Opinião

Congresso poderia aproveitar a reforma tributária para reduzir o contencioso

Autor

  • Tancredo Aguiar

    é advogado especialista em Direito Tributário sócio do Binato Junqueira Pestana Aguiar e Frattini Advocacia e Associado da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt).

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18 de agosto de 2023, 6h01

Os números do contencioso tributário brasileiro são assustadores. Segundo a pesquisa "Os Desafios do Contencioso Tributário no Brasil", da Etco e da consultoria EY, o tempo médio de duração de processos tributários pode chegar a 19 anos, somadas as etapas judicial e administrativa.

Um dos problemas que contribui para tal cenário caótico é a inexistência de norma específica que preveja a prescrição intercorrente no âmbito do processo administrativo tributário, o que impede o encerramento de casos excessivamente morosos.

Essa lacuna legislativa faz com que os processos no âmbito dos conselhos de contribuintes federal, estaduais ou municipais sejam rigorosamente lentos na análise de processos com relação à tomada de decisões.

A não previsibilidade de prescrição no âmbito do contencioso administrativo pode ser um fator para a sua morosidade, haja vista que não há uma consequência prática e de penalidade para o Fisco em razão da lentidão.

É importante observar que as normas do Direito brasileiro comportam a aplicação da analogia, para fins de suprir a ausência de normas específicas.

Nesse contexto, vimos a possibilidade de se aplicar a analogia no âmbito do processo administrativo tributário para viabilizar a caracterização da prescrição intercorrente no âmbito contencioso administrativo, como forma de garantir segurança jurídica e previsibilidade para os contribuintes e também para a própria administração tributária nas esferas federal, estadual e municipal.

Trata-se aqui do fomento de debate da controvérsia, que pode se dar, nesse primeiro momento, apenas a título de reflexão argumentativa e no plano do dever ser, mas que ao mesmo tempo não perde a sua importância prática, considerando que a caracterização da prescrição intercorrente no processo administrativo poderá contribuir com a eficiência do contencioso, além de permitir a concretização do princípio fundamental da duração razoável do processo.

O que autoriza juridicamente a aplicação da prescrição intercorrente no processo administrativo tributário
O Código de Processo Civil, instituído pela Lei Federal 13.105/2015, estabelece:

"Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente."

Como podemos notar, o legislador infraconstitucional, quis expressamente que o Código de Processo Civil fosse aplicado a outros ramos e a outros tipos de processos, de modo a permitir com que entre em cena a analogia, para suprir lacunas legislativas de outras áreas.

A primeira observação que devemos fazer é o fato de que tal norma se encontra localizada no Título Único "Das Normas Fundamentais e da Aplicação das Normas Processuais".

Isso, por si só, coloca o artigo num patamar de especial observância pelos aplicadores e intérpretes do Direito, na medida em que a positivação da letra da lei no âmbito das normas fundamentas, dá ao texto um contorno especial, segundo o qual toda a legislação que carece de regras específicas devem se utilizar dos institutos que o Código de Processo Civil oferece.

O professor Lúcio Delfino leciona:

"Problemas redacionais: o art. 15 apresenta composição linguística tecnicamente inadequada. Tenha-se em mente, num primeiro momento, que o CPC/2015 se assume como sistema normativo geral em matéria processual não penal, de maneira que, de um modo ou de outro, sua utilização se impõe para enriquecer leituras de textos legais contidos em diplomas de igual natureza — sobre a nomenclatura direito processual e sua amplitude de uso, verificar comentário no item anterior. Dele o intérprete extrai luzes para iluminar a prática de atos, os caminhos e as técnicas procedimentais a serem utilizados quando, diante das peculiaridades do caso concreto, surjam equivocidades ou vazios em leis processuais especiais. E isso se aplica, ao contrário do que sugere o art. 15 do CPC/2015, não apenas aos litígios de natureza eleitoral, trabalhista e administrativa, mas a todos os conflitos de interesses cujas pretensões envolvam direito não penal – por exemplo, de cunho ambiental, consumerista ou tributário. De resto, bastaria que a lei fizesse alusão à subsidiariedade (do latim subsidium), pois o que subsidia contribui, seja aditando, suplementando ou colmatando. De toda sorte, prevalece em doutrina que: i) quando a lei especial não se apresentar abrangente a respeito de determinado instituto, aplicar-se-á supletivamente a lei geral a fim de complementá-la ou aperfeiçoá-la; e ii) quando a lei especial não disciplinar em nada determinado instituto, aplicar-se-á subsidiariamente a lei geral como forma de suprir lacunas existentes.
Normas fundamentais processuais: são normas fundamentais processuais aquelas que conferem conteúdo à garantia contrajurisdicional do processo (= devido processo legal; processo como instituição e garantia). E como ensina Antonio Maria Lorca Navarrete, é a Constituição que cuida da chamada substantividade garantista do processo (NAVARRETE, Antonio Maria Lorca. El derecho procesal como sistema de garantias. Boletin Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XXXVI, n. 107, mayo-agosto de 2003, pp. 531-557). Portanto, o que fez o legislador foi apenas transplantar, para o capítulo inaugural do CPC/2015, parcela das garantias contrajurisdicionais do cidadão positivadas em âmbito constitucional. Algo coerente, uma vez que as normas fundamentais do processo são de consulta obrigatória, desimportante a natureza do litígio, seja porque permitem uma compreensão adequada e abrangente do sistema processual, seja ainda por socorrer o intérprete na superação de vazios legislativos, antinomias e vícios de inconstitucionalidade" [1].

