Opinião

Incidência do PIS/Cofins sobre importação em operações com software

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4 de agosto de 2023, 20h51

Recentemente, por meio da Solução de Consulta Cosit 107/23 (SC 107), a Receita Federal adotou o entendimento de que o licenciamento ou a cessão de direito de uso de software configura prestação de serviço, já que compreende, em alguma medida, esforço humano. Logo, a importação de licença de uso de software configura contraprestação por serviço prestado e está sujeita ao PIS/Cofins-Importação [1].

À luz da jurisprudência do STF, iniciada a partir de 1998 (RE 176.626), o software de prateleira era tratado como mercadoria e, portanto, sujeito ao ICMS. Considerando que a valoração aduaneira de mercadorias se dá sobre o suporte físico (Portaria MF 181/89), ausente na importação via download, a Solução de Consulta Cosit 303/17 afastava o PIS/Cofins-Importação.

Em 2021, o STF (ADIs 1945 e 5659) alterou seu entendimento, passando a admitir a incidência do ISS em quaisquer operações com software, afastando o ICMS. Apoiada na mudança de posicionamento do STF, a Receita também reformou a sua posição.

A nosso ver, a posição da SC 107 está equivocada, já que extrai seus fundamentos de arcabouço jurídico estranho às regras do PIS/Cofins-Importação. Para compreender as nossas críticas à SC 107, é necessário analisar o contexto em que as decisões de 2021 do STF foram proferidas.

O contexto das decisões do STF
Nosso ordenamento distribui entre estados e municípios a competência para tributação sobre o consumo com base na materialidade envolvida. Em síntese, estados estão autorizados a tributar operações com mercadorias e, municípios, operações com serviços de qualquer natureza, exceto de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal.

O legislador complementar, cumprindo o seu dever constitucional de dirimir conflitos de competência entre entes federativos [2], adotou a prática de definir os serviços sujeitos ao ISS através de uma lista anexa (Lista Anexa) à Lei Complementar 116/03 (LC 116).

Como se intui, a posição exarada pelo STF nas ADIs 1945 e 5659 é resultado de um longo histórico de disputas sobre conflitos de competência (ICMS x ISS), a partir de questionamentos da constitucionalidade de alguns itens da Lista Anexa ou de legislações estaduais que exigiam ICMS sobre atividades envolvendo circulação de mercadoria.

Por meio do RE 176.626 (1998), o STF firmou a posição de que softwares de prateleira e customizáveis estavam sujeitos ao ICMS, e softwares desenvolvidos sob encomenda, sujeitos ao ISS. A Corte afastou o ICMS sobre operações com "bens incorpóreos", mas admitiu a sua cobrança na "circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo — como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) — os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio".

No RE 116.121 (2000), o STF reputou inconstitucional item da Lista Anexa que previa o ISS sobre locação de bem móvel (i.e., guindastes) sem fornecimento de mão de obra, alegando que a hipótese não envolvia uma obrigação de fazer (Súmula Vinculante 31).

Porém, com o passar do tempo, a distinção entre obrigação de dar e de fazer sustentada no julgamento acima se revelou insuficiente para dirimir conflitos de competência envolvendo as chamadas operações complexas, em que há tanto o fornecimento de mercadorias quanto a prestação de serviços.

Nos REs 547.245 e 592.905 (2009), o STF entendeu que no leasing financeiro e no leaseback prepondera a atividade de financiamento, que, aos olhos do STF, é serviço sujeito ao ISS. Em seu voto, o relator, ministro Eros Grau, afirma ser irrelevante o fato de que nessas atividades há uma obrigação de dar. O relator afirma que "toda e qualquer prestação de serviço envolve, em intensidades distintas, a utilização de algum bem", para concluir que ambas as operações constituem serviço, sugerindo que a expressão constitucional "serviços de qualquer natureza", tem escopo mais amplo do que obrigação de fazer.

O RE 651.703 (2016) admitiu o pagamento de ISS por operadoras de planos de saúde, considerando que o conceito constitucional de serviço não é condicionado pela legislação ordinária (i.e., Código Civil). Com isso afastou-se o argumento de que serviço é uma obrigação de fazer. No voto, o ministro Luiz Fux registrou que se deveria observar a solução oferecida pela lei complementar no processo de definição do imposto incidente no caso concreto. No caso, a noção de serviço sujeito ao ISS foi entendida como "oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador".

No RE 603.136 (2020), o relator, ministro Gilmar Mendes, afirmou que a referência constitucional a serviços de qualquer natureza exige uma leitura ampla do termo serviço. Na mesma linha da decisão tomada nos casos de leasing, o STF admitiu o ISS sobre contratos complexos, desde que previstos em lei complementar e presente o elemento esforço humano.

