Opinião

Competência dos municípios e inconstitucionalidades da Lei de Liberdade Econômica 

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21 de agosto de 2023, 13h20

Em setembro de 2019, foi publicada a Lei nº 13.874, conhecida como a da Liberdade Econômica, a qual trouxe uma série de alterações para a economia nacional e no direito municipal.

Quanto à missão desta legislação em reduzir a burocracia nas atividades econômicas, melhorando o ambiente de negócios brasileiro, não há o que criticar. O que se visa analisar neste artigo é a dispensa do alvará de licença e funcionamento para o desenvolvimento de atividades econômicas consideradas de baixo risco, bem como a constitucionalidade da limitação da atividade fiscalizatória municipal.

Com a inexistência de licenciamento prévio das atividades econômicas de baixo risco, o agente econômico teria total liberdade de atuação, ficando sujeito somente a uma fiscalização posterior. Isso significa que para empresas que se enquadrem como atividade de baixo risco inexiste um controle fiscalizatório no momento inicial do empreendimento quanto ao cumprimento das normas de proteção ao meio ambiente, regras urbanísticas, administrativas (segurança do imóvel) e tributárias.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 597.165, já havia definido que a regulação estatal no domínio econômico, seja no plano normativo, seja no âmbito administrativo, deverá seguir o sistema de competência constitucionalmente assegurada ao Poder Público destinada a fazer prevalecer os princípios previstos no artigo 170 da CF/88 [1].

O texto constitucional deixa claro dois critérios importantes para delimitação no plano de competências: predominância e autonomia municipal. Neste sentido, a Constituição de 1988 atribuiu aos municípios o encargo de regular e fiscalizar a atividade econômica no seu território. Mediante a sua prerrogativa de autoadministração e autonomia constitucionalmente atribuída, os municípios, durante o longo período de sua história, criaram regras jurídicas para tratar de assuntos relacionados ao seu interesse, incluindo a fiscalização de empreendimentos econômicos.

Ao encontro destas prerrogativas, a Administração Pública Municipal, com respaldo ao artigo 30, I, da CF/88, criou como pressuposto do início da atividade econômica a exigência do chamado Alvará de Funcionamento e Localização. É através desde documento administrativo que o Município exerce seu poder de polícia em fiscalizar a segurança e regularidade do empreendimento econômico [2].

É através deste poder de polícia que o município consegue garantir a segurança dos cidadãos nos planos urbanísticos, sanitários, tributário etc., tendo como objetivo manter o equilíbrio na liberdade dos indivíduos e a ordem pública.

Ocorre que, a fim de facilitar o registro inicial das novas empresas, o artigo 3º da Lei de Liberdade Econômica previu a desnecessidade de autorização para o inicio das atividades consideradas como baixo risco: "São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal: I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica".

Embora esta lei federal não tenha pretendido – nem poderia – revogar as leis municipais que regulamentam as autorizações das atividades econômicas, certamente haverá divergências regulatórias.

Ressalta-se que não se questiona a "Declaração de Direitos de Liberdade Econômica" na sua integralidade, nem o alcance dos objetivos almejados  até porque os mesmos são legítimos e compatíveis com as diretrizes constitucionais. Ocorre que alguns efeitos da desregulação do Estado no ambiente econômico, mais especificamente no controle de abertura de empresas pelos Municípios, podem gerar distorções futuras com consequências maléficas para a sociedade.

Em primeiro lugar, nota-se que o artigo 3º, §1º, I e II, viola o princípio da legalidade, quando permite que as atividades denominadas de baixo risco possa ser definidas por resolução do Comitê do Segsim. Neste ponto, pode-se encontrar uma ofensa direta ao artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal, na medida em que a (des)regulação econômica somente poderia ocorrer através de lei em sentido formal.

Mas, o maior problema encontrado seria o fato de o governo federal usurpar uma competência constitucional atribuída aos Municípios em regular a atividade econômica em ambiente local.

Claramente, o artigo 3º, §1º, I, viola a competência constitucional dos Municípios em regular o ambiente econômico no âmbito local. Permitir que as denominadas atividades econômicas de baixo risco sejam definidas por ato do Poder Executivo federal, além de gerar o risco de elevada insegurança jurídica, infringe o regime de competência constitucional.

É competência exclusiva do ente público municipal a tarefa de regular o procedimento de abertura de empresas no seu espaço territorial. Os artigos 30 e 170, da Constituição, em nenhum momento disciplinaram que a competência municipal estaria condicionada a uma lei ordinária federal. Com isso, o inciso I, do artigo 3º, da Lei de Liberdade Econômica usurpa flagrantemente a competência municipal ao regular o desenvolvimento de atividades econômicas de baixo risco, dispensando a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação.

Se prevalecer a previsão literal da Lei nº 13.874/2019, os municípios terão enorme dificuldade em ter o controle para realização da fiscalização tributária e urbanística das empresas que exerçam atividade econômica de baixo risco.

O Alvará de Funcionamento e Localização é o instrumento formal utilizado pela Administração Pública, no exercício regular do seu poder de polícia, para expedição de autorizações e licenças, sendo que a localização e a verificação do regular funcionamento de estabelecimentos são espécies desta última.

Este documento atesta a regularidade do empreendimento frente às exigências de regulação urbana. Em outras palavras, a liberação de Alvará de Localização e Funcionamento é um uma espécie de "comprometimento" da Administração Pública Municipal de que o estabelecimento está apto a localizar e funcionar em determinado local.

