Opinião

Inconstitucionalidade dos editais para formação de cadastro de reserva

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19 de agosto de 2023, 7h09

Tem se mostrado bastante comum a abertura de editais de concurso para formação do chamado "cadastro de reserva" sem a disponibilização de vagas de provimento efetivo.

Assim tem agido o Poder Público de modo a não se comprometer com o provimento de cargos, na maioria das vezes deixando de realizar a nomeação dos candidatos aprovados, alegando (quando assim o faz) razões de ordem orçamentária.

Agência Brasil
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Ora, a maior parte dos entes públicos detém normativa acerca do planejamento dos concursos públicos, a prever a justificativa prévia de abertura do certame indicando o perfil esperado, as principais funções exercidas, a pretendida alocação da força de trabalho e seu impacto e as necessidades a serem supridas com a contratação, além da reserva de vagas — analisadas a sua origem e a data de criação ou de vacância  e, também, a evolução do quadro de pessoal.

O processo é submetido a vários ministérios e secretarias, a depender do nível de governo, e é feita a dotação orçamentária correspondente com plano de contratações e cálculo do acréscimo da despesa que a medida acarretará, sem olvidar para a análise do impacto financeiro feito à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000). Vide Decreto Federal nº 9.739, de 28 de março de 2019.

Por evidente, não se pode admitir a abertura de um concurso público para a formação exclusiva de "cadastro de reserva", sob pena de atentar contra as balizas acima e contra o postulado do concurso público inserto no artigo 37, I e II da CF/88.

A abertura de concurso público só pode ocorrer na hipótese de existência de cargos ou empregos públicos vagos a serem efetivamente providos por meio de concurso público em que disponibilizadas vagas correspondentes a esses mesmos cargos ou empregos. E claro, realizar-se as nomeações até o fim do prazo do certame, pois como já decidiu o STF por ocasião do julgamento do RE 598.099/MS, os candidatos aprovados dentro do número de vagas em concurso público tem o direito líquido e certo à nomeação, corolário dos deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança dos cidadãos, além de servir ao reconhecimento e à preservação da força normativa do princípio do concurso público, que vincula diretamente a Administração, na linha do que já decidido em outro julgado, ao pronunciar-se a o STF (Supremo Tribunal Federal) no sentido de que o conteúdo de concurso público não se liga ao poder discricionário administrativo, mas ao vinculado, com todos os seus requisitos decorrentes de lei e do edital que obriga não só a candidatos como também à Administração Pública, de sorte que "o ato de provimento de cargo público é ato plenamente vinculado, de cujos critérios legais a administração pública não poderá se afastar nem sobre os quais o edital do concurso poderá dispor de modo diverso" (RE 480.129/DF).

Abrir um certame sem número de vagas definido afigura-se extremamente nocivo para a instituição do concurso público, na medida em que denota uma estratégia por parte do Poder Público utilizada em prejuízo dos direitos individuais dos cidadãos que, ao se inscreverem em um concurso e se submeterem às exigências do edital, criam expectativas não realizadas, aguardando uma incerta e indefinida nomeação.

Para que os candidatos possam manifestar interesse em concorrer em um concurso público, o edital deve conter a descrição dos cargos ou empregos, a quantidade de vagas, a remuneração, o local de trabalho e outros dados relevantes para a decisão do candidato [1].   

Daí que quando cargos públicos são postos em concurso, via do qual se busca selecionar os profissionais mais bem qualificados a exercê-los, pressupõe-se, busca-se atender o interesse público, donde não se há de falar em discricionariedade, haja vista que o ato administrativo é sempre vinculado no que concerne à finalidade. Assim, a nomeação e posse, dentro das vagas oferecidas, não é mais mera expectativa de direito, e sim direito subjetivo dos candidatos aprovados [2].

No caso do concurso exclusivamente para formação do "cadastro de reserva", já se pronunciou o STF no sentido de que causa burla ao princípio do concurso público (AgRg no RE nº 748.186-DF). O STJ reverbera o mesmo entendimento da Suprema Corte. No ponto, REsp 1359516/SP; RMS 37.842/AC; RMS 37.700/RO; RMS 40.900/TO; RMS 38.443/AC; AgRg no RMS 38.117/BA; RMS 31.847/RS e RMS 37.882/AC.

É verdade que o concurso público para formação do "cadastro de reserva" tem previsão legal. O artigo 29 do Dec. nº 9.739/2019,  prescreve que: "Excepcionalmente, atendendo a pedido do órgão ou da entidade que demonstre a impossibilidade de se determinar, no prazo de validade do concurso público, o quantitativo de vagas necessário para pronto provimento, o Ministro de Estado da Economia poderá autorizar a realização de concurso público para formação de cadastro de reserva para provimento futuro".

