Opinião

Mitigação de riscos em contratos de implementação de tecnologia

Autores

  • Daniel Becker

    é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

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  • Augusto Barros de Figueiredo

    é advogado sócio de Barros de Figueiredo Advogados especializado em Direito da Construção e da Infraestrutura com foco específico no uso de métodos alternativos de resolução de litígios diretor para a América Latina da Dispute Resolution Board Foundation (DRBF) vice-presidente de dispute boards do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro de listas de árbitros mediadores e membros de dispute boards de diversas instituições no Brasil e no exterior e Fellow do Chartered Institute of Arbitrators (FCIArb).

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19 de agosto de 2023, 9h14

"O software engoliu o mundo." A frase, que em 2011 serviu de título a um artigo escrito por Marc Andreessen para o Wall Street Journal, nunca foi tão aplicável. Após a Covid-19, é seguro dizer que as companhias que não implementaram tecnologia em alguma escala, maior ou menor, já não existem mais. E mais. A todo o tempo surgem novas tecnologias que garantem a eficiência, escalabilidade e prestação de contas necessárias para o dia a dia das empresas.

Há, portanto, um número crescente de contratos de desenvolvimento e implementação de tecnologia. Contudo, tais projetos podem apresentar desafios em sua execução, seja pela assimetria informacional entre as partes, complexidade técnica, interoperabilidade e segurança, entre outros motivos. Para mitigar tais riscos e garantir o sucesso desses contratos, sugere-se, neste breve texto, a utilização de um método de resolução de conflito nada ortodoxo para essa modalidade de contratação: os dispute boards.

Os dispute boards, também chamados de comitês de solução de controvérsias, surgiram na década de 1970 com o objetivo de evitar que eventuais controvérsias em contratos de construção e infraestrutura se transformassem em um pesadelo litigioso que viesse a atrapalhar o andamento dos trabalhos.

O primeiro caso oficial de uso de um dispute board ocorreu na construção do Túnel Eisenhower no estado do Colorado, nos Estados Unidos, em 1975. Outro exemplo notório e mais contemporâneo de utilização deste método de prevenção e resolução de conflitos foi na construção do Eurotúnel, no Canal da Mancha [1]. Diante de diversos entraves técnicos, financeiros e regulatórios relacionados à construção de um projeto de tal magnitude, o uso do dispute boards mostrou-se um sucesso, permitindo que os prazos fossem, na medida do possível, respeitados [2].

Em apertada síntese, o dispute board pode ser definido como uma junta de profissionais capacitados e imparciais formada, a rigor, no início de um contrato de construção para acompanhar seu desenvolvimento, resolvendo controvérsias que, eventualmente, venham a surgir ao longo da execução. É importante, por óbvio, que o mecanismo esteja previsto contratualmente, a fim de que não haja dúvidas acerca da validade da sua atuação e dos poderes do painel durante a vigência do contrato.

Embora possa variar, é vantajoso que o painel esteja formado e atuante desde a assinatura do contrato e o acompanhe até o final da sua execução para que, assim, seus membros possam acompanhar o dia a dia da execução e se familiarizar com os procedimentos, práticas, aspectos técnicos, intercorrências e, também, com o perfil das equipes que participam da sua execução. Dessa maneira, permite-se uma rápida resolução do problema, uma vez que eventual "fase de conhecimento" conduzida pelo painel fica sumarizada e os conflitos solucionados imediatamente, evitando, como consequência, a acumulação de controvérsias.

Além disso, o acompanhamento constante do empreendimento, permite a intervenção do painel em caráter preventivo, a fim de evitar um agravamento de eventuais transtornos [3]. Afinal, reuniões periódicas, monitoramento contínuo e uma abordagem proativa garantem que as partes envolvidas estejam alinhadas e cientes de suas obrigações e responsabilidades contratuais.

