investidor de fraudes e esquemas criminosos?

Para responder ao questionamento lançado, convém explicar as inovações normativas trazidas pelo MRC no âmbito empresarial, regulatório e, sobretudo, criminal do Direito (I), para então analisar se o é suficiente para proteger os investidores de fraudes (II). A resposta, desde já, adianta-se ser negativa, visto que a lei deixou de tratar de diversos pontos importantes (III).

I – Resumo das inovações normativas trazidas pelo MRC
Na esfera cível, o MRC 1) definiu o que são prestadoras de serviços de ativos virtuais e determinou que somente poderão funcionar mediante autorização federal (artigos 2º e 5º); 2) conceituou o que se compreende por ativos virtuais (artigo 3º); 3) estabeleceu princípios e diretrizes que as prestadoras de serviços de ativos virtuais deverão observar (artigo 4º); 4) permitiu a instituições financeiras do mercado tradicional, como grandes bancos, a também atuarem com ativos virtuais (artigo 8º) e 5) definiu que o Código de Defesa do Consumidor será aplicável, no que couber, às relações conduzidas no mercado de ativos virtuais (artigo 13).

No âmbito criminal, 1) acrescentou ao Código Penal o artigo 171-A, criando um tipo próprio de fraude a partir da utilização de ativos virtuais (artigo 10); 2) equiparou as prestadoras de serviços de ativos virtuais à instituição financeira para fins de responsabilização por crimes contra o sistema financeiro nacional (artigo 11); 3) incluiu ativos virtuais no âmbito da Lei de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e aumentou a pena quando a lavagem de ativos se der por meio da utilização de criptomoedas (artigo 12).

II – É o suficiente para proteger os investidores de fraudes?
Primeiramente, é necessário verificar quais são algumas das fraudes que envolvem ativos virtuais, para então analisar se a lei consegue proteger os investidores.

— Front running: realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário [2].

 Insider trading: uso de informação relevante não divulgada no mercado.

— Wash trading: inflar artificialmente o valor de um ativo ao comprar e vender para você mesmo [3].

— Rug pulls: vender ativos virtuais e depois "puxa o tapete" [4].

 Pirâmides financeiras, esquemas Ponzi ou pichardismo: oferta de investimento com altos retornos em que se utiliza dinheiro dos novos investidores para pagar os antigos, sem haver real atividade comercial.

— Oferta irregular de valor mobiliário: ofertar investimento que se caracteriza como um valor mobiliário sem a autorização necessária [5].

 Lavagem de dinheiro: ocultar a origem ilícita de bens ou valores.

— Evasão de divisas: remessa via operação de câmbio não autorizada.

Vê-se assim que a lei tratou de diversos destes atos fraudulentos, como o de Ponzi/pirâmide (171-A), de crimes contra o sistema financeiro nacional, como evasão de divisas e, em parte, oferta irregular de valor mobiliário (artigo 11) e crimes de lavagem de dinheiro (artigo 12). Os chamados Rug pulls podem se enquadrar no artigo 171-A e/ou fraude na entrega da coisa (171, §2º, IV , do Código Penal).

Mas falhou em não tratar de front running, insider trading e wash trading, os quais seguem sem regulamentação. Deixou em aberto a configuração e consequências de ofertas irregulares de valores mobiliários com criptoativos, ficando os investidores e empreendedores apenas com o parecer nº 40/2022 da CVM.

Ainda permanece em aberto se esses e outros pontos serão sanados pelo órgão a ser escolhido como agente regulador pelo Poder Executivo Federal ou pela própria CVM.

É certo que a entrada em vigor do MRC, a ocorrer em junho de 2023, trará algum alento ao mercado e aos investidores, mas não será o suficiente a trazer total segurança (fática e jurídica) aos empreendedores que buscam construir negócios legítimos, para colaboradores que possuem dúvidas sobre a regularidade da empresa para a qual trabalham e para o público em geral e investidores que recebem ofertas de tokens ou investimentos com alto retorno.