As decisões acima ilustram a evolução da jurisprudência do STF a respeito do tema ICMS x ISS. O padrão que se nota nas decisões desse período é a tendência a privilegiar a opção da LC 116 de resolver o conflito de competência a partir da inclusão de determinada atividade na Lista Anexa. Trata-se daquilo que o STF chama de critério objetivo para resolução de conflitos de competência. Tal inclusão só é rejeitada pela Corte se não há, minimamente, a presença de um fazer humano.

As decisões nas ADIs 1945 e 5659 nascem nesse contexto, que têm como pano de fundo cenário instaurado a partir da LC 116, que prevê, no subitem 1.05 da Lista Anexa, a cobrança de ISS sobre licenciamento e cessão de direito de uso de software.

As ações foram manejadas contra leis dos estados de Mato Grosso e Minas Gerais, que exigiam o recolhimento de ICMS sobre operações com software. Ao julgar as ADIs, o STF reformou o entendimento adotado pelo RE 176.626 para admitir o ISS sobre qualquer tipo de software.

Segundo o ministro Dias Toffoli, ao distribuir as competências tributárias aos entes federativos, o constituinte estabeleceu que os conflitos de competência seriam resolvidos por lei complementar (critério objetivo). Diante disso, a LC 116 teria legitimamente cumprido essa função ao incluir as operações com software na Lista Anexa. O entendimento final foi que, ao assim agir, a LC 116 não desbordou do conceito constitucional de serviços de qualquer natureza, pois as operações com softwares constituem negócios mistos ou complexos que envolvem, além da obrigação de dar um bem digital, uma obrigação de fazer, verificável a partir da constatação do emprego de esforço humano no desenvolvimento do software.

O posicionamento adotado pela maioria dos ministros foi de que todas as transações relacionadas a licenciamento ou cessão de direito de uso de softwares estão sujeitas ao ISS, a despeito do tipo (encomenda, customizado ou padronizado) e do meio pelo qual são disponibilizados (download, streaming, acesso à nuvem etc.).

O STF também fundou sua decisão no fato de que a escolha do legislador complementar estaria alinhada aos preceitos da neutralidade e não discriminação, que pregam a não influencia da tributação na competitividade dos agentes econômicos. Sob essa diretriz, deve-se evitar a imposição de carga fiscal mais onerosa sobre determinada atividade em função do setor ou indústria (e.g., comércio eletrônico x comércio tradicional), bem como evitar que determinada atividade deixe de ser tributada.

Dos problemas da SC 107
O artigo 156, III, da Constituição prevê a incidência do ISS sobre "serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar". Salta aos olhos do intérprete, no percurso de construção da norma jurídica de competência do ISS, o fato de se estar diante de um tributo incidente sobre serviços de qualquer natureza.

As decisões do STF nas ADIs analisaram disputas de competência provocadas por estados que pretendiam cobrar ICMS sobre aquisições de software. Elas trataram, portanto, do limite semântico do texto empregado pelo legislador constituinte na repartição de receitas entre os estados e municípios.

É sob esse prisma que as decisões do STF devem ser analisadas, com um ingrediente adicional, que é a valoração do Princípio da Neutralidade. Nesse ponto, destaca-se que nos REs 547.245 e 592.905, o ministro Lewandowski sugere ter votado a favor da incidência do ISS sobre leasing também para evitar que tais operações não deixem de ser tributadas: "Observo que os operadores de leasing estão no melhor mundo possível porque eles não pagam ISS, não pagam ICMS, não pagam IOF. Qual seria o tributo, então, que incidiria sobre essa operação? Ele está indicado na lei complementar. E essa lei complementar, como demonstrado à saciedade, não conflita com a Constituição Federal".

A ementa do RE 651.703 diz que a LC 116 arrola itens que, não exprimindo a natureza de outro tipo de atividade (e.g., mercadorias), passam à categoria de serviços sujeitos ao ISS “visto que, se assim não considerados, restariam incólumes a qualquer tributo”.

Nas ADIs 1.945 e 5.659, o ministro Dias Toffoli cita, em diversas passagens, o Princípio da Neutralidade. Pautado em manifestações do direito comparado, o ministro afirma que a tributação não deveria fazer distinção entre operações com bens e serviços, nem deveria impactar o desenvolvimento de novas atividades econômicas, em especial, o comércio eletrônico. Ainda, a tributação deveria ser neutra e equitativa, evitando, assim, a dupla tributação ou não tributação involuntária.

Luís Eduardo Schoueri [3] explica o Princípio da Neutralidade nos seguintes termos: "A Neutralidade Tributária não significa a não interferência do tributo sobre a economia, mas, em acepção mais restrita, neutralidade da tributação em relação à Livre Concorrência, visando a garantir um ambiente de igualdade de condições competitivas, reflexo da neutralidade concorrencial do Estado. Em termos práticos, a Neutralidade Tributária significa que produtos em condições similares devem estar submetidos à mesma carga fiscal. Sendo mandamento de otimização, deve-se buscar, ao máximo possível, igualar a carga tributária de situações similares".