É neste momento que o município realiza uma análise das regras urbanísticas, segurança, higiene, uso e ocupação de solo, dentre outras – e que, assim, permitem ou não a abertura da empresa em determinado local.

Se, por um lado, a exigência do alvará é um incomodo para o empresário, por outro, representa uma segurança aos usuários e clientes, de que aquele estabelecimento está dentro das normas técnicas. Assim já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça: "O funcionamento de estabelecimentos comerciais em edificações irregulares, sem alvarás de construção e sem habite-se, pode acarretar dano grave à ordem e à segurança pública" [3].

Quando qualquer estabelecimento deixa de cumprir os requisitos legais, a Administração fica não só impedida de conceder-lhes o Alvará, como também fica vinculada às sanções aplicáveis (inclusive fechamento). Tanto a concessão como a cassação do alvará são atividade de plena responsabilidade da Administração Pública, pois se trata de um poder de polícia que a ela é conferido em defesa das atividades e dos bens que afetam ou possam afetar a coletividade. Por ser assim, no exercício deste poder de polícia, o próprio município poderá proceder ao fechamento dos estabelecimentos.

Ainda que exista como matéria de fundo o direito econômico, fica evidente que a regulação do comércio local possui preponderância na atribuição municipal. Sobre a matéria, o STF já se manifestou no sentido de que a competência para disciplinar o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais é do município, conforme atualmente previsto na Súmula Vinculante 38. Isso porque "[…] deve-se entender como interesse local, no presente contexto, aquele inerente às necessidades imediatas do Município, mesmo que possua reflexos no interesse regional ou geral" [4].

Além da inconstitucionalidade sobre as regras de competência, tem-se que notar que as atuais regulações das atividades ditas de baixo risco geram risco de autorizar empresas em desacordo com os postulados de segurança pública.

Imagine-se a situação em que determinado estabelecimento que se autodeclare como atividade econômica de baixo risco não irá sofrer uma fiscalização prévia da prefeitura nem do Corpo de Bombeiros para, ao menos, demonstrar que efetivamente está localizada em área geográfica permitida (zona comercial). Para piorar a situação, a Resolução nº 51/2019 do CGSIM, ao classificar e disciplinar o regime aplicável às atividades de baixo risco, dispensou de fiscalização pelo corpo de bombeiros as empresas sob tais condições.

Assim, se houver uma empresa com estabelecimento que tenha reunião pública até 100 pessoas, reservatório de líquido inflamável até 999 mil litros e 189 kg de GLP, estariam dispensadas de qualquer fiscalização prévia para liberação da atividade econômica. Claramente, uma situação como esta, extremamente perigosa, estaria albergada pelo Lei de Liberdade Econômica, porém destoa completamente dos princípios da razoabilidade e da precaução. Lembre-se que razoabilidade é critério de aferição da lógica empregada pela Administração Pública [5].

Ao contrário do que preceitua a lei, entende-se que deva prevalecer o entendimento de permanecer legitimo ao Município exercer o poder de polícia prévio à instalação e registro das empresas, de modo que nenhuma norma ordinária poderá contrariar o plano de competência constitucional. O que se critica neste artigo é a forma com a qual se impuseram modificações tão agressivas com desrespeito à autonomia legislativa dos municípios.

O procedimento simplificado de licenciamento ambiental para empresas com atividades classificadas como de risco médio já foi analisado pelo Supremo, o qual considerou que houve ofensa às regras constitucionais de defesa do meio ambiente. A discussão ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.808 [6].

Neste julgamento, a Suprema Corte brasileira compreendeu que este sistema simplificado, por mais benéfico que seja em razão da liberdade econômica, poderá representar um retrocesso à fiscalização ambiental. A mesma lógica poderá ser aplicada para a fiscalização urbanística e tributária municipal, situação de extrema importância que afetará a segurança de empreendimentos locais.

De qualquer forma, a liberação automática de empreendimentos de baixo risco representa uma medida desarrazoável, sendo que a atuação da Administração Pública deve seguir os parâmetros da razoabilidade e da precaução, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar.

Acredita-se que a garantia de liberdade da atividade econômica prevista no texto constitucional não abrange a total liberdade de localização e isenção de regras tributárias e de segurança que são de competência municipal.

Além de outros pontos elencados, identifica-se a inconstitucionalidade quanto a este aspecto, por representar uma ofensa ao sistema federativo  ao promover a centralização da decisão sobre a regulação das atividades econômicas de interesse local. Pois bem, se a Constituição Federal de 1988 definiu ser competência municipal o licenciamento e o seu procedimento, somente por lei municipal poderia haver a modificação de tal procedimento.

 


[1] RE 597.165 AgR, relator ministro Celso de Mello, j. 4-11-2014, 2ª T, DJE de 9-12-2014.

[2] Cf. RE 740773 AgR, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 10/05/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-104  DIVULG 17-05-2019  PUBLIC 20-05-2019.

[3] AgRg na SLS 1066/MA  ministro Cesar Asfor Rocha  DJ 18/12/2009.

[4] ADI 3.691, voto do relator ministro Gilmar Mendes, P, j. 29-8-2007, DJE 83 de 9-5-2008.

[5] "Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal das pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidam a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas  e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis , as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada". (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 99).

[6] ADI 6808/DF, relatora ministra Cármen Lúcia, julgamento em 28.4.2022.

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