Opinião

O dilema da redução de multas contratuais pelos tribunais

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10 de agosto de 2023, 13h14

Quando o assunto é a redução das penalidades contratuais à luz do artigo 413 do Código Civil, o contraditório vem cada vez mais sendo ignorado, apesar da valorização conferida a esse princípio pelo Código de Processo Civil de 2015.

Isso porque, não raras vezes, os tribunais fazem uso da prerrogativa de um poder-dever de redução equitativa da cláusula penal sem que tenha ocorrido qualquer provocação das partes para tanto, muito menos a realização de instrução probatória sobre a matéria na fase de conhecimento [1]. Agarram-se à expressão "a penalidade deve ser reduzida" do artigo 413 do Código Civil e, quando o processo sobe ao segundo grau, operam reduções dos valores das multas contratuais independentemente de se tratar de questão nunca debatida pelas partes, não se ocupando com a oportunização do debate antes de ser proferida a decisão.

De fato, no âmbito da jurisprudência, questão já pacificada é que o artigo 413 do Código Civil não só autoriza, como impõe ao juiz o dever de reduzir a penalidade de ofício quando constatado o preenchimento dos requisitos para tanto, sendo entendida como norma cogente e de ordem pública [2]. Uma vez que esse dispositivo trata de matéria cognoscível de ofício, o limite do efeito devolutivo do recurso dá lugar ao efeito translativo, que permite aos tribunais a apreciação da matéria sem que tenha havido provocação das partes para tanto. Assim, embora o artigo 413 do Código Civil faça menção somente ao "juiz", entendemos que ele permite a redução de ofício, ou seja, sem provocação, em qualquer grau de jurisdição.

Nesse ponto, aliás, o STJ já decidiu que, uma vez que a redução de ofício é possível, não há ilegalidade na redução da multa pelo tribunal mesmo nos casos em que a questão tenha sido suscitada por uma das partes somente em segundo grau [3]. No mesmo sentido, em um caso em que o TJ-SP havia reduzido a cláusula penal sem ser provocado, o STJ consignou que não haveria violação ao princípio da adstrição ou desrespeito aos limites devolutivos da apelação, em razão de a redução da cláusula penal figurar como norma de ordem pública e cognoscível de ofício [4].

Nada obstante, a questão que ora se debate é que, independentemente de ser ou não norma de ordem pública, aplicável de ofício, e independentemente de poder ou não ser suscitada somente em segundo grau, o respeito ao contraditório não pode ser menosprezado, e o debate deve ser oportunizado às partes — o que vem sendo ignorado pelos tribunais.

Analisando-se casos do TJ-SP em que a redução da penalidade contratual foi objeto de decisão em sede recursal, de 44 casos julgados em 2022, em 13 [5] houve a redução da multa de ofício pelo tribunal (1) sem que a matéria tenha sido objeto dos pedidos iniciais, (2) sem que tenha ocorrido instrução probatória a seu respeito em primeiro grau, e (3) sem que a redução tenha sido sequer objeto dos pleitos recursais. Em nenhum desses casos houve a oportunização do debate sobre a redução equitativa da penalidade contratual — isto é, o contraditório foi completamente ignorado.

O que se vê são casos em que os tribunais simplesmente valoram eventual abusividade subjetiva da penalidade contratual e surpreendem as partes com a sua redução, sendo que a possibilidade de redução da multa é apenas informada na sessão de julgamento, após já ter sido decidida pelos desembargadores. Enquanto isso, à parte prejudicada não resta alternativa senão a irresignação muda, já que nunca produziu prova e/ou se defendeu sobre a legalidade e adequação da cláusula penal. E nem poderia, eis que a matéria nunca foi cogitada e a revisão da redução pelo STJ é pouquíssimo provável, vez que a corte já entendeu em outras oportunidades que tal revisão esbarra na Súmula 5 e, conforme o caso, na Súmula 7 [6]. Isto é, a discussão sobre a redução da penalidade contratual livremente pactuada pelas partes nasce e morre no acórdão proferido pelo Tribunal.

O princípio do contraditório previsto no artigo 5°, LV, da Constituição foi redimensionado no atual Código de Processo Civil, por meio dos artigos 9º e 10, tendo sua efetividade e abrangência expandidas. Ambos os dispositivos privilegiam um contraditório efetivo e prévio [7] em detrimento do diferido [8], garantindo o direito de os sujeitos processuais participarem no desenvolvimento do processo e influenciarem no conteúdo de todas as decisões judiciais [9]. Além disso, os dispositivos vedam a prolação de decisões baseadas em questões a respeito das quais não tenha sido oferecida à parte a oportunidade de manifestação [10] — as decisões surpresa [11] — sendo que a inobservância dessa vedação resulta na nulidade da decisão [12].

