Opinião

O habeas corpus perante a Justiça do Trabalho

Autor

  • Roberto Beijato Junior

    é advogado doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

16 de agosto de 2023, 7h17

Dentre as esferas especializadas do Poder Judiciário brasileiro, sabemos que a Justiça do Trabalho é a única que não exerce jurisdição em matéria penal, o que pode ser constatado pela leitura do artigo 114 da Constituição, que define a competência material da Justiça do Trabalho.

Esse entendimento também foi reforçado e consolidado pelo julgamento da ADI nº 3.684, pelo STF, que eliminou qualquer possibilidade interpretativa de se incluir matérias de índole penal dentre aquelas sujeitas à jurisdição trabalhista.

Pois bem. Muito embora o inciso IV do artigo 114 da CF disponha competir à Justiça do Trabalho a apreciação dos: "mandados de segurança, Habeas Corpus e habeas data , quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição", fato é que na prática pouquíssimas eram as hipóteses em que se podia imaginar o cabimento do habeas corpus em detrimento de outros remédios constitucionais. Com a incorporação do Pacto de São José da Costa Rica e a subsequente edição da Súmula Vinculante nº 25, extinguiu-se a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, esvaziando, assim, em larga medida, uma das hipóteses práticas em que poderia caber o habeas corpus perante a Justiça do Trabalho.

Contudo, com a edição do CPC/2015, inclui-se a possibilidade de o juiz adotar medidas atípicas para assegurar o cumprimento de ordens judiciais, consoante extrai-se do inciso IV, do artigo 139 de referido diploma legal.

Uma das medidas que os tribunais passaram a utilizar é a apreensão de passaporte do devedor que, muito embora detenha patrimônio para fazer frente à execução, emprega medidas para frustrar a utilidade do provimento jurisdicional. A constitucionalidade destas medidas foi recentemente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº 5.941.

Pois bem. É inegável que a apreensão de passaporte do devedor impacta diretamente a sua liberdade de locomoção, que ficará restrita ao território nacional e, assim, impactando no direito fundamental descrito no inciso XV, do artigo 5º da CF.

Nesta hipótese, portanto, havendo determinação de apreensão de passaporte por parte de autoridade judiciária pertencente à Justiça do Trabalho, tem-se uma nova hipótese de cabimento do habeas corpus, como remédio constitucional apto à produzir a cessação da violação à liberdade de locomoção do devedor.

Este entendimento foi pacificado no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho e vem sendo seguido pelas instâncias ordinárias, conforme se depreende dos seguintes precedentes:

"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS  HABEAS CORPUS  CABIMENTO  RETENÇÃO DE CNH – RETENÇÃO DE PASSAPORTE  VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LOCOMOÇÃO  MEDIDA EXECUTIVA ATÍPICA  POSSIBILIDADE  LIMITES  NECESSIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.

1. O Habeas Corpus é instrumento constitucional para o resguardo do direito físico de locomoção (ir, vir e ficar) em decorrência da prática de ato ilegal ou com abuso de poder.
2. O Habeas Corpus não é a via adequada para se discutir a legalidade ou a justiça da decisão de primeiro grau que determinou a retenção da Carteira Nacional de Habilitação. O bloqueio da CNH do paciente não afeta direta e irremediavelmente a sua liberdade de locomoção.
3. Por outro lado, a retenção do passaporte, em tese e potencialmente, ameaça e limita diretamente o direito de ir e vir do paciente, estando ele impedido de se locomover livremente para localidades onde é obrigatória a apresentação do passaporte para ingresso, ficando a sua mobilidade restrita ao território nacional.
4. O ato judicial que determinou a retenção do passaporte do paciente é passível de impugnação por meio do habeas corpus, sendo adequada a via eleita.
5. O artigo 139, IV, do CPC/2015 confere poderes ao juiz para adotar medidas executivas atípicas (indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias), inclusive nas ações que tenham por objeto o pagamento em dinheiro.
6. Entretanto, a aplicação das medidas executivas atípicas não é irrestrita e absoluta. Se o executado , efetiva e realmente , não possui bens para saldar a execução, a utilização das medidas atípicas contra ele passa a ter caráter apenas punitivo , e não alcança a sua finalidade de satisfazer o crédito.
7. As medidas executivas atípicas têm lugar principalmente quando o devedor possui patrimônio capaz de suportar a execução, mas injustificadamente se opõe ao pagamento da dívida, postergando ardilosamente a execução e frustrando a satisfação do crédito. A ordem executiva tem que ser realmente necessária para garantir o cumprimento da decisão judicial, devendo ser adequada, proporcional e razoável no caso concreto.
8. Na presente situação, não há no decisum impugnado fundamentos jurídicos suficientes e relevantes para justificar tal medida extrema – retenção do passaporte do paciente. Não foi indicada a existência de provas ou indícios nos autos de que o devedor tem patrimônio para quitar a dívida, mas maliciosamente oculta e blinda os seus bens, impedindo a constrição, ou ainda que o executado mantém estilo de vida incompatível com o seu estado de insolvência e incapacidade econômica.
9. No caso, a liberdade física de locomoção do paciente (deslocamentos internacionais) foi ilicitamente restringida pela decisão arbitrária e ilegal de retenção do passaporte do devedor, sendo necessária a concessão da ordem de habeas corpus para liberar o passaporte do paciente. Recurso ordinário conhecido e parcialmente provido".

(TST – RO: 87900420185150000, relator: Luiz Philippe Vieira De Mello Filho, Data de Julgamento: 18/08/2020, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 26/03/2021).

Por sua vez, no âmbito do TRT da 8ª Região:

"HABEAS CORPUS. APREENSÃO DE PASSAPORTE. VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LOCOMOÇÃO. MEDIDA EXECUTIVA ATÍPICA. LIMITES. PRINCÍPIOS DA NECESSIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. conceder-se á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir. A Constituição Federal em seu artigo 5º XV consagra o direito de ir e vir sendo livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. A adoção de medidas coercitivas na execução encontra seus limites nos princípios da utilidade para o credor e na razoabilidade, não podendo tais atos serem praticados com o único objetivo de causar constrangimentos na seara pessoal do devedor ou lhe comprometerem o sustento, sem qualquer correlação com a satisfação do crédito trabalhista. Ordem de habeas corpus concedida. (TRT da 8ª Região; Processo: 0000911-33.2021.5.08.0000 HCCiv; Data: 25/02/2022; Órgão Julgador: Especializada I; relator: ALDA MARIA DE PINHO COUTO)". (TRT-8 – HCCiv: 00009113320215080000, relator: Alda maria de Pinho Couto, Especializada I, data de publicação: 25/02/2022).

Deste modo, verifica-se que, muito embora, de fato, impere a interpretação segundo a qual o inciso IV do artigo 139 do CPC/2015 permite a adoção de medidas, tais como a apreensão de passaporte, estas não podem ser livremente empregadas. Ficam, assim, submetidas ao exame de proporcionalidade, razoabilidade e necessidade da medida em questão, a qual, por sua vez, pode ser examinada e impugnada pela via do habeas corpus.

Tem-se aqui, então, uma nova possibilidade de utilização do habeas corpus perante a Justiça do Trabalho.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

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