Opinião

Pela extinção imediata do Carf, que só defende interesse dos grandes devedores

Autores

1 de fevereiro de 2023, 13h19

"E não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem
 ser coisa normal" (Milton e Brant)

Em que país do mundo julgadores indicados por confederações empresariais podem derrubar autuações fiscais e impedir que processos de combate à sonegação cheguem ao judiciário?

O judiciário é o poder da República que resolve as disputas e litígios entre os cidadãos, as empresas e também destes com o Estado. Mas, no Brasil, essa regra não vale quando envolve vultosas hipóteses de sonegação fiscal.

O que é (ou deveria ser) o Carf
De forma resumida, o Carf deveria ser um órgão de revisão administrativa de autuações fiscais realizadas pela Receita Federal. Neste órgão, onde funciona a 2ª e 3ª instâncias da revisão administrativa, juntamente com as Delegacias de Julgamento da Receita Federal (a 1ª instância), deveriam ser canceladas as autuações com erros e equívocos claros cometidos por agentes fiscais. Essa prática saudável, existente na maioria dos países civilizados, ajuda a desafogar o judiciário e poupa recursos privados e públicos com ajuizamento de ações.

Como é a "revisão administrativa" brasileira?
Revisão administrativa é, no sentido semântico da palavra, revisão feita pela administração, por servidores da administração fiscal. É assim em todos os países da OCDE, com exceção dos países nórdicos que tem estruturas ainda mais democráticas, com participação dos usuários de políticas públicas, dos trabalhadores, ou com estrutura independente (Dinamarca) que julga em definitivo o litígio fiscal.

No Brasil a "revisão administrativa" se transformou numa "revisão empresarial" que, muito mais do que rever erros e falhas dos agentes fiscais, submete os instrumentos de combate à sonegação ao poder das grandes corporações e aborta as atribuições do judiciário de solucionar os grandes litígios tributários. As pesquisas existentes demonstram que o modelo brasileiro não existe em nenhum país civilizado.

Não há um único país onde as confederações empresariais indicam julgadores para a revisão administrativa. Desafiamos os defensores desse modelo, principalmente os que se agarram ao fim do voto de qualidade, a provar que estamos errados!

Para nossa vergonha e desgraça enquanto nação, no Brasil impera um modelo com raízes na monarquia portuguesa e nos interesses das oligarquias que sobreviveram à derrocada do regime em 1889. O Carf não é republicano! Suas raízes históricas explicam essa anomalia e, inclusive, como surge o indesejado Voto de Qualidade!

Como são os órgãos de revisão administrativa no mundo?
A revista britânica The Law Review [1], analisou o funcionamento dos contenciosos tributários de 31 países, dentre eles o Brasil. De 27 países, a maioria da OCDE, onde os relatórios são claros sobre a disputa administrativa:

a) Em 24 países os julgadores são vinculados à administração tributária e a análise do recurso é realizada por funcionários desta. Essa constatação vale inclusive para países que têm segunda instância administrativa, como Colômbia, Polônia, Portugal e Rússia;

b) Em dois países — Dinamarca e Finlândia — existem órgãos administrativos independentes da Administração Fiscal. Esses órgãos são formados por julgadores desvinculados desta, mas sem julgadores indicados por associações empresariais.

c) Em um único país (Noruega) com órgão também independente, as associações empresariais, assim como universidades e associações de trabalhadores indicam julgadores. Bem distinto do caso brasileiro, esse modelo tem somente uma instância, dura no máximo dois anos, exige o recolhimento prévio do tributo cobrado para recepção do recurso e suas decisões podem ser questionadas judicialmente inclusive pela Administração Fiscal.

Quando analisado o número de instâncias administrativas dos países analisados pela The Law Review, chega-se à seguinte situação:

a) O Brasil é o único país que possui três instâncias;
b) Em 22 países existem apenas uma instância de revisão;
c) Cinco países (Colômbia, Dinamarca, Polônia, Portugal e Rússia) possuem duas instâncias;
d) Em dois países (Nova Zelândia e Áustria) não há referências à existência de recursos administrativos;
e) Um país (Itália) não prevê revisão administrativa para processos com valor superior a 50 mil euros.