O dispositivo, de redação questionável e de evidente inconstitucionalidade, estabelece que quando não for possível determinar o quantitativo de vagas durante a validade de um concurso que se abra outro  para… "cadastro de reserva". Vis a vis, o mesmo Decreto, no artigo 6º, incisos IV e V, determina que a proposta de concurso contenha a evolução do quadro de pessoal nos últimos cinco anos, com movimentações, ingressos, desligamentos e aposentadorias e a estimativa de aposentadorias, por cargo, para os próximos cinco anos e o quantitativo de servidores ou empregados cedidos e o número de cessões realizadas nos últimos cinco anos, ou seja, a proposta deve conter o quantitativo, de modo que não é possível ao administrador ignorá-lo e, por conseguinte, ao alegar ignorância, solicitar a abertura de concurso para preenchimento de "cadastro de reserva". A abertura estaria, desde logo, eivada de inconstitucionalidade, por burla ao postulado do concurso público (artigo 37, I e II, CF).

Conquanto o Decreto Federal nº 9.739/2019 permita a realização de concursos para cadastro de reserva, vários tem sido os concursos que não disponibilizam número determinado de vagas, de molde a fraudar os princípios da finalidade, da proteção à confiança, da segurança jurídica, da eficiência e da transparência na disputa de cargos públicos por meio da instituição do concurso público.

A sistemática que deve prevalecer é que, findo o concurso público e proclamado o seu resultado, a administração deverá convocar os candidatos aprovados e classificados dentro do número de vagas para a assunção dos cargos ou empregos públicos, ou seja, deverá nomear os candidatos, ato unilateral que consiste na designação do candidato para ocupar o cargo. É espécie de provimento que é ato pelo qual o servidor público é investido no cargo, emprego ou função. Nomeado, o candidato adquire direito à posse e exercício do cargo, conforme a Súmula 16 do STF [3].

Boa medida, nessa esteira, é o Projeto de Lei nº 939/2019, do deputado federal Pompeo de Mattos do PDT-RS que acrescenta o §3º ao artigo 12 da Lei nº 8.112/1990, com a seguinte redação: "É vedada a realização de concurso público de provas ou de provas e títulos que tenha por finalidade exclusiva a geração de cadastro reserva".

Na justificativa do projeto o deputado cita o RE 598.099/MS e que no entendimento da Corte Suprema não há direito subjetivo à nomeação, conforme o Agravo Regimental MS-AgR 31.790/DF, entendimento que levou diversas instâncias da Administração Pública a optarem pela adoção de concursos em que não se divulgam as vagas efetivamente necessárias aos órgãos demandantes, levando à mera geração de um cadastro que poderá ou não ser acionado para a nomeação de servidores. Além da insegurança gerada nos cidadãos que buscam servir ao seu país, essa situação gera consequências esdrúxulas, como a existência de concursos que, nos dois anos de sua vigência, não nomeiam ninguém. Alguns concursos chegam a perder a validade sem que haja nomeações.

Além da frustração de expectativas, esses concursos geram prejuízos financeiros, pois os candidatos, muitos deles desempregados em busca de uma recolocação profissional, pagam taxas de inscrição e custeiam seu deslocamento, entre outros custos necessários, razão pela qual essa modalidade de concurso deve ser vedada.

Tal projeto mostra-se boa medida para conter a violação aos direitos já mencionados e prestigiar o postulado do concurso público, que o Plenário do STF elevou a princípio, tal sua envergadura: "A acessibilidade aos cargos a todos os brasileiros, nos termos da Lei e mediante concursos públicos é princípio constitucional explícito, desde 1934, artigo 168. Embora cronicamente sofismado, mercê de expedientes destinados a iludir a regra, não só foi reafirmado pela Constituição, como ampliado, para alcançar os empregos públicos, artigo 37, I e II" [4].

 

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[1] Rocha, Francisco Lobello de Oliveira. "Regime Jurídico dos Concursos Públicos". São Paulo: Dialética, 2006 p. 56.

[2] Voto vencido proferido pelo Des. Luiz Sérgio Fernandes de Souza na Apelação nº 0001349-46.2010.8.26.0080  

[3] Rocha, Francisco Lobello de Oliveira… op.cit. p. 60/61.

[4] MS 21.332-1, relator ministro Paulo Brossard, por maioria, DJU de 23/04/1993.

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