Opinião

Processo administrativo e redução de litígios sobre benefícios previdenciários

Autor

5 de agosto de 2023, 6h32

Como registrado pelo Anuário da Justiça Brasil de 2023 [1], as causas que envolvem o auxílio-doença previdenciário permanecem como um dos temas mais julgados da Justiça brasileira, na qual 92% dos processos judiciais tramitam em primeira instância. O Anuário da Justiça Federal 2022/2023 [2], por sua vez, revela que a maioria dos casos em curso na Justiça Federal se refere a benefícios previdenciários, também sublinhando que as disputas sobre aquele auxílio se posicionam entre os subtemas mais recorrentes.

A imensa quantidade de litígios judiciais sobre benefícios previdenciários aconselha a se priorizar as medidas que reduzam o seu número. Com essa finalidade, este estudo analisa o emprego do processo administrativo como instrumento jurídico capaz de reduzir a litigância judicial, principalmente no que concerne aos benefícios por incapacidade, temporária ou permanente.

Para tanto, os procedimentos adotados nesse tema nos Estados Unidos [3] e na França [4] foram visitados, de modo a observar suas experiências e considerar o seu aproveitamento, constatando-se que, mesmo com seus órgãos previdenciários distintamente estruturados, esses países atuam de modo similar em aspectos relevantes, os quais merecem ser destacados em face do sistema brasileiro.

Uma feição comum aos regimes dos países referidos é a adoção, nos processos administrativos previdenciários, de princípios aplicáveis ao sistema processual inquisitorial, em substituição ao acusatório, sob o pressuposto de que cabe ao Estado assegurar que a pessoa receba o benefício lhe garantido por lei, sendo este um dos principais objetivos do agir administrativo.

Outro ponto compartilhado é o de ser condição para o ingresso de ação judicial que o requerente tenha previamente oferecido, em prazo certo, recurso impugnando a decisão denegatória do benefício. Por fim, esses países atribuem aos órgãos recursais elementos objetivos para lhes conferir maior independência e imparcialidade, de acordo com a conformação das respectivas instituições gestoras.

A adoção de princípios inquisitoriais permite que o cidadão receba no processo administrativo toda a ajuda possível para requerer o direito almejado e comprovar o atendimento aos seus requisitos. Desse modo, ele deve ser orientado e ter amplo acesso a todas as informações necessárias para tal, oferecidas de forma a permitir sua compreensão plena, sejam elas comunicadas por escrito ou prestadas verbalmente. O seu processo deve estar disponível e ele poderá complementá-lo a qualquer momento, inclusive em revisão a ser feita após a edição de decisão administrativa final, evitando-se que sem justo motivo sejam apresentados em juízo provas desconhecidas pelo órgão gestor.

Relativamente à exigência de recurso prévio para ingresso de ação judicial, tal requisito se organiza de modo distintos em cada um dos países. Nos EUA, essa configuração está presente nos processos administrativos revestidos de maior formalidade, nos quais se estabeleceu o direito de, após impugnar decisão denegatória, o recorrente ser ouvido em audiência (hearing) para a apresentação de provas e argumentos lançados em autos formais (on the record).

Já na França, esse recurso será direcionado a comissões distintas, de acordo com a natureza do debate realizado a respeito do benefício. Se o recurso tratar apenas de matéria administrativa, ele será analisado por uma comissão composta de representantes do conselho de administração do órgão gestor (Commission de Re­cours Amiable-CRA). Por outro lado, se o recurso discutir as condições de saúde do requerente, será apreciado por comissão recursal integrada por médicos (Commission Médicale de Recours Amiable-CMRA).

Nos EUA, a exigência de recurso prévio pressupõe ter ocorrido decisão final do órgão gestor para que se possa impugná-la em juízo. Na França, se as comissões não se pronunciarem em até quatro meses, considerar-se-á ter ocorrido negativa implícita ao apelo. Em ambos os países, confere-se maior independência e imparcialidade aos respectivos órgãos recursais.

Diante de problemas jurídicos que em muito dependem de aspectos probatórios de cunho personalíssimo, notadamente sobre questões médicas, vê-se que tais sistemas dotaram a instância recursal de meios capazes de formar e examinar provas e permitir consistente revisão da inicial denegação do benefício, orientando o órgão administrativo recursal a atuar de modo aproximado ao que aconteceria em juízo na fase instrutória do processo. Sob essa perspectiva, pode-se, então, contrastar essas escolhas com a ordenação brasileira.