As balizas, ainda que mínimas, trazidas pelo Estado não necessariamente suprirão a assimetria informacional entre o mercado cripto e a sociedade. Se Bernie Madoff, responsável pelo maior esquema Ponzi da história, de 65 bilhões de dólares, conseguiu enganar até as autoridades do mercado financeiro tradicional americano, altamente regulado, não será fácil se precaver disso no Brasil apenas com um marco regulatório.

Embora os casos práticos de que se tem notícia envolvendo criptomoedas não costumem chegar a um elevado nível de sofisticação criminosa, o vasto desconhecimento [6] dos criptoativos aliado ao objetivo de lucros astronômicos e rápidos torna o mercado de criptomoedas um cenário perfeito para a prática de crimes.

III – Das lacunas normativas existentes no MRC
Além das colocações feitas acima, há dois outros pontos que afetam o mercado de criptoativos e evidenciam que a Lei, por si só, não será suficiente para se evitar perdas financeiras pela sociedade em geral.

Um primeiro ponto é a inexistência de determinação para a segregação do patrimônio dos clientes e das prestadoras de serviços de ativos virtuais. A segregação sequer precisaria ser do patrimônio integral, afinal de contas nem mesmo as instituições financeiras têm essa obrigação.

Pelo contrário, em âmbito bancário, quando o cliente faz um depósito na sua conta corrente os bancos comerciais ficam com a propriedade do dinheiro e apenas assumem a obrigação de devolvê-lo quando solicitado, sem correção ou juros. A única espécie de segregação que existe é o recolhimento compulsório pelos Bancos de 21% dos depósitos à vista (conta corrente) para o Bacen, podendo operar com o resto [7].

Para os ativos virtuais, com o silêncio da Lei, e no aguardo de eventuais direcionamentos do agente regulador a ser escolhido, a matéria provavelmente será compreendida pelos contratos de depósito (artigos 645 e 586 do Código Civil), o que em nada influencia na prevenção de fraudes.

Não se pretende aqui propor um modelo de segregação patrimonial, mas apenas ressaltar a importância da matéria: deixar claro onde começa e termina o patrimônio do investidor e da prestadora de serviços.

A segunda lacuna versa sobre o aluguel de criptoativos. Aluguel é destinado a bens não fungíveis, como uma casa ou um carro (artigo 565 do Código Civil). Para bens fungíveis, como dinheiro, e até mesmo commodities como soja, fala-se em empréstimo, ou mais precisamente mútuo, o qual é limitado ao rendimento de 1% ao mês (artigo 586). Como criptoativos são fungíveis, esta operação de aluguel não faz nenhum sentido de uma perspectiva jurídica.

A questão aqui é que a Instrução Normativa 1.888/2019 da Receita Federal [8] obriga a quem operar no mercado a informar as operações sobre a "cessão temporária (aluguel)" de criptoativos (artigo 6º, §2º, VI). O intento do Fisco era apenas arrecadatório [9], mas isto gerou um enorme mal-entendido.

Trata-se imprecisão terminológica da Receita Federal, decorrente do fato de que o próprio mercado financeiro tradicional usa o termo "aluguel" de ações, quando na realidade não é aluguel, pois ações são essencialmente fungíveis, mas sim empréstimo [10].

Além disso, o termo aluguel também não é empregado no dia a dia do mercado de criptoativos, nem mesmo feitas operações do gênero. Há outras operações que podem vir a ser consideradas parecidas, mas não o são, como staking, lending, borrowing ou liquidity pools. Apesar de eventuais semelhanças, em nenhuma há promessa nem tampouco histórico de retorno positivo independentemente do mercado.

Se o aspecto regulatório não detém o condão de evitar a prática de fraudes, menos ainda as diversas alterações legislativas de aspecto essencialmente criminal conseguirão fazê-lo. Quase que um jargão, cada vez mais compreendido pela população, é notório que a criação de novos crimes ou o recrudescimento das penas já existentes não costuma gerar efeitos dissuasórios frente às práticas criminosas.

