Opinião

Ações de DPVAT e o custo do processo

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6 de dezembro de 2023, 6h32

As ações que visam ao pagamento de indenização securitária, do seguro obrigatório DPVAT, constituem atualmente uma excrescência do sistema. São diversas ações em que o autor simplesmente não concorda com o pagamento administrativo, se não é o máximo da tabela, ou com a negativa absoluta. E nelas todas há uma perícia automática para dirimir a lide.

Veja-se que, para gerar o procedimento, basta que o autor sustente que os valores são injustos face à extensão do dano sofrido. Nenhum argumento técnico, um laudo médico, uma impugnação ao laudo das seguradoras conveniadas, nada é exigido para deflagrar um processo que se desenvolverá com perícia gratuita, a ser feita pelo Instituto Médico Legal, da polícia científica.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Recentemente, publiquei artigo que chama atenção para o uso irracional dos meios de prova [1]. A relação custo-benefício deve ser guia, portanto, um custo excessivamente elevado só se justifica para um bem relevante e, sobretudo, perante uma expectativa razoável de confirmar a tese sustentada. As meras asserções não são mais suficientes para manter um processo civil eficiente, sob a luz da moderna teoria da gestão do caso (“case management”), provocando, pois, uma releitura desde as condições da ação (interesse de agir e legitimidade), passando pela fase probatória e desaguando na decisão imperfeita (por excelência, fato inexorável) mas racionalmente plausível e tempestiva.

Temos jurisprudência grandemente protetiva nas ações de seguro obrigatório, como a necessidade de intimação pessoal para comparecimento à perícia agendada [2] e a possibilidade de condenação a maior que o pedido [3]. Ainda que haja bons motivos para abandonar essa interpretação, já que na contramão da celeridade que, por exemplo, a lei dos juizados especiais quis aplicar mediante a extinção das intimações pessoais [4], fato é que a proposta ora feita não afronta a jurisprudência consolidada e tem, em princípio, um impacto muito maior para a gestão judiciária.

Mesmo sabendo que as taxas e emolumentos judiciários estão longe de custear o gasto processual, especialmente no estado do Paraná, é autoevidente que a gratuidade ancora a balança contábil no lado das despesas, como sói ocorrer nas demandas de DPVAT, em que, por experiência profissional, não se vê o recolhimento de custas.

Para se ter uma ideia, num levantamento com auxílio do DTIC [5], no TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná), entre 2019 e 2022 tramitaram 1.048.565 processos em primeiro grau, sendo destes 645.851 justiça gratuita e o restante justiça paga. Mais da metade entram a custo zero, de maneira que o número de atos, se necessários ou não, não é uma preocupação econômica da parte. A quem resta se preocupar com o dinheiro de ninguém, vale dizer, o dinheiro público?

Pensando não apenas em gasto financeiro do processo, mas também no custo por tempo de tramitação, levantamento neste mesmo período diz que processos com perícia duram em média 676 dias, apenas com audiência 415 dias e sem audiências 233 dias. Chega próximo de triplicar o tempo levado desde o nascedouro ao seu arquivamento, logo, esse acréscimo de tempo e dinheiro deve exigir uma indispensabilidade da prova pericial, se queremos respeitar o contribuinte.

Voltando ao tema das perícias em ações DPVAT, a eficiência probatória, ou o deferimento ponderado de meios probatórios, concerne à interpretação que se confira às expressões “provas necessárias” e “diligências inúteis ou meramente protelatórias”, que constam nos artigos 370 e 371 do Código de Processo Civil.

Para ser necessária, pressupõe-se que seja adequada, cabível, pertinente para esclarecimento de fatos. E mais: sendo adequada, também não possa ser suprida por outros meios ou presunções legais. Esta necessidade deve ver o julgador que, ante um impasse sério no processo, não pode realizar o julgamento sem mais elementos de convicção.

Isso significa que toda lide por onde fatores técnicos gravitam deve receber perícia? Me parece que não.

Por um lado, é possível que o ponto técnico fique incontroverso, pois o nexo causal, por exemplo, é certo, e a ilicitude do comportamento, a culpa ou dolo ou a quantificação de danos resumem a lide. Por outro, o juiz pode observar a verossimilhança de documentos unilaterais, laudos que a parte tenha, os quais, embora não feitos por profissional designado na justiça, tampouco devem ser desmerecidos ou inutilizados, como se o que feito antes do processo nada valesse.

Fosse assim, os assistentes técnicos, durante a perícia, nada poderiam influenciar. Ou o juiz ficaria vinculado ao laudo. Se as partes podem fundamentar a necessidade de segunda perícia, por que, na ausência de perícia, os seus laudos unilaterais são inservíveis?

A ideia aqui é a de que, para ensejar uma perícia, é imprescindível haja um embate sério entre os argumentos e dados técnicos unilaterais, a fim de que terceiro isento possa solucionar a divergência. Mas pensemos na hipótese em que uma das partes tem seus laudos, a sustentar razoavelmente uma posição jurídica, e a contraparte não gera qualquer dúvida razoável a respeito da conclusão destes laudos, pura e simplesmente objeta porque “sabe” da sua incorreção, sem mais dizer além de que seu direito foi violado?

Transpondo esse raciocínio, a ação de DPVAT que comporta a perícia cinge-se àquela em que a parte indique, com elementos técnicos, a existência de lesões não consideradas pela seguradora (sem pagamento administrativo) ou a extensão maior das lesões que foram consideradas pelo médico da empresa (pagamento a menor).

Fora disso, é possível verificar ações aventureiras (sem o mínimo estudo anterior, acerca das probabilidades de êxito), fazendo do Judiciário uma instância administrativa de revisão dos valores pagos. O filtro deveria vir da parte e seu advogado (caso tivessem reais consequências da sua eventual sucumbência); não sendo assim, a fim de zelar pelo regular funcionamento da sua unidade judiciária, a bem de todos e não apenas um processo, o juiz deve conter as demandas extremamente improváveis.

Alguns argumentos, como a restrição de acesso à justiça e também os casos de procedência mesmo sem antes dúvida razoável existir sobre laudos da seguradora, não elidem a conclusão acima. Primeiro, porque todo direito — processual ou material — comporta limites, especialmente quando o abuso afeta o direito alheio (o mesmo acesso à justiça célere e eficaz, para os demais processos em trâmite). Segundo, a vitória eventual não justifica perder-se uma organização judiciária, a que filtre apenas demandas razoáveis ou que aparentem sê-lo, sendo hoje não só uma forma de otimizar os serviços judiciários, mas definitivamente uma questão de viabilizá-los.


[1] ROSSINI, Guilherme. Eficiência probatória: teoria e dados empíricos. In: Revista Judiciária do Paraná, n. 26, jun-ago 2023, p. 266-288

[2] STJ, REsp 1.364.911/GO e REsp 1.309.276/SP

[3] STJ, REsp 1.793.637/PR

[4] Lei 9.099/95, art. 51 §1º

[5] Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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