O ponto de partida para se analisar as abordagens estrangeiras em referência ao modelo brasileiro é o de que a redução de ações judiciais pelo aprimoramento do processo administrativo impõe, em regime orientado pelos princípios centrais ao Estado de Direito, que nos autos administrativos resultantes estejam presentes todos os elementos necessários para que a decisão ali tomada prevaleça, mesmo se contestada perante as cortes judiciais.

Uma vez que a nossa Constituição assegura, em ambos os processos, administrativo e judicial, o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes [5], bem como sua duração razoável [6], cabe avaliar se tais espécies de processo divergem a respeito de um conteúdo suficiente que atenda a esses parâmetros fundamentais, inclusive em sede recursal, e se tal divergência, se verificada, contribui de modo expressivo para o volume de ações judiciais previdenciárias hoje em curso.

Por exemplo, o reconhecimento da hipossuficiência e seus efeitos probatórios no processo judicial [7] exige crescente atenção a esse respeito nas relações do Estado com os administrados. Já sob outra perspectiva, as diferenças sobre o tempo máximo de duração esperado a uma [8] e outra [9] modalidade processual sugere que, para o legislador ordinário, tais preceitos fundamentais poderão ser efetivados de maneira diferente em cada uma delas.

Outro aspecto importante consiste em verificar se o processo administrativo só admitirá recurso com caráter hierárquico ou se haverá maior independência conferida aos integrantes dos órgãos recursais. A constatação de que conselheiros nomeados com mandato e investidos com prerrogativas decidem litígios em várias áreas da administração [10] leva ao questionamento sobre se a ampla defesa e os meios e recursos que lhe são inerentes também tocam a independência do órgão decisório recursal, bem como se a amplitude e a profundidade desses institutos podem variar em função de se decidir sobre matéria de maior dimensão econômica.

No mesmo passo, cabe avaliar se o emprego de mediadores ou árbitros, caminhos que também permitem se eleger agente equidistante às partes, envolve custos que poderão ser suportados pelos mais necessitados, e se o indispensável conjunto probatório que deve apoiar a concessão do benefício poderá ser alcançado por esses meios.

Ao não solucionar de modo satisfatório esses problemas, a estrutura adotada no processo administrativo previdenciário induz a que os procedimentos atinentes tanto à produção como à revisão independente de aspectos probatórios — os quais, nos países citados, são viabilizados em sede recursal administrativa — no Brasil acabem carreados ao Judiciário.

Com isso, inadvertidamente se transfere a este Poder também a condução da atividade administrativa subsequente, compreendendo o eventual deferimento do benefício com apoio nas provas apuradas, a determinação dos seus parâmetros, a sua implantação e o pagamento de eventuais atrasados, chegando-se, por vezes, a também se incluir o acompanhamento judicial da manutenção desse direito.

Com a ação judicial apta a servir como meio regular para a produção e revisão probatória, geralmente com ênfase na função pericial, o seu oferecimento é estimulado, contribuindo para se formar número exponencial de ações em primeira instância. Embora essa função auxilie a posterior celebração de acordo conforme as provas apreciadas, uma vez concretizada essa transação, ela apenas evita o subsequente trâmite nas instâncias superiores, mas não consegue excluir tais processos da esfera judicial, permanecendo a transferência entre Poderes acima identificada.

Além disso, a pouca efetividade do procedimento recursal administrativo diante do processo judicial, como abordado em comparação, afeta a legitimidade de o Estado impor aos requerentes a formação de recurso administrativo como um pré-requisito para ajuizar ações, não se vislumbrando sentido válido na imposição de tal ônus com prazo certo sem que, em contrapartida, desencadeie-se segura revisão da decisão administrativa em sede recursal.

Inegavelmente, a ausência desses limites auxilia a se formar volumoso passivo de parcelas vencidas, o que pode influenciar o tempo de ingresso da ação judicial e desse modo atrasar a possível obtenção do principal bem jurídico disputado. Essa demora agrava a emergencial situação de incapacidade para o trabalho, na qual se espera que o benefício capaz de amenizar os seus penosos efeitos seja implantado o mais rápido possível, em qualquer instância onde ocorra a superação definitiva das objeções jurídicas colocadas pelo órgão gestor.

