O elemento da proporcionalidade como variável na fixação dos alimentos
14 de agosto de 2023, 12h22
Segundo o Código Civil, no que diz respeito ao direito de família, o dever de prestar alimentos tem origem no vínculo de parentesco, casamento ou união estável, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana e dever de solidariedade familiar, compreendendo tais alimentos as despesas pertinentes à manutenção de uma vida digna, como alimentação, vestuário, moradia, assistência médica, educação, atividades de lazer, etc., conforme dispõe o artigo 1.694, §1º da lei em questão.

Na realidade, para muitos juízes, especialmente nas ações ajuizadas por filhos em face de um de seus genitores, esse referido percentual representa um patamar aceitável e acompanha a expectativa de muitos jurisdicionados diante do imaginário popular (a existência de um percentual para a obrigação alimentar), tornando comum sua aplicação prática no cotidiano do direito de família.
No entanto, o tema é muito mais complexo, sendo comum aos casos a discussão pertinente ao quantum devido para a manutenção digna do alimentando (quem tem direito a receber alimentos) versus a possibilidade financeira do alimentante, o que se denominou na doutrina especializada como binômio alimentar da "necessidade x possibilidade".
Ocorre que, no exercício da advocacia, acompanhamos, com preocupação, as inúmeras decisões proferidas em ações de alimentos que adotam apenas os dois pressupostos fundamentais (necessidade x possibilidade) como fonte para fixação da pensão, desconsiderando totalmente a importância de se aplicar também a proporcionalidade aos casos como elemento variável, nos moldes do que dispõe o artigo 1.703 do Código Civil:
"Artigo 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos."
No afã de solucionar o conflito de maneira mais simplificada, diversos julgados desprezam esse dispositivo legal, atribuindo a cada um dos genitores, de forma igualitária, o custeio de metade das despesas de manutenção do alimentando, sem qualquer investigação da capacidade financeira de ambos os genitores, medida que se mostra imprescindível para a distribuição proporcional das despesas do alimentando, nos moldes do quanto estabelecido pelo legislador no referido artigo 1.703 do Código Civil.
Com o devido respeito, a lógica e regra de que cada genitor deve arcar com 50% das despesas de manutenção do alimentando, independentemente da análise da capacidade financeira de ambos os genitores, pode apresentar significativas distorções na prática. Imaginemos que o poder aquisitivo de um dos genitores, por exemplo, seja vinte vezes superior ao do outro genitor, auferindo um deles, hipoteticamente, salário bruto de R$2.500,00 por mês, e o outro, de R$50.000,00 pelo mesmo período. Diante disso, o genitor com melhor condição financeira opta por matricular o (a) filho (a) na melhor e mais cara escola da cidade, contratar diversos cursos extracurriculares (inglês, natação, xadrez, etc.) e o mais abrangente plano de saúde disponível no mercado, comprar roupas e calçados de marcas famosas, realizando, ainda, frequentes viagens ao exterior com a criança.
No caso hipotético, a elevada capacidade financeira de um dos genitores certamente permitirá maior contribuição deste, que aufere renda superior, nas despesas e necessidades do alimentando, sem prejuízo da efetiva participação do outro genitor, com menor renda, sendo imperioso atribuir-se a cada qual, proporcionalmente, a responsabilidade de custeio de parte das despesas do filho(a) comum, sob pena de levar-se o genitor menos favorecido à ruína financeira, especialmente nos casos nos quais essa diferença de rendas é mais ampla, e as despesas do alimentando tendem a ser elevadas por força das escolhas promovidas unilateralmente por aquele genitor com maior capacidade financeira/contributiva.
Realçando a importância da análise do elemento da proporcionalidade, o Superior Tribunal de Justiça considerou no REsp nº 1.624.050/MG [1], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, ser possível a fixação de alimentos de forma diferente em relação aos filhos, destacando a observância da capacidade contributiva de cada um dos genitores, individualmente, indicando claramente a relevância da proporcionalidade como parâmetro a ser observado na prática.
Nesse sentido, oportuno transcrever lição da professora Maria Helena Diniz sobre o tema:
"Mas, para a manutenção dos filhos, os cônjuges divorciados (por interpretação extensiva por força da EC nº 66/2010) ou separados judicialmente ou divorciados contribuirão na proporção de seus haveres, pouco importando a culpabilidade pela separação ou o fato de ser genitor guardião ou genitor visitante. Ambos têm o dever jurídico de alimentar a prole, proporcionalmente a seus recursos econômicos; logo, o quantum da verba alimentícia terá por parâmetro a necessidade dos alimentandos e a possibilidade econômica de ambos os genitores (CC, art. 1.703)". (DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. v.5. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627802. Disponível aqui. Acesso em: 2/8/2023).