Mesmo as matérias apreciáveis de ofício, como aquela refletida no artigo 413 do Código Civil, não podem ser apreciadas pelo juiz sem a prévia oportunização do contraditório. Não se pode confundir a possibilidade de o órgão julgador conhecer de ofício determinadas matérias, com autorização ao juiz ou ao tribunal para decidirem a respeito de questão sobre a qual as partes nunca se manifestaram, vindo a surpreendê-las com o conteúdo da decisão. Assim, "[s]empre que o juiz for decidir com base em fundamento não invocado ou debatido pelas partes, deve obrigatoriamente abrir oportunidade para anterior manifestação dos demais sujeitos processuais principais, sem que isso implique restrição aos seus poderes jurisdicionais" [13].

Por óbvio, trata-se de regra não restrita a determinada etapa procedimental, devendo ser garantida a efetiva participação das partes no convencimento do órgão julgador e no resultado da disputa em qualquer grau de jurisdição. Tanto é assim que a vedação à decisão surpresa é transcrita por simetria no Livro dos Processos nos Tribunais (Livro III), no artigo 933, o qual dispõe que o relator deve intimar as partes para se manifestarem, no prazo de cinco dias, se "constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso".

É patente, portanto, a necessidade de se harmonizar a interpretação da aplicação do artigo 413 do Código Civil em conformidade com a regra de posterior ampliação do contraditório trazida pelos artigos 9º e 10 do Código de Processo Civil, refletida também no artigo 933 desse mesmo diploma. Mesmo que se entenda que a regra do artigo 413 do Código Civil traduz norma de ordem pública e cognoscível de ofício, não se pode simplesmente ignorar o direito das partes ao contraditório prévio e a uma efetiva influência no conteúdo das decisões judiciais, tampouco pode se ignorar a clara vedação do Código de Processo Civil à prolação de decisões surpresa pelos órgãos jurisdicionais.

Conforme leciona Giovanni Ettore Nanni ao comentar o artigo 413 do Código Civil, "apesar de se autorizar a redução de ofício, segundo o art. 10 do Código de Processo Civil, bem como seu art. 9º, caput, não é dado ao juiz decidir sem que dê oportunidade às partes para que se manifestem", de forma que, "mesmo em situação passível de diminuição da cláusula penal, deve o julgador provocar o debate a respeito, instando as partes a se pronunciarem, para, depois, deliberar" [14].

Portanto, em sede de recurso, caso o tribunal constate eventual existência de abusividade no valor de multa contratual em voga, as partes deverão ser informadas acerca das questões identificadas que não integravam o objeto do recurso, e o julgamento deverá ser convertido em diligência, a fim de se oportunizar a todos os interessados o exercício do contraditório, com a manifestação por escrito [15] sobre a possibilidade de redução da penalidade. No caso de a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, ela deve ser imediatamente suspensa, sendo inclusive possível a modificação do voto por aqueles que eventualmente já tenham votado [16] depois de exercido o contraditório pelas partes.

O descumprimento da metodologia do artigo 933 do Código de Processo Civil compreende grave e manifesta violação ao contraditório, que poderá implicar na prolação de decisão-surpresa e poderá acarretar no reconhecimento da nulidade da decisão. No entanto, a observância correta desse procedimento, infelizmente, pode ser vislumbrada em apenas alguns casos em que houve a redução da penalidade contratual de ofício em segundo grau [17].

Ora, na medida em que a sistemática do processo civil, que visa a garantir um processo isonômico e colaborativo, não foi pensada para que as partes sejam surpreendidas por decisões fundadas em questões nunca cogitadas e sobre as quais não tiveram a oportunidade de se defender; e que a garantia à influência no resultado do litígio não pode ser isolada, devendo ser ampla e presente em qualquer etapa procedimental, faz-se urgente uma revisão da forma de aplicação do artigo 413 do Código Civil pelos tribunais. O então assim compreendido "poder-dever" de redução das penalidades contratuais não confere carta branca aos Tribunais para transgredirem os princípios processuais e constitucionais basilares, que devem observar os limites do contraditório prévio e efetivo para que as partes sejam previamente chamadas a participar da discussão e contribuir com a decisão, à luz dos preceitos mínimos de um Estado de Direito.