Quanto dura a revisão administrativa nos demais países?
A revisão administrativa concluída no Carf dura, em média, de 9,06 anos. Essa longa duração é um contraste quando comparado com outras nações. Um relatório da OCDE publicado em 2015 [2] e dedicado exclusivamente à questão do contencioso fiscal de 56 países trouxe os seguintes dados:

a) Em 44 países o processo administrativo dura no máximo um ano;
b) Dois países possuem limite legal de três a cinco anos;
c) Em sete países a imposição de prazos não é relevante.

A história dos conselhos de contribuintes
O Carf é fruto da unificação, em 2009, de três Conselhos de "Contribuintes" e do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS), ocorrida como consequência da criação da "Super Receita", mudança organizativa que uniu Secretaria Receita Federal e Secretaria da Receita Previdenciária em 2007.

Descartaremos a história do CRPS, como descartado foi o seu modelo de composição muito mais justa porque tripartite (julgadores do Estado, dos empresários e dos trabalhadores) na criação do Carf. Vejamos o passado e os motivos que fizeram prevalecer sobre um modelo mais novo (o CRPS foi criado em 1966  Decreto-Lei 72/66) um modelo bem mais antigo (e oligárquico) de 1924.

Para superar seguidos déficits orçamentários da União ocorridos nas duas últimas décadas da república velha, foi instituído, em 1922, o Imposto de Renda no Brasil (Lei 4.625/22). Desde o início do século 20 as elites econômicas resistiram, como puderam, à criação do IR. Quando da sua inevitável instituição, as oligarquias, herdeiras de um patrimonialismo anterior à república, buscaram "proteção" contra a cobrança do novo imposto.

Apesar de não constar, direta ou indiretamente na Lei 4.625/22, conseguiram do governo Arthur Bernardes a criação do 1º Conselho de "Contribuintes" em 1924. Vejam bem, através de um decreto (16.580/24), cria-se uma "revisão administrativa" do IR, um tributo que acabava de ser criado e para uma administração fiscal que sequer estrutura tinha e muito menos sobrecarga do tema no judiciário.

Não era, como nunca foi, "revisão administrativa", claro! O conceito e os primeiros modelos de "revisão administrativa" dos países ocidentais somente surgem a partir da década de 1970. Seguindo o modelo das Juntas da Real Fazenda e o Tribunal do Conselho da Fazenda, instituições do Império português, criam o 1º Conselho em 1924 e o 2º. Conselho de Contribuintes em 1927 por um outro decreto (5.157/1927) para julgar processos relacionados aos Impostos sobre o Consumo. Esses conselhos estavam diretamente ligados às oligarquias da época. 

O primeiro presidente do 1º Conselho de Contribuintes foi Leopoldo Bulhões Jardim que era o homem de confiança dos financistas do período. Tinha sido Deputado Geral no Império, na Constituinte de 1891. Foi senador, ministro da Fazenda dos governos Rodrigues Alves (1902 e 1906) e Hermes da Fonseca 1910-1914.  

No 2º Conselho de Contribuintes, o primeiro presidente foi Mário Foster Vidal da Cunha Bastos, que era, simplesmente, presidente da Federação de Seguradores e Diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Quando surge o "voto de qualidade"?
Essa forma vergonhosa durou mais de 40 anos e foi questionada somente no regime militar.  Em 1968 é criada a Receita Federal como a conhecemos e em 1972 o governo contraria os interesses originais dos "conselhos de Contribuintes". Não acaba com a anomalia do controle privado, mas institui o voto de qualidade por meio do Decreto 70.235/72.  Para minorar os efeitos evidentes do conflito de interesses, o presidente das turmas de julgamento (sempre um servidor público) emitiria um voto de desempate quando necessário.