Em recente julgado [2], a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou ser irrelevante a averiguação da capacidade financeira de ambos os genitores, considerando, no caso concreto, apenas a capacidade financeira do genitor recorrente na fixação dos alimentos, o que não nos parece acertado, ocasionando o desequilíbrio na fixação da obrigação alimentar.
Especialmente em tempos no qual a lei, a doutrina e a jurisprudência ressaltam a igualdade entre os genitores à luz do Princípio da Isonomia (artigo 226, §5º, CF), torna-se necessário refletir sobre a aplicação do elemento da proporcionalidade nas ações de alimentos, aplicando-se o alcunhado trinômio (necessidade-possibilidade-proporcionalidade), considerando-se, portanto, as peculiaridades de cada caso, auferindo-se as possibilidades financeiras de cada um dos genitores do alimentando, e assim, levando-se à efeito o ensinamento clássico aristotélico de que a verdadeira igualdade somente se alcança tratando-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Vale lembrar, o dever de manutenção dos filhos é responsabilidade solidária de ambos os pais, não podendo tal dever recair exclusivamente ou desproporcionalmente sobre um dos genitores.
Diferentemente de muitas decisões, a matemática a ser aplicada nas ações de alimentos não é simples, exigindo do magistrado significativa sensibilidade e parcimônia na fixação de alimentos que atendam as necessidades do alimentando, mas que também observem a proporção da real capacidade contributiva de cada genitor e situações que possam diminuir sua capacidade alimentar (existência de outros filhos, eventual menor com necessidades especiais, etc.), evitando assim desigualdades e injustiças.
Por todo exposto, resta claro que não há uma "fórmula mágica" que possibilite a quantificação dos alimentos, mas cabe ao magistrado atentar-se aos pressupostos e elementos apontados na doutrina contemporânea. Nesse sentido, digno de elogio a atenção de alguns julgadores quanto ao que foi alcunhado na jurisprudência como "sinais exteriores de riqueza", conceito bem descrito no Enunciado 573 do CJF, cuja justificativa transcrevemos para melhor compreensão:
"De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o reconhecimento do direito a alimentos está intrinsicamente relacionado com a prova do binômio necessidade e capacidade, conforme expresso no §1º do artigo 1.694 do Código Civil. Assim, está claro que, para a efetividade da aplicação do dispositivo em questão, é exigida a prova não só da necessidade do alimentado, mas também da capacidade financeira do alimentante. Contudo, diante das inúmeras estratégias existentes nos dias de hoje visando à blindagem patrimonial, torna-se cada vez mais difícil conferir efetividade ao artigo 1.694, §1º, pois muitas vezes é impossível a comprovação objetiva da capacidade financeira do alimentante. Por essa razão, à mingua de prova específica dos rendimentos reais do alimentante, deve o magistrado, quando da fixação dos alimentos, valer-se dos sinais aparentes de riqueza. Isso porque os sinais exteriorizados do modo de vida do alimentante denotam seu real poder aquisitivo, que é incompatível com a renda declarada. Com efeito, visando conferir efetividade à regra do binômio necessidade e capacidade, sugere-se que os alimentos sejam fixados com base em sinais exteriores de riqueza, por presunção induzida da experiência do juízo, mediante a observação do que ordinariamente acontece, nos termos do que autoriza o artigo 335 do Código de Processo Civil, que é também compatível com a regra do livre convencimento, positivada no artigo 131 do mesmo diploma processual."
Por óbvio, o presente artigo não pretende exaurir o tema, mas sim instaurar o debate e destacar a relevância do elemento da proporcionalidade como variável a ser observada na fixação da obrigação alimentar, o que se entende essencial ao aprimoramento da prestação jurisdicional.
Em nossa opinião, a observância do dispositivo legal apontado e a aplicação concreta desse elemento importantíssimo na fixação ou revisão dos alimentos, por consequência, respeita o princípio da isonomia e fomenta a dignidade da pessoa humana, equalizando os interesses das partes que compõe a relação jurídica sob enfoque.
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