De tudo exposto, o que se extrai é que o ISS é um tributo incidente sobre serviços de qualquer natureza, diferente do que se vê na Constituição acerca do PIS/Cofins-Importação, que atribui à União a competência tributar importações de mercadorias e serviços. A imposição do ISS sobre a aquisição de software, conforme decidido pelo STF, decorre de disputa sobre competências tributárias, onde a delimitação dos fatos jurígenos abstratos do ICMS e ISS caminha, em algumas situações, lado a lado.

Daí a relevância da participação do legislador complementar, expressamente prevista na Constituição, na construção do desenho final da regra de competência do ISS, determinado de forma assertiva o que cabe a esse tributo e, ao mesmo tempo, evitando as situações de não tributação. Destaca-se também a necessidade de tratar de forma igualitária todos os tipos de software, evitando-se situações em que a tributação cause distorções entre os agentes econômicos, a exemplo do que vinha ocorrendo por meio da imposição do ICMS sobre software de prateleira e customizado e ISS sobre o software por encomenda.

Os elementos aqui citados, sem exceção, são alienígenas ao regime do PIS/Cofins-Importação (serviços de prateleira x serviços; conflito de competência; LC 116 e Lista Anexa; Princípio da Neutralidade  mercadoria x serviços; etc.), o que permite concluir que a amplitude da regra de competência do ISS é muito maior do que a do PIS/Cofins-Importação.

Acrescente-se que a LC 116 e o PIS/Cofins foram editados no mesmo período. Em 2003, a LC 116 trouxe os itens 1.03, 1.04 e 1.05, que tratam de processamento de dados, elaboração de programas de computador e licenciamento de software. Nesse mesmo ano foi publicada a Emenda Constitucional 42/03, fundamento de validade da Lei 10.865/04, que instituiu o PIS/Cofins-Importação. Ou seja, o mesmo legislador analisou e aprovou os dois diplomas no mesmo período legislativo. Logo, se o legislador quisesse submeter operações com software à tributação pelo PIS/Cofins-Importação, poderia tê-lo feito expressamente, a exemplo do que fez na Lista Anexa da LC 116.

Em breve síntese, observando o limite de espaço desse estudo, entendemos que a regra de competência constitucional do PIS/Cofins-Importação não compreende o licenciamento ou a cessão de direito de uso de software, pois essas operações não envolvem a importação de mercadorias ou serviços. Essas atividades têm a natureza de exploração econômica de um ativo intangível, cuja contraprestação é o pagamento de royalty.

Nesse sentido, entendemos que a Constituição, a jurisprudência do STF, o conjunto de leis ordinárias aplicável (Código Civil, Lei 4.506/64, Lei 9.609/98, Lei 9.610/98, Lei 10.865/04, etc.), a doutrina e a posição da própria RFB em outras oportunidades [4] não suportam a mudança de entendimento desse órgão.

O STF e o STJ já rechaçaram a extensão, para outros tributos, do conceito de receita adotado para PIS e Cofins pelo STF no RE 574.706 (exclusão ICMS da base do PIS e da Cofins). No RE 1.187.264 o STF não permitiu a exclusão do ICMS para fins de apuração da contribuição previdenciária incidente sobre a receita bruta.

No REsp 1.767.631, o STJ não permitiu a exclusão do ICMS da receita bruta para fins de apuração do imposto de renda da pessoa jurídica apurado sob o regime do lucro presumido. A mesma restrição deveria ser aplicada aqui, de modo que uma decisão tomada para resolver conflito de competência entre estados e municípios não serve para ampliar o escopo de incidência de tributo federal. A própria SC 107 reconhece que "cada tributo detém contornos próprios, determinados por suas balizas legais, e que lhes atribuem características que os distinguem dos demais, ainda que oriundos da mesma esfera impositiva".

A uniformidade de raciocínio e consistência no emprego dos conceitos não é respeitada nem dentro da própria SC 107, que, como dito, para fins de IRRF diz que o pagamento de licença de uso de software para consumo próprio tem natureza de royalty. Há uma contradição com o entendimento adotado para PIS/Cofins-Importação, que considera aquele pagamento remuneração por serviço importado.

Conclusão
A ratio decidendi das decisões proferidas pelo STF não oferece o alicerce pretendido pela SC 107, pois não transcende o contexto em que adotada. Com efeito, a mudança de entendimento do STF em relação à dicotomia ISS x ICMS não nos parece autorizar que determinadas operações antes não sujeitas à incidência de PIS/Cofins-Importação passem a sê-lo.

 


[1] A SC 107 não abrange os contratos de distribuição ou comercialização de software, objeto da Solução de Consulta Cosit 381/2017, que permanece em vigor, nessa data.

[2] Artigo 146 da Constituição.

[3] Schoueri, Luís Eduardo. Direito tributário. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[4] Vide Soluções de Consulta Cosit 75/23 e 381/17, dentre outras.

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