No texto do contrato, é estabelecido um processo claro de notificação de disputas, no qual as partes envolvidas devem informar ao dispute board qualquer problema que surja durante a execução do projeto. Essa notificação deve ser feita de forma oportuna e com informações detalhadas. Quando uma disputa é notificada, o dispute board analisa cuidadosamente as informações fornecidas pelas partes envolvidas, já munido de todo o histórico do contrato e sua execução. Na sequência, os membros conduzem investigações, revisam documentos relevantes e podem solicitar informações adicionais.

Com base nessa análise, o dispute board emite recomendações imparciais para resolver a disputa. Curioso destacar que há indícios de que a mera existência dos dispute boards reduz a litigiosidade e inibe o surgimento de conflitos, e.g. os casos ingleses da construção da Dockland Light Railway e da Salted Private Gas Turbine Power Plant, os quais não tiveram nenhuma disputa submetida ao painel ou à posterior arbitragem [4].

Para a formação do painel, exige-se um número ímpar de pessoas e que, preferencialmente, possuam formações diversas, de forma que as diferentes áreas do conhecimento se integrem para que seja alcançada uma decisão de maior qualidade [5]. Todavia, a despeito de terem sido desenhados para contratos de construção, nada impede que este método ADR seja utilizado em outros tipos de contratos, tais como parcerias público-privadas, concessões, sociedades empresárias e, claro, contratos de tecnologia. Basta que o instrumento seja de longo prazo ou de execução diferida e será vantajoso ter um dispute board implementado [6].

Quando utilizado em projetos de infraestrutura e construção, uma das maiores críticas ao método é o seu alto custo de manutenção, uma vez que este mecanismo extremamente eficiente requer gastos com hospedagem, transporte e disponibilidade integral dos membros do painel para acompanhar as obras, o que em uma análise mais detalhada não se confirma já que os custos jurídicos das disputas e os atrasos no projeto delas decorrentes se mostram na prática muito mais custosos

Comparando com a realidade dos projetos de tecnologia, frequentemente de menor complexidade em comparação com projetos de infraestrutura, com menos componentes físicos e interdependências, a complexidade operacional é reduzida, resultando em uma menor probabilidade de surgirem disputas significativas que exijam uma decisão por parte do dispute board.

Com isso eles tendem a ter uma escala menor e uma duração relativamente mais curta em comparação. Com menos partes envolvidas, menor volume de trabalho e tempo de execução mais curto, a probabilidade de disputas prolongadas e significativas é reduzida mas as pequenas disputas que usualmente acontecem nestes projetos podem ser tratadas de maneira eficiente e sistemática pelo dispute board. Uma vantagem adicional é que projetos de tecnologia apresentam menos riscos físicos em comparação com projetos de infraestrutura. Projetos de infraestrutura estão sujeitos a riscos como condições climáticas adversas, problemas de solo e acidentes de trabalho, que podem levar a disputas complexas e custosas.

Contratos de tecnologia frequentemente lidam uma miríade de áreas, como desenvolvimento de software, licenciamento de propriedade intelectual, proteção de dados, segurança da informação, gerenciamento de projetos, serviços de suporte, entre outros. Abaixo, descrevemos as etapas que, em geral, um projeto de implementação de tecnologia, após o planejamento e definição de requisitos, detém vis à-vis a presença de um dispute board atuante:

1) Design e desenvolvimento: Nessa etapa, a empresa trabalha em conjunto com os fornecedores de tecnologia para projetar a solução e desenvolver uma estratégia de implementação. Isso pode incluir a definição de requisitos técnicos detalhados, o desenvolvimento de protótipos, a personalização da solução para atender às necessidades específicas da empresa e a integração com sistemas existentes. Aqui, o dispute board pode acompanhar de perto o processo, fornecendo orientação técnica e jurídica. Sua atuação visa assegurar que os requisitos técnicos detalhados sejam adequadamente considerados e que a solução seja personalizada de acordo com o que foi previsto em contrato.

