Opinião

Financiamento sindical: debate necessário para desatar alguns nós

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2 de fevereiro de 2023, 6h33

Iniciado novo governo, o ministro do Trabalho anuncia a importância da pasta na formulação das políticas para o país e a possibilidade de rever pontos da legislação trabalhista. Pela lógica, há uma discussão que antecederia as propostas porque, em tese, poderia ser determinante de seu êxito: as medidas para fortalecer a organização e ação sindicais. Entretanto, o processo pode ser longo pela complexidade do tema, e o debate político sobre outros tópicos precisa igualmente avançar.

Vários aspectos da estrutura sindical exigem atenção. Priorizo, neste espaço, o financiamento sindical porque ele se tornou crucial. Além de desencadear acirradas controvérsias, vislumbro, com o devido respeito, equívocos em sua abordagem. O foco aqui é estritamente acadêmico, no intuito de questionar interpretações constitucionais, pois o diálogo tripartite é a via privilegiada para avanços em matéria sindical. O fato de lideranças sindicais e o ministro do Trabalho rejeitarem a recriação da contribuição obrigatória anterior à Lei 13.467, de 2017, já significa grande passo. A validação da reforma, nessa parte, pelo STF (ADIs 5.794 e outras e ADC 55) reforça a opção por alternativas em lugar da reversão do fim da obrigatoriedade.

Minha análise busca responder a duas questões centrais nesta temática. A primeira é se a Constituição estabelece as bases do modelo de organização sindical ou se conferiu ao legislador ampla margem para fazê-lo. A segunda questão é se a cobrança de contribuição negocial ou assistencial de não filiados ao sindicato equivale à filiação compulsória contra o texto constitucional que diz que "ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato" (artigo 8º, V, CF).

A primeira questão chegou a ser discutida no STF no julgamento da reforma da contribuição sindical. Concordo que a contribuição sindical não havia sido constitucionalizada, mas entendo que o constituinte fixou os alicerces do modelo sindical, cabendo ao legislador implementá-lo, mas não alterar a sua consistência. Para esta argumentação, utilizarei três modelos de organização sindical: o público, em que os sindicatos são atores vinculado ao estado, com funções de poder público, ainda que como pessoas de direito privado; o privado promocional, que prevê autonomia dos sindicatos em relação ao estado, liberdade de organização e filiação, mas a lei adota medidas para o fortalecimento dos sindicatos; e o exclusivamente privado, em que, além da autonomia, o estado não participa e a liberdade é plena, com ênfase nas escolhas individuais e relações consensuais e sinalagmáticas.

A Constituição de 1988 superou, em parte, o modelo público ao reconhecer autonomia em relação ao estado, mas a unicidade sindical impediu a completa transição para o modelo privado promocional, pela ausência de liberdade na criação e filiação a sindicatos. Por outro lado, o modelo constitucional distanciou-se do exclusivamente privado, ao acatar elementos do público e do promocional, como unicidade, categoria, contribuição para custeio confederativo e contribuição prevista em lei. Assim, o legislador não possui margem para adotar, por exemplo, a liberdade plena sem alteração constitucional, pois desfiguraria o modelo sindical.

No modelo público, o pagamento de contribuições para o sindicato é obrigatório para não filiados, como ocorria antes da Lei 13.467, de 2017; no promocional, é passível de ser obrigatório para não filiados, pois a atividade sindical os alcança; e no exclusivamente privado, fica a critério dos envolvidos. Neste último, o sindicato, além de representar os filiados, é livre para prestar serviços a não filiados, mediante remuneração, como qualquer transação privada, ou por razão estratégica, jamais podendo ser obrigado a fazê-lo.

A substituição da obrigatoriedade pela voluntariedade equivale, no tocante à contribuição, à adoção do modelo exclusivamente privado, apesar da contraditória destinação de parte dela ao estado. Essa opção legislativa foi considerada constitucional pelo STF. Alinho-me a esse resultado, com a ressalva de que a contribuição voluntária não satisfaz a previsão da contribuição prevista em lei no artigo 8º, IV, CF. A contribuição obrigatória era o vínculo jurídico do sindicato com a categoria. Com a contribuição voluntária, esse vínculo se dá com os filiados e os que contribuírem voluntariamente, mas não toda a categoria. A contribuição voluntária nem, sequer, requer lei, pois não decorre de obrigação (artigo 5º, II, CF). A contribuição por lei do artigo 8º, IV, CF integra o modelo promocional e não o exclusivamente privado e passa a ser a base para o sindicato representar toda a categoria.

O que se tem no momento é disfuncional: unicidade e categoria, do modelo público e contribuição voluntária, do exclusivamente privado. Essa combinação onera os sindicatos, criando obrigações como se fossem agentes estatais, e libera os trabalhadores, que deixam de ter quaisquer obrigações com os sindicatos, tornando-se caroneiros em desestímulo à filiação. Ou então libera os sindicatos de atuarem para não filiados e os que não contribuíram, esvaziando as previsões de categoria e unicidade. Essa encruzilhada requer uma solução normativa em sintonia com o modelo da Constituição de 1988.

