Opinião

Der Tote erbt den Lebenden e os mortos herdeiros dos vivos

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12 de agosto de 2023, 6h06

O verdadeiro mistério do mundo
é o visível, não o invisível

Oscar Wilde

Um mistério ronda o Direito Civil há pelo menos uma década: podem os mortos herdarem dos vivos? A dúvida foi lançada em artigo publicado em 2012 [1] e recentemente republicado em livro [2]. Diz respeito ao princípio de saisine. Consagrado em francês na fórmula le mort saisit le vif (os mortos se apoderam dos vivos), em alemão o princípio é conhecido como der Tote erbt den Lebenden (os mortos herdam dos vivos).

Reza dito princípio que os herdeiros têm direitos sucessórios imediatos após a morte do autor da herança, para que esta não permaneça sem titular por algum hiato burocrático. Consta no ordenamento brasileiro atual por disposição expressa do Código Civil de 2002, em seu artigo 1.784.

Antes de avançar, é dever registrar: dizer que sou civilista é tão absurdo quanto dizer que sou especialista em direito medieval. Tampouco meu alemão vai muito além do das Buch ist an den Tisch. Nem sou propriamente religioso, menos ainda teólogo ou hermeneuta bíblico. Mas, mesmo com tantas limitações cognitivas, dada a persistência da dúvida por mais de uma década, talvez possa contribuir um pouco para sua superação [3].

Conforme o referido artigo, a tradução direta do princípio poderia levar a equívocos interpretativos, devendo quem pretende exercer uma análise comparatista do Direito tomar cuidados com o manejo de conceitos estrangeiros. De fato, não há como discordar do alerta. Mas parece que a ideia não é bem representada pelo exemplo.

O conceito espantoso [4] da herança dos vivos pelos mortos tem origem bíblica. Mais precisamente, em Números 26:55: "Cada um herdará sua parte de acordo com o nome da tribo de seus antepassados". A parte final explicaria, talvez de melhor forma no original hebraico, a ideia de que os mortos herdam dos vivos.

A construção conceitual seria a seguinte: ao entrar na Terra Prometida, os judeus receberiam terras conforme legado por seus antepassados ao deixarem o Egito. Porém, para fins de equidade e justiça, não se contaria a terra a ser dividida pelo número de antepassados (herdeiros das promessas) que deixaram o Egito, mas pelos seus descendentes contemporâneos (herdeiros dos herdeiros) que entrariam em Canaã. Caso contrário, cada um dos dez filhos de um pai falecido teria muito menos terras que cada um dos três filhos de um outro pai também falecido [5].

A ficção teológico-normativa operaria precisamente para instituir a herança e não tornar coletiva a posse: os herdeiros receberiam igualmente os lotes ao entrarem na Terra Prometida, independentemente da divisão a que seus antepassados fariam jus ao deixarem o Egito; mas receberiam essas terras em nome de seus antepassados, sem solução de continuidade nos direitos (divinos) hereditários [6].

Seriam, então, os vivos que legariam (quantitativamente) as terras aos mortos, para deles próprios imediatamente as herdarem (qualitativamente), em uma relação de retrocausalidade [7] capaz de garantir, simultaneamente, a propriedade privada dos lotes, a legitimidade da posse pelo povo eleito e a distribuição igualitária da Terra Prometida.

Não há, assim, nenhuma questão de tradução ou linguística, menos ainda jurídica, envolvida no espanto causado pela expressão "os mortos herdam dos vivos". A questão é cultural e religiosa.

Falando de cultura, em perspectiva diversa, e bem menos positiva, Marcel Proust também aponta para a mesma ideia de inversão da herança. Ao tratar de como o luto pela morte da genitora transformava sua mãe na própria avó falecida, ele indica como a morte de um soberano — um fato de terceiro, estranho ao sujeito — transforma o sucessor de duque em rei: "[…] devido a um acontecimento de outra ordem e de mais profunda origem, o morto se apodera do vivo, que se torna seu sucessor análogo, o continuador de sua vida interrompida" [8].

Para o francês, não é o herdeiro que dá seguimento à obra do falecido, mas o falecido que se perpetua, dominando a vida do sucessor — le mort saisit le vif. Talvez haja também no francês uma origem bíblica, ou outro elo distante a sinalizar para um mesmo conceito. De plano, como se vê, há razões para também se espantar com a tradução literal e descontextualizada da expressão que retrata a saisine ("o morto se apodera do vivo") [9].

Todavia, o conceito bíblico alemão parece mais explicativo do fenômeno jurídico: garante-se a propriedade por uma ligação direta (e fictícia) entre o bem legado e o herdeiro, a despeito da morte do titular do direito e independentemente de disposições testamentárias ou que tais.

Pode-se traçar um paralelo entre essa ideia e o manejo de precedentes, ao menos em sua acepção mais tradicional e menos brasileira: são os juízes contemporâneos que atribuem sentido aos julgados passados, para dar-lhes a natureza de precedente controlador do caso presente. É dizer: são os julgados "mortos" que herdam essa natureza de precedente dos julgamentos "vivos".

E, aqui, retoma-se, para dela se aproximar, a crítica do autor espantado. De fato, a adoção de termos estrangeiros para demonstração de erudição jurídica é problemática, seja por advogados, seja por doutrinadores, seja por julgadores. Também problemática é a confiança demasiada em dicionários para explicar expressões idiomáticas ou ideias comuns disseminadas em uma sociedade, que não são capturadas puramente pela língua. Mas mais problemática ainda é a incorporação acrítica e isolada de conceitos alienígenas, sem articulação profunda com o direito vivente da origem ou o ordenamento de destino, e neste ponto concorda-se com a crítica articulada.