Os contribuintes, pessoas físicas, pequenas, médias e grandes empresas, poderiam (como podem até hoje) recorrer ao judiciário.

A maior "boiada" do governo Bolsonaro
Em 2020, passados quase 50 anos da implantação do voto de qualidade, o ex-presidente Bolsonaro faz renascer o espírito das mais vergonhosas oligarquias econômicas do país. Acabou com o voto de qualidade através da sanção do artigo 28 da Lei 13988/20. Destaque-se que esse ato indigno contrariou pareceres da Receita, da Procuradoria da Fazenda Nacional, do Ministério Público e, inclusive do Ministério da Justiça, ocupado à época pelo ex-juiz Sérgio Moro.

Essa vergonha brasileira é um privilégio concedido a poucos. Só vale para as grandes empresas e super-ricos porque os processos dos pequenos contribuintes sequer chegam ao Carf. Os processos até 60 salários-mínimos já não são julgados no Carf, conforme determinação da mesma lei que resgata acabou com o Voto de Qualidade (artigo 23 da Lei 13988/20).

O tamanho da boiada pode ser medido pelos efeitos do fim do voto de qualidade no ano de 2022. Em números reais foram R$ 25,39 bilhões que escaparam pela vergonhosa porteira aberta da revisão empresarial do combate à sonegação fiscal. Segundo dados obtidos pela LAI  CGU  Carf, os resultados do ano passado são os seguintes:

TIPO DE VOTO / Favorável à Fazenda / Favorável aos autuados / TOTAIS / Cancelamento
Empate – Voto Qualidade / 618.237.664, 56 / 24.771.664.144,18 / 25.389.901.808,74 / 97,57%
Maioria – 14.664.647.323,90 / 36.081.512.500,84 / 50.746.159.824,74 / 71,10%
Unânime – 14.618.459.629,74 / 47.390.338.465,56 / 62.008.798.095,30 / 76,43%
TOTAIS – 29.901.344.618,20 / 108.243.515.110,58 / 138.144.859.72 / 8,7878,36%

Para se obter projeções mais próximas da realidade, excluímos da comparação as decisões "Parcialmente Favoráveis" à fazenda ou aos autuados. A adoção desse critério é importante porque a base de dados da LAI/Carf traz os processos pelos seus valores totais, sem constar os valores mantidos ou cancelados de forma parcial. Assim, temos os seguintes números:

TIPO DE DECISÃO / Favoráveis aos autuados / Favoráveis à
Fazenda / Total Geral / 
% GERAL
Empate – sem Voto Qualidade / 21.585.741.464,10 / 200.856.544,27 / 21.786.598.008,37 / 20,40%
Maioria / 17.360.605.244,13 / 14.262.622.668,15 / 31.623.227.912,28 / 29,60%
Unânime / 39.685.025.733,50 / 13.726.351.696,78 / 53.411.377.430,28 / 50,00%
Total Geral / 78.631.372.441,73 / 28.189.830.909,20 / 106.821.203.350,93 / 100%

Em síntese, se projetarmos 20,40% sobre o estoque atual do contencioso existente no Carf e DRJs (aproximadamente R$1,2 trilhão) R$244,8 bilhões serão cancelados no Carf pelo infame fim do voto de qualidade.

Não há que prevalecer a complacência e a submissão aos interesses mais escusos que a república herdou das oligarquias monárquicas. O sagrado direito de defesa, igual para todos, sem privilégios, é exercido no poder judiciário. Uma revisão administrativa, justa, ágil e contemporânea, precisar considerar a realidade de um mundo que não está mais no século 19.

Que a livre concorrência não seja prejudicada, que os contribuintes de menor capacidade econômica não continuem arcando o ônus da desoneração oportunista e injusta das corporações oligárquicas.

Esperamos bom senso e ousadia dos congressistas brasileiros! Que deem um basta a mecanismos que causam injustiça fiscal e social.

Pelo fim definitivo do Carf!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!