Conclusão
A resposta ao questionamento inicial é "não". O MRC cumprirá importante papel de agora em diante. Todavia, sobre o mercado de criptoativos, em qualquer medida ou posição, requer estudo e, principalmente, assessoramento adequado para que os investimentos sejam feitos de maneira segura e adequada. A lucratividade por meio dos criptoativos somente virá se precedida de um correto mapeamento do cenário a ser explorado, pesquisas sobre a prestadora de serviços de ativos virtuais a ser utilizada e a auto custódia dos ativos por parte de seu proprietário. Quanto maior o aporte a ser realizado neste mercado, maior é a postura preventiva, pois é a única a permitir  ao fim e ao cabo  a obtenção de ganhos em detrimento de perdas.

 


[1] No âmbito da Receita Federal, há as instruções normativas 1888/2018 e 1899/2019, além de atos diversos relacionados ao imposto de renda. No âmbito da CVM vale citar o Parecer de Orientação nº 40/2022. Por fim, quanto ao Bacen merecem menção os Comunicados 25.306/14, sobre a distinção entre moedas virtuais e eletrônicas, 31.379/17, alertando sobre riscos decorrentes de guarda e negociação com moedas virtuais, o qual se limitou a tratar de riscos generalizados por tratar-se de tecnologia nova e ainda não regulamentada  e que entendeu não precisar regulamentar , ao invés de auxiliar os consumidores e investidores a identificar e evitar fraudes; além do Sandbox regulatório (Resolução 77/2021).

[2] Por exemplo, uma exchange recebe uma ordem de compra de um Bitcoin por R$ 100.000,00, e há outro cliente com uma ordem de venda de um Bitcoin por R$ 101.000,00. O correto é a exchange não executar a transação enquanto o comprador não aumentar a oferta ou o vendedor não diminuir o preço. Front running ocorre quando a exchange "se atravessa na frente" e compra um Bitcoin por R$ 100.000,00 do vendedor, e vende ao comprador por R$ 101.000,00, embolsando a diferença como lucro, além das taxas de negociação que eventualmente cobrar. Para o mercado de capitais, está regulado no artigo 27-C da Lei 6.385/76.

[3] Prática que afetou particularmente o mercado de NFTs nos anos de 2021 e 2022.

[4] Essa puxada de tapete pode ocorrer de diversas formas, como o "hard rug pull", mais acentuada, em que o fundador faz a vítima investir no token que acabou de criar, e depois desaparece com o dinheiro de forma escancarada, utilizando alguma função escondida no contrato inteligente. Ou através do "soft rug pull", mais sutil, em que o fundador até pode continuar à frente do projeto, ao invés de desaparecer, mas aos poucos vai vendendo os seus tokens e embolsando os lucros. A principal diferença entre os dois é o quão escancarado fica o intento do fundador de puxar o tapete após a subida do preço e a forma da sua saída.

[5] O boom de ICOs (initial coin offerings, ou oferta inicial de criptoativos, em referência ao IPO initial public offering que ocorre quando empresas abrem o capital na bolsa de valores) ocorrido em 2017 trouxe uma grande preocupação aos reguladores quanto ao uso de criptoativos para captar investimento de forma similar ao que se faz com valores mobiliários. Um dos casos mais paradigmáticos em que se discute isto é o da Ripple v. SEC, em que se discute se a criptomoeda XRP é um valor mobiliário.

[6] Que também, em certa medida e com o devido respeito, está presente nas autoridades brasileiras que lidam com a temática.

[7] Artigo 10, III e IV da Lei 4.595/1964 e artigo 5º da Resolução 189/2022 do Bacen.

[9] Artigo 327, III, do Regimento Interno da Secretaria Especial da Fazenda do Brasil, artigo 113, CTN, artigo 16, Lei 9.779/99 e artigo 57 da MP 2.158-35/2001.

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