 


[1] TJ-SP; Apelação Cível 1030851-35.2019.8.26.0100; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 08/11/2022; TJPR – 11ª Câmara Cível – 0010693-95.2018.8.16.0194 – Curitiba – Rel.: DESEMBARGADOR RUY MUGGIATI – J. 24.08.2022; Apelação Cível, Nº 50019917520168210010, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Giovanni Conti, Julgado em: 23-09-2021.

[2] STJ. REsp 1.898.738/SP, Terceira Turma, julgado em 23/03/2021; STJ. REsp 1641131/SP, Terceira Turma, DJe 23/02/2017; STJ. REsp n. 1.888.028/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 16/8/2022.

[3] STJ. REsp n. 1.888.028/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 16/8/2022.

[4] STJ. ESPECIAL Nº 1.447.247 – SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Julgado em 19/04/2018.

[5]; TJSP; Apelação Cível 1030851-35.2019.8.26.0100; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 08/11/2022; TJSP; Apelação Cível 0036336-59.2017.8.26.0114; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas – 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 01/09/2022; TJSP; Apelação Cível 1105499-25.2015.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 44ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/08/2022; TJSP; Apelação Cível 1023663-59.2017.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 44ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/08/2022; TJSP; Apelação Cível 1003899-08.2020.8.26.0642; Relator (a): Walter Barone; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ubatuba – 3ª Vara; Data do Julgamento: 28/07/2022; TJSP; Apelação Cível 0007747-09.2012.8.26.0510; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Rio Claro – 4ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 01/06/2022; TJSP; Apelação Cível 1021230-29.2017.8.26.0344; Relator (a): Neto Barbosa Ferreira; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/03/2022; TJSP; Apelação Cível 1088165-36.2019.8.26.0100; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 39ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/03/2022; TJSP; Apelação Cível 1093372-79.2020.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 09/03/2022; TJSP; Apelação Cível 1024019-41.2015.8.26.0224; Relator (a): James Siano; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/12/2022; TJSP; Apelação Cível 1008192-60.2020.8.26.0047; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Assis – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/10/2022; TJSP; Apelação Cível 1001106-24.2021.8.26.0299; Relator (a): Antonio Nascimento; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jandira – 2ª Vara; Data do Julgamento: 14/10/2022; TJSP; Apelação Cível 1056325-69.2018.8.26.0576; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São José do Rio Preto – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/02/2023.

[6] STJ. AgInt no AREsp n. 1.561.610/MG, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 17/2/2020. Inclusive, em um dos casos analisados em que houve a redução da penalidade contratual de ofício pelo TJSP e sem a oportunização de debate a respeito, houve a interposição de recurso especial com vistas a reformar a decisão quanto à redução da penalidade com fulcro no art. 413 do CC, mas o pleito especial restou inadmitido já na origem com base na Súmula 7 do STJ (TJSP; Apelação Cível 1093372-79.2020.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 09/03/2022).

[7] THEODORO JUNIOR, Humberto. Código de Processo Civil anotado. 25. Rio de Janeiro: Forense, 2022 .recurso online. p. 50.

[8] STJ. EDcl no AgRg nos EREsp 1510816/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/05/2017.

[9] BUENO, Cassio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de processo civil, v. 1: arts. 1º a 317, parte geral. .São Paulo: Saraiva Jur, 2017. 1 recurso online. p.77.

[10] FREDIE DIDIER JR – Comentários ao novo Código de Processo Civil / coordenação Antonio do Passo Cabral, Ronaldo Cramer. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 110/112.

[11] Código de Processo Civil comentado [livro eletrônico] / Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery. 3. ed. São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 42/43.

[12] Código de Processo Civil comentado [livro eletrônico] / Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery. — 3. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 49.

[13] STJ. REsp 1.676.027/PR, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Bejamin, Julgado em 26/09/2017.

[14] NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. 2. São Paulo: Saraiva Jur, 2021.recurso online. p. 395.

[15] Enunciado 60 da I Jornada de Direito Processual Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “É direito das partes a manifestação por escrito, no prazo de cinco dias, sobre fato superveniente ou questão de ofício na hipótese do art. 933, § 1º do CPC/2015, ressalvada a concordância expressa com a forma oral em sessão”.

[16] CARVALHO, Fabiano. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 19: da ordem dos processos e dos processos de competência originária dos tribunais: arts. 926 a 993. São Paulo: Saraiva Jur, 2021 1 recurso online. P. @.

[17] TJPR – 18ª Câmara Cível – 0007207-88.2019.8.16.0058 – Campo Mourão – Rel.: DESEMBARGADOR PERICLES BELLUSCI DE BATISTA PEREIRA – J. 02.05.2022.

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