Por certo que, ao se tornar necessário maior número de intervenientes para a legal concessão do benefício, assim se exigindo não só a participação de servidores especializados do órgão gestor, mas também de procuradores, advogados e juízes, os custos de transação aumentarão de modo correlato. Se essa necessidade, no lugar de excepcional e corretiva, transformar-se em comum, sucederá que a consequente elevação do custo da estrutura procedimental de concessão do benefício terá considerável impacto no sistema previdenciário.

Nesse contexto, a aparente insuficiência do processo administrativo previdenciário em instância recursal contribui para que, cada vez mais, parte do custo de concessão e implantação do benefício ultrapasse o orçamento do Poder Executivo e envolva também o do Poder Judiciário, bem como recaia sobre o requerente, mesmo sendo ele vencedor no litígio judicial.

Não surpreende, pois, que resolvida a fase de conhecimento, mas permanecendo o processo na esfera judicial, tente-se transmudar as tarefas administrativas advindas da concessão do benefício em deveres processuais a serem cumpridos de ofício e de modo cumulado (execução invertida, redução de intimações, exigência simultânea de obrigações com ritos distintos), procurando-se, com a maior supressão dos passos procedimentais previstos em lei, a rápida devolução do serviço administrativo ao órgão gestor. Ironicamente, a inicial inaptidão do processo administrativo pode ser uma das causas dessas exceções sugeridas aos procedimentos judiciais, ambas repercutindo no devido processo legal.

Essas implicações do processo brasileiro também auxiliam a se compreender as diferentes opções adotadas por outros países a respeito do modo como organizam seus processos administrativos previdenciários, ao conjugarem preservação de valores jurídicos fundamentais e eficiência administrativa para reduzir as causas de o contencioso se prolongar em processos judiciais.

Observa-se, por tudo, que o processo administrativo constitui meio de acesso a direitos que pode custar menos ao Estado e ao cidadão do que a modalidade judicial, se ele, além de cumprir o seu papel como ferramenta de formação e execução de decisões administrativas e implementação de políticas públicas, também considerar integralmente os interesses dos requerentes, aprimorando a internalização dos institutos do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, de acordo com a natureza das partes e as especificidades dos direitos envolvidos.

Em conclusão, resulta importante que no processo administrativo previdenciário se otimizem todos os ditames constitucionais aplicáveis à solução de conflitos, melhorando sua capacidade de resolvê-los de modo definitivo. Procedendo desse modo, o Estado brasileiro também fortalecerá a sua abordagem maior no sentido de que, ao se decidir sobre direitos, administra-se justiça, a qual demanda máxima qualidade em sua aplicação, como objetivo que vincula fundamentalmente todos os Poderes da República [11].

*Este artigo é obra de cunho acadêmico e não reflete necessariamente a posição das instituições nas quais o autor trabalha.

 


[3] DINIZ, Davi Monteiro. Solução de litígios individuais em contencioso administrativo de massa: da adjudicação de benefícios por incapacidade pela previdência social dos EUA. Revista da Advocacia Pública Federal, Brasília, v.6, p.260-276, dez. 2022.

[4] DINIZ, Davi Monteiro. As reformas do contencioso previdenciário na França e seus efeitos para a adjudicação de benefícios por incapacidade. In: AMADO, Frederico; MACIEL, Fernando; RIBEIRO, Rodrigo (Coord), A Reforma da Previdência Social na Visão dos Advogados Públicos. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2023.

[5] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[6] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Art. 5º, LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação;

[7] Cf., por exemplo, a LGPD. BRASIL. Lei 13.709/2018. Art. 42, § 2º O juiz, no processo civil, poderá inverter o ônus da prova a favor do titular dos dados quando, a seu juízo, for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa.

[8] Cf., por exemplo, a LPAD. BRASIL. Lei 9.984/99 Art. 59, §1º Quando a lei não fixar prazo diferente, o recurso administrativo deverá ser decidido no prazo máximo de trinta dias, a partir do recebimento dos autos pelo órgão competente.

[9] Cf., por exemplo, o CPC. BRASIL. Lei 13.105/2015. Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

[10] Cf., por exemplo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

[11] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!