Após a Lei 13.467, de 2017, defendi, em artigo, a autoaplicabilidade do artigo 7º da Lei 11.648, de 2008 (Lei das Centrais), que previa o fim da contribuição obrigatória com lei disciplinando a contribuição negocial. O dispositivo, apesar da menção à lei, já definiu os sujeitos obrigados, que são os integrantes da categoria; a forma de estipulação, por assembleia geral da categoria; e o fato motivador, a efetiva negociação coletiva, sem exigência de instrumento coletivo para sua arrecadação. Essa contribuição asseguraria a funcionalidade ao sistema, mas depende da revisão jurisprudencial ou lei para superar as controvérsias.

A segunda indagação é mais desafiadora justamente porque envolve mudança da jurisprudência do STF (S.V. 40; RG 935) e do TST (P.N 119; OJ 17 SDC). Penso que a interpretação restritiva de outras contribuições foi a forma de acomodar as decisões do STF que recepcionaram a contribuição obrigatória (RE 180.745-8), ela sim filiação compulsória e manifestamente incompatível com o artigo 8º, V, da CF. Com o fim da obrigatoriedade, seria incoerente entender que contribuições não tributárias de não filiados vinculadas a um serviço, como a negocial ou assistencial, representariam filiação compulsória a sindicatos. É preciso tratar separadamente, as contribuições confederativas do artigo 8º, IV, CF; as contribuições negociais da Lei das Centrais; as contribuições do artigo 513, e, CLT, que é textual em relação a toda a categoria; e as contribuições voluntárias dos artigos 578 e ss, CLT, validadas pelo STF.

A OIT acolhe tanto o modelo exclusivamente privado quanto o promocional, mas não admite o público. A OIT assegura a liberdade sindical positiva e considera que a liberdade negativa não viola os princípios de liberdade sindical. A falta da ênfase à liberdade negativa decorre da aceitação de cláusulas de segurança sindical. É possível a leitura de que a OIT assegura a liberdade sindical negativa contra o monopólio sindical e imposição de contribuição aos trabalhadores. Para a OIT, cláusulas de segurança, como a closed shop de origem anglo-saxônica, não impedem a ratificação das convenções sobre liberdade sindical. Essas cláusulas, utilizadas por países de tradição liberal, buscavam maior racionalidade do mercado e não o prejuízo de trabalhadores e sindicatos. Nos EUA, a closed shop foi proibida em 1947 (Taft-Hartley Act), em razão do rápido crescimento e fortalecimento dos sindicatos após 1935 (Wagner Act). Porém, permanece o pagamento de agency fees pelos trabalhadores não filiados que são representados por sindicatos eleitos pela maioria dos empregados numa unidade de negociação, com caráter obrigatório, salvo nos estados que adotam o right to work introduzido pela Taft-Hartley. O caso Janus da Suprema Corte norte-americana em 2018 aplica-se apenas a servidores públicos, que não são protegidos pelas mencionadas leis, e o julgamento tratou de liberdades constitucionais exigíveis somente contra o poder público. Segundo a OIT, fica a critério de cada estado aceitar ou proibir as cláusulas de segurança sindical, desde que não sejam impostas por lei. Quando admitidas, essas cláusulas devem ser implementadas por instrumento coletivo e não de forma unilateral. Em suma, a OIT aceita o modelo promocional, desde que o estado não substitua os sindicatos, e o exclusivamente privado, em que as contribuições podem ser pagas mediante consentimento dos trabalhadores, inclusive prévio e por escrito, sendo que a OIT não manifesta preferência por um modelo (promocional) ou outro (exclusivamente privado).

A contribuição obrigatória violava os princípios consagrados pela OIT e seu fim abre várias possibilidades interpretativas. As contribuições confederativas, negociais e assistenciais não são impostas, mas permitidas e a previsão em instrumentos coletivos alinharia essas contribuições à doutrina da OIT. A exigência do artigo 611-B, XXVI, de "expressa e prévia autorização" do trabalhador para desconto salarial ou cobrança em instrumento coletivo, que foi além da jurisprudência ao não ressalvar os trabalhadores filiados, não se aplica às contribuições previstas na Constituição e leis, pois sua criação antecede eventual celebração dos instrumentos coletivos. Porém, esta tese não terá acolhida fácil nos tribunais, pelo receio de que essas contribuições resgatem a antiga contribuição obrigatória.

A contribuição negocial pode ser o instrumento para viabilizar a funcionalidade do sistema, sem riscos de retrocesso, já que só cabe se houver efetiva negociação coletiva. A negociação coletiva é elemento essencial na Constituição de 1988 e sua potencialidade como instrumento social depende de bases sólidas para funcionar em consonância com os modelos público e promocional. Apenas o constituinte derivado detém poder para eliminar a unicidade e adotar a livre criação e filiação a sindicatos, o que não significa que ele possa dar um salto completo para o modelo exclusivamente privado, sem salvaguardas promocionais, sob o ponto de vista de uma interpretação sistemática que preserve a identidade constitucional.

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