Opinião

Um novo capítulo na velha discussão sobre o Código Florestal

Autores

  • Rômulo Sampaio

    é doutor em Direito Ambiental pela Pace University mestre (LL.M.) em Direito Ambiental pela Pace University e em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná sócio da prática de Direito Ambiental e Mudanças Climáticas do Mattos Filho Advogados.

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  • Henrique Borges

    é graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) advogado da prática de Direito Ambiental e Mudanças Climáticas do Mattos Filho Advogados e integrante do projeto de pesquisa internacional Justice Environmental Law.

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13 de agosto de 2023, 7h07

Julgado do Superior Tribunal de Justiça de dezembro de 2022 reacendeu o debate sobre a aplicação da Lei Florestal de 2012 (Lei Federal nº 12.651/2012, também conhecida como Nnovo Código Florestal ou, simplesmente, Código Florestal).

Entendeu a 1ª Turma do STJ pela aplicação da Lei 12.651/12 a situações ocorridas na vigência do Código Florestal de 1965 (Lei Federal nº 4.771/65). Permitiu, portanto, a consolidação de situações fáticas para fins de regularização de passivos ambientais constituídos sob a égide do código dos anos 1960.

Esse entendimento aponta para uma correção de rota na jurisprudência do STJ. A partir de uma análise quali-quantitativa dos julgados do STJ desde 2012, nota-se, claramente, dois momentos distintos no posicionamento da corte. Essa distinção temporal é explicada pelo julgamento do STF, em 2018, das ações constitucionais intentadas contra diversos dispositivos do novo Código Florestal (Ação Declaratória de Constitucionalidade 42/DF e Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF).

O STJ enfrentara uma das primeiras discussões sobre aplicabilidade da Lei Florestal no Recurso Especial nº 1.240.122. O julgamento ocorreu em 28 de junho de 2011, anteriormente, portanto, à publicação do novo Código Florestal (de 25 de maio de 2012). Ainda na pendência da publicação do acórdão (que só ocorreu em 11 de setembro de 2012) e do trânsito em julgado, o recorrente tentou a reconsideração da decisão ante o novo regime jurídico instituído pela Lei Florestal de 2012. Argumentava pela aplicação dos artigos 59 e 60 do novo Código Florestal. Pretendia, com isso, que lhe fosse possibilitado a assinatura de Termo de Compromisso (TC) para infrações ambientais ocorridas antes de julho de 2008, com a adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).

Apesar de sequer ter conhecida a petição incidental, por incabível, a 2ª Turma do STJ incursionou no mérito da discussão jurídica de fundo: aplicação da lei no tempo. Afirmou que a nova Lei Florestal não poderia retroagir. Utilizou como argumento a necessidade de reconhecimento de "direitos ambientais adquiridos", o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Deixou de enfrentar, contudo, se o ilícito ambiental caracterizado pelo desmatamento é de trato único ou continuado, neste último caso, a perpetuar no tempo, para efeito da aplicação na lei no tempo.

O mesmo entendimento foi replicado pela 2ª Turma em agosto de 2013. Em acórdão de relatoria do ministro Humberto Martins (AgInt no AREsp 327.687), com referência ao julgado supracitado. reforçou-se, uma vez mais, que a lei nova não poderia retroagir para atingir os direitos ambientais adquiridos. O aspecto temporal (se único ou continuado) inerente à natureza deste tipo de ilícito ambiental novamente deixou de ser considerado.

O pano de fundo para a racionalidade construída por esse entendimento dispunha de nítidos contornos constitucionais. Isso ficou muito claro quando, em 2016, o STF reformou o acórdão do STJ no RE nº 1.055.475/PR. Naquela ocasião, o STF entendeu que o STJ negara vigência a dispositivos de lei federal sem declarar expressamente sua inconstitucionalidade. Atuara, pois, em violação à cláusula de reserva de plenário (artigo 97 da CF e Súmula Vinculante nº 10).

Em fevereiro de 2018, um novo capítulo fora inaugurado pelo STF. Houve declaração expressa de constitucionalidade de inúmeros dispositivos do novo Código Florestal pelo julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 42. A partir de então, tornara-se, por consequência, juridicamente mais desafiador ao STJ manter o seu posicionamento resistente às normas do novo Código Florestal.

Mesmo assim, a mais alta corte infraconstitucional não se deu por vencida. Em maio de 2020, com o julgamento do Recurso Especial nº 1.646.193, a corte lançou mão de mais uma manobra hermenêutica, apesar do voto do ministro relator, Napoleão Nunes. Naquela oportunidade, o relator votou pela rejeição da tese de que supostos direitos ambientais adquiridos impediriam a aplicação do novo Código Florestal. O voto do ministro privilegiou a teoria dos precedentes ao respeitar o entendimento do STF nas ADIs e ADC acima referenciadas.

O ministro Gurgel de Faria abriu divergência. Afirmou que o STJ não estava ingressando no aspecto constitucional do novo Código Florestal. Estaria apenas apreciando a irretroatividade da norma ambiental, amparada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Ao final, contudo, um leve descuido suscitou uma aparente contradição na tese, quando o voto afirmara que o artigo 15 [do novo Código Florestal] traz inovação "que não deve retroagir para alcançar as situações consolidadas antes da vigência da novel legislação, dada a proibição do retrocesso em matéria ambiental".