Diante desse quadro processual, ou seja, da ausência de norma positivada quanto à prescrição intercorrente em matéria tributária para o processo administrativo, tem-se que a regra geral do artigo 174 do Código Tributário Nacional, cuja validade advém do artigo 146 da Constituição, aliada ao artigo 15 do Código de Processo Civil, permite com que se aplique naquele contencioso o instituto da prescrição intercorrente.

Consubstancia-se de fundamental relevo a aplicação do instituto no âmbito do processo administrativo tributário, seja ela federal, estadual ou municipal, na medida em que os contribuintes não podem ser penalizados pela morosidade fiscal nas demandas do contencioso administrativo.

Poderia a reforma tributária trazer luz às trevas do contencioso administrativo?
A PEC 45/2019, por meio de seu substitutivo, promove mudanças importantes no sistema tributário nacional. A princípio, a reforma teria o condão de alterar a tributação sobre o consumo. Mas não fez somente isso, pois ela esta atualizando normas do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículo Automotor (IPVA) e sobre Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

Além de tratar de outros tributos além daqueles relacionados ao consumo, a PEC 45/2019 propõe a criação de cinco novos princípios constitucionais tributários: a defesa do meio ambiente, a transparência, a justiça fiscal, equilíbrio e simplicidade.

Considerando essa amplitude da reforma tributária, para muito além do seu cerne inicial, ou seja, modificar a tributação sobre o consumo, poder-se-ía aproveitar a oportunidade para criar uma obrigação ao legislador de regular, por lei complementar, a prescrição intercorrente em matéria de processo administrativo fiscal, que seria aplicável a todos os entes tributantes: União, Estados e Municípios.

Ponderações finais
O tema ora proposto, notadamente, é tenebroso, pois enfrenta embaraços de ordem institucional e até mesmo renúncias fiscais. Sua importância de debate, contudo, não é menos importante, sobretudo, considerando que o contribuinte além de contar com um sistema tributário altamente complexo, com uma carga tributária elevadíssima e, ainda, com grande falta de segurança jurídica, tem de contar com um contencioso administrativo tributário moroso, sem que o Fisco sofra qualquer espécie de punição pela morosidade.

Defendemos a aplicabilidade do instituto da prescrição intercorrente ao contencioso administrativo tributário, não só por causa da ausência de norma propriamente dita, mas porque o próprio ordenamento jurídico brasileiro permite com seja realizada a pretensa aplicação, com fundamento nas normas positivas já invocadas, bem como na analogia expressamente estabelecida no artigo 100 do Código Tributário Nacional.

Portanto, no nosso sentir, a prescrição intercorrente aplica-se com possibilidade jurídica concreta ao contencioso administrativo tributário, permitindo com que demandas que hoje ocupam a administração tributária de modo indevido e em grande número, sejam extintas dando fluxo ao sistema processual administrativo, de modo, inclusive, a efetivar os princípios da duração razoável do processo e da segurança jurídica.

Poderia, por fim, a reforma tributária proporcionar melhorias para o contencioso, especialmente, criando uma norma constitucional de eficácia limitada para determinar ao legislador infraconstitucional que regulamente a prescrição intercorrente no âmbito do processo administrativo fiscal. A sociedade brasileira agradeceria.

 


[1] DELFINO, Lúcio. Código de Processo Civil Comentado – Belo Horizonte: Fórum, 2020.

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  • é advogado tributarista e especialista em Direito Tributário, sócio do Binato Junqueira Pestana Aguiar e Frattini Advocacia e Associado da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt).

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