Dela, o Código de Processo Civil de 2015 é exemplo. Vivenciamos ainda uma fase de transição entre um direito processual de "precedentes", com efeitos jurídicos especificamente positivados, e a teoria (filosofia ou cultura) do direito de precedentes, uma certa autovinculação orgânica ao já decidido. A mudança legal pode ter sido necessária, engenhosa e até útil, mas não se pode jamais esquecer que os "precedentes" e os precedentes são coisas bastante diferentes, e que a mudança somente estará completa quando o ordenamento incorporar como seu o segundo conceito.

Falando em "precedentes" e precedentes, convém apontar que também dentro do mesmo ordenamento podem ocorrer "perdas na tradução". Exemplo gritante parece ser o da "reclamação", conforme prevista no CPC. A Comissão de Juristas, a despeito de todos os méritos, perdeu a oportunidade, talvez por não antever a criatividade defensiva dos tribunais, de introduzir um instituto novo, isento de influências normativas pretéritas, para o exercício do controle da aplicação do "precedente".

O artigo 988 do CPC bem poderia ter criado um "incidente de controle da aplicação de teses vinculantes", mas optou por usar o termo "reclamação" para esse instituto. Não que fosse novidade; quantos tribunais não têm uma "reclamação" regimental, que em nada se confunde com a reclamação constitucional?

Porém, a reclamação infraconstitucional, legal ou processual acabou por receber indevidas influências da reclamação constitucional, ainda apegada à concepção individualista do processo e alheia aos influxos doutrinários que nortearam toda a reforma de 2015. E toda a disciplina infraconstitucional dessa via de impugnação do mal manejo das teses vinculantes pelos tribunais locais acabou esvaziada por força de seu atrelamento meramente terminológico ao instituto constitucional clássico.

Mas isso é tema para outra oportunidade, da qual só cabe antecipar a torcida para que a lei regulamentadora da relevância da questão federal seja mais expressa sobre o cabimento do controle da interpretação das teses vinculantes pelos tribunais que as firmaram.

 


[1] STOLZE, Pablo. Der tote erbt den Lebenden e o estrangeirismo indesejável. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 9, n. 49, p. 91-97, jul./ago. 2012. Reproduzido em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/der-tote-erbt-den-lebenden-e-o-estrangeirismo-indesejavel/121822473

[2] STOLZE, Pablo. Der tote erbt den Lebenden e o estrangeirismo indesejável. In: TESOLIN, Fabiano; MACHADO, André (coords.). Direito federal brasileiro: 15 anos de jurisdição no STJ dos Ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques. Londrina: Editora Thoth, 2023.

[3] Para uma análise mais apropriada do instituto da saisine em perspectiva histórica, recomenda-se a leitura do artigo de Thiago Aguiar de Pádua publicado nesta Consultor Jurídico: O 'de cujos' no espelho: se um morto não herda, quem [d]ele herdará então? (https://www.conjur.com.br/2023-jul-31/direito-civil-atual-morto-nao-herda-quem-dele-herdara-entao)

[4] STOLZE, Pablo. Der tote erbt den Lebenden e o estrangeirismo indesejável. In: TESOLIN, Fabiano; MACHADO, André (coords.). Direito federal brasileiro: 15 anos de jurisdição no STJ dos Ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques. Londrina: Editora Thoth, 2023, p. 921.

[5] PERSICO, Tomer. Parashat Pinchas When the Dead Inherit From the Living. Haaretz, 9. jul. 2015. Disponível em: https://www.haaretz.com/jewish/portion-of-the-week/2015-07-09/ty-article/.premium/parashat-pinchas-when-the-dead-inherit-from-the-living/0000017f-f86c-d887-a7ff-f8ec548f0000. Conforme o artigo, há polêmica entre os intérpretes do Torah acerca do real sentido da norma de divisão, sendo a aqui exposta somente uma das vertentes.

[6] PERSICO, Tomer. Parashat Pinchas When the Dead Inherit From the Living. Haaretz, 9. jul. 2015. Disponível em: https://www.haaretz.com/jewish/portion-of-the-week/2015-07-09/ty-article/.premium/parashat-pinchas-when-the-dead-inherit-from-the-living/0000017f-f86c-d887-a7ff-f8ec548f0000. Conforme o artigo, há polêmica entre os intérpretes do Torah acerca do real sentido da norma de divisão, sendo a aqui exposta somente uma das vertentes.

[7] POLTORAK, Alexander. A curious Case of Retrocausality—Dead Inherit the Living. Quantum Torah. 5. Jul. 2013. Disponível em: https://quantumtorah.com/a-curious-case-of-retrocausality-dead-inheriting-from-the-living/

[8] PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Livro 4: Sodoma e Gomorra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

[9] Sem pretender estender a análise sobre o princípio da saisine, a tradição francesa parece vincular-se a uma origem publicista da norma. Ligada à ideia de que "o rei nunca morre" ou, conforme mais corriqueiro, "rei morto, rei posto", o princípio dava ao rei sucessor legitimidade e poderes inerentes e imediatos, sem depender da consagração da Igreja ou validação pela nobreza, assegurando dominância e estabilidade política. Em determinado momento histórico, era menos um princípio jurídico que uma ideia-força de propaganda política do modelo de monarquia hereditária ainda hoje disseminada. KRYNEN, Jacques. "Le mort saisit le vif". Genèse médiévale du principe d'instantanéité de la succession royale française. Journal des savants, 1984, n. 3-4, p. 187-221. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/jds_0021-8103_1984_num_3_1_1482

Autores

  • é mestrando em Direito e Políticas Públicas no UniCEUB, jornalista pela UEL/PR, especialista em comunicação pública pelo IESB e analista judiciário.

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