2) Testes e validação: Antes da implementação completa, a solução é submetida a testes rigorosos para garantir que esteja funcionando corretamente e atenda aos requisitos estabelecidos. Isso pode envolver testes de funcionalidade, testes de desempenho, testes de segurança e testes de integração com outros sistemas. Os resultados dos testes são avaliados e quaisquer problemas ou falhas são corrigidos. Aqui, o painel pode desempenhar um papel de avaliador imparcial dos resultados e emitir recomendações sobre desempenho, funcionalidade, segurança ou integração da tecnologia.

3) Implementação e migração: Com base nos resultados dos testes, a empresa procede à implementação da tecnologia. Isso pode envolver a instalação física de hardware, a configuração de software, a migração de dados e a integração com sistemas existentes. É importante ter um plano de implementação detalhado, que pode incluir cronogramas, treinamento de funcionários e gerenciamento de mudanças para minimizar interrupções e garantir uma transição suave. O painel poderá atuar a fim de garantir eventuais conflitos relacionados ao plano de implementação detalhado, minimizando interrupções.

4) Treinamento e capacitação: Uma vez que a tecnologia esteja implementada, é necessário fornecer treinamento adequado aos funcionários que utilizarão a nova solução. Isso pode envolver sessões de treinamento, materiais de referência, documentação e suporte contínuo para garantir que os funcionários se familiarizem e aproveitem ao máximo a nova tecnologia. Aqui, os membros podem acompanhar e avaliar a conformidade do treinamento com o contrato, bem como resolver conflitos relacionados a dificuldades na adoção da nova tecnologia e eventual falta de suporte adequado.

5) Monitoramento e manutenção: Após a implementação, é essencial monitorar o desempenho da tecnologia. Isso envolve o acompanhamento de métricas relevantes, a resolução de problemas, a aplicação de atualizações e a realização de manutenção preventiva. O suporte contínuo aos usuários e a avaliação regular da eficácia da tecnologia também são importantes nessa etapa. Aqui, por fim, o dispute board é capaz de prevenir, com recomendações imparciais, e resolver disputas relacionadas ao desempenho inadequado, falhas de manutenção ou falta de suporte técnico adequado.

Embora corriqueiros, projetos de tecnologia podem apresentar alguns desafios. Para mitigar esses riscos e garantir o seu sucesso, a utilização de um mecanismo de resolução de conflitos como o dispute board pode ser altamente benéfica. Com a experiência de décadas no seu uso em larga escala nos contratos de construção e infraestrutura, é possível considerar a sua utilização em outros contratos de natureza distinta. Com efeito, especialização técnica, imparcialidade, resolução de conflitos eficiente e ágil, redução de custos com disputas e manutenção de relacionamentos são alguns dos motivos que devem orientar contratante e contratado a implementar um dispute board em seus contratos de tecnologia.

 


[1] MALINVAUD, Philippe. Reflexiones sur le "dispute adjudication board". Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, 2005.

[2] WALD, Arnoldo. A arbitragem contratual e os dispute boards. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, 2005.

[3] CAIRNS, David J. A; MADALENA, Ignacio. El reglamento de la ICC relativo a los dispute boards. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 10, julho de 2006

[4] CHERN, Cyril. Chern on dispute boards. Londres: Blackwell Publishing, 2008, p. 8. Apud LACRETA, Isabela. Dispute boards: o caráter vinculante de suas decisões In: PINTO, Ana Luiza e SKITNEVSKY, Karin (org.). Arbitragem nacional e internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 212.

[5] MARCONDES, Fernandes. Arbitragem em assuntos de construção: a experência dos painéis mistos. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 19. São Paulo: RT, 2008.

[6] GENTON, Pierre. ICC Dispute Board Rules: practitioners' views, ICC International Court of Arbitration Bulletin, vol. 18, 2007 Apud WALD, Arnoldo. Dispute resolution boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 30. São Paulo: RT, julho de 2011.

Autores

  • é sócio das áreas de contencioso e arbitragem, proteção de dados e inteligência artificial do BBL Advogados.

  • é árbitro e VP do escritório Swot Global Consulting, advogado, mestre em Direito Internacional Privado e do Comércio Internacional pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e diretor para a América Latina da Dispute Resolution Board Foundation (DRBF).

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