A proibição de retrocesso, apesar de polêmica, é matéria constitucional e enfrentada pelo STF. O voto do ministro Gurgel de Faria fora acompanhado pelos ministros Benedito Gonçalves e Regina Helena Costa, vencidos os ministros Napoleão Nunes e Sergio Kukina.

Inaugurou-se, então, mais um longo período de enorme insegurança jurídica. Os conflitos afloraram de forma aguda. O STJ decidiu pela afetação da matéria como Tema Repetitivo 1.062, com objetivo de analisar a "possibilidade de se reconhecer a retroatividade de normas não expressamente retroativas da Lei nº 12.651/2012 (novo Código Florestal) para alcançar situações consolidadas sob a égide da legislação anterior".

Em paralelo, uma onda de reclamações constitucionais [1] inundou o STF. As decisões do STF sinteticamente afirmaram que o entendimento de recusa na aplicação da lei com base no princípio do tempus regit actum e do postulado da vedação ao retrocesso ambiental esvazia a eficácia normativa do dispositivo legal cuja validade fora confirmada pelo STF. Os acórdãos do STJ foram sendo derrubados pela mais alta corte do país.

Como sinal de moderação da tensão jurídica criada pelos entendimentos divergentes das mais altas cortes, o STJ levantou a bandeira branca. A 1ª Seção, em outubro de 2021, acolheu questão de ordem da ministra Regina Helena e decidiu que "ao revestir o debate de elementos exegéticos ora puramente constitucionais, ora puramente infraconstitucionais, não é recomendável, em meu sentir, dar prosseguimento, no atacado, sob a sistemática dos recursos repetitivos, à discussão aqui veiculada, voltada a construir solução jurídica única para situações diferentes, o que conflitaria com a vocação do rito processual qualificado". Com base neste entendimento, o STJ cancelou a afetação do Tema Repetitivo 1.062.

Apesar de importante, esta iniciativa não fora suficiente para pacificar a questão. O STJ manteve-se irredutível na tese da inaplicabilidade do novo Código Florestal às situações pretéritas. A insegurança jurídica persistiu até um passado recente, dezembro de 2022, quando uma nova sinalização em sentido contrário pareceu emergir de dentro da mais alta corte infraconstitucional do país.

No apagar das luzes do ano passado, o STJ julgou o Agravo Interno REsp nº 1.668.484, após o STF ter cassado decisão anterior que afastara a aplicação da lei florestal. O julgamento do STJ, portanto, se deu em respeito à ordem do STF para que novo julgamento fosse realizado obedecendo-se ao que restara decidido nas ADIs e na ADC acima referenciadas.

O resultado, como previsto, marcou uma reviravolta no entendimento do STJ, passando-se a admitir a aplicação do novo Código Florestal a situações fáticas pretéritas. O STJ assentou que a eficácia retroativa do novo Código Florestal permitiu o reconhecimento "de situações consolidadas e a regularização ambiental de imóveis rurais levando em conta suas novas disposições, e não à luz da legislação vigente na data dos ilícitos ambientais".

Apesar de se tratar de entendimento isolado, este julgado parece ser o divisor de águas para, finalmente, pacificar matéria que já perdura há mais de uma década. Independentemente de juízos valorativos sobre a qualidade das normas (antigo e novo Códigos Florestais), a resistência insistente à teoria dos precedentes agrava de forma aguda a insegurança jurídica no país. Esse instituto, tão caro a democracias desenvolvidas, veio elevado ao status de norma cogente na Lindb (artigo 30), mesmíssimo diploma legal repetidamente referenciado pelo STJ no debate objeto deste ensaio como fundamento jurídico da sua resistência.

Não se pode perder de vista que a perturbação da segurança jurídica por posições jurisprudenciais seletivas em relação à aplicação da Lindb impõe severos custos à sociedade e ao próprio princípio da proteção ambiental no país, minando os pilares fundamentais sobre os quais são construídos. Preservá-los, pois, é necessário para estabilização das relações jurídicas sociais, ambientais e econômicas. Afinal, essa visão do todo como contraposição a ideais singulares de justiça é também norma a ser observada quando o artigo 20, da mesmíssima Lindb, veda ao julgador decidir "com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". É o que, doravante, espera-se da jurisprudência do STJ neste tema.

 


[1] Para análise completa dos julgados ver BORGES, Henrique R. J. Controvérsias jurídicas intertemporais em torno do cômputo da área de preservação permanente no cálculo da reserva legal. 2021. 81 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/29773/1/2021_HenriqueRibeiroJunqueiraBorges_tcc.pdf. Acesso em 12 jul. 20222 —Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

Autores

  • é coordenador Acadêmico do Programa de Direito e Meio Ambiente da FGV Direito Rio.

  • é graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), advogado da prática de Direito Ambiental e Mudanças Climáticas do Mattos Filho Advogados e integrante do projeto de pesquisa internacional Justice Environmental Law.

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