Opinião

Participações societárias e prestação de garantia: alienação fiduciária ou penhor?

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2 de agosto de 2023, 19h33

Seja em operações de emissão de títulos de dívida ou em contratos empresariais de maneira geral, a prestação de garantia é prática comum e que tem por objetivo assegurar o cumprimento das obrigações pactuadas, pecuniárias ou não.

Assim, as quotas ou ações de uma sociedade, enquanto bens móveis de notável valor e rentabilidade econômica, são constantemente utilizadas pelos seus titulares como objeto de garantias. Nesse sentido, deve-se avaliar, caso a caso, a ferramenta jurídica mais adequada para constituí-las e formalizá-las.

No Código Civil (CC) e em legislações correlatas, como a Lei nº 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais), tem-se que a prestação da garantia poderá ser realizada por modos diversos, quer recaiam sobre a pessoa (garantias pessoais ou fidejussórias) ou sobre bens (garantias reais, sobre a coisa em si).

No âmbito dos contratos empresariais, em que ações ou quotas comumente são dadas em garantia, questiona-se acerca do instituto que melhor se adequa a essa prestação. Destacam-se, dentre eles, o da alienação fiduciária e o do penhor, explorados adiante.

Alienação fiduciária
Pelo contrato de alienação fiduciária, o devedor fiduciante transfere, ao credor fiduciário, o domínio resolúvel da coisa dada em garantia, conservando sua posse direta. Via de regra, há o desdobramento da posse: o devedor fiduciante passa a ser o possuidor direto e depositário, enquanto o credor fiduciário torna-se o possuidor indireto e o proprietário resolúvel.

Na alienação fiduciária de ações ou de quotas, no entanto, inexiste a divisão entre posse direta e indireta, por se tratar de bens incorpóreos. É ato negocial que deve ser formalizado por escritura pública ou privada, cujo registro é necessário, conforme o tipo societário, na Junta Comercial ou em Cartório de Títulos e Documentos, devendo ser refletido, ainda, no contrato social. No caso das ações, também deve ser feito o registro no livro de Registro de Ações da Companhia (artigo 103 da Lei das Sociedades Anônimas — LSA).

Com a alienação fiduciária, as ações ou quotas dadas em garantia não mais integram o patrimônio do devedor fiduciante, de modo que não são passíveis de penhora ou de responder por quaisquer obrigações do devedor. Resguarda-se o credor fiduciário, deste modo, em caso de eventual falência daquele.

Note-se, neste aspecto, que os credores fiduciários são considerados extraconcursais e não se submetem à recuperação judicial (artigo 49 §3º da Lei 11.101/05 – Lei de Falências). Ademais, com o pagamento integral da dívida, resolve-se a propriedade do credor fiduciário e o bem dado em garantia volta à esfera patrimonial do devedor fiduciante.

Quanto à disciplina legal da alienação fiduciária de ações, tem-se que ela se encontra no artigo 66-B § 3º da Lei nº 4.728/1965, introduzido pela Lei nº 10.931/2004, que regula o mercado de capitais: "Artigo 66-B. §3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada".

Ressalte-se, ainda, que alienar fiduciariamente as ações ou quotas não transfere ao credor fiduciário o direito de voto, nem o de participação nos lucros ou demais vantagens patrimoniais ou pessoais decorrentes da qualidade de sócio, ainda que o exercício do direito ao voto possa ser limitado em contrato, nos termos dos artigos 109 e 113 da LSA [1] e dos artigos 1.002 e 1.008 do CC [2].

No que diz respeito à excussão da garantia, o credor fiduciário, em caso de inadimplemento do devedor fiduciante, precisará vender as ações ou quotas dadas em garantia para satisfazer seu crédito. Para isso, não há necessidade de notificação prévia ao devedor fiduciante e a venda pode ocorrer independentemente de hasta pública ou de avaliação.

De todo modo, a venda deverá pautar-se em preço condizente, observado o princípio da menor onerosidade (artigo 805 CPC) e, se promovida a excussão judicial, não será aceito lance que ofereça preço vil (artigo 891 do Código de Processo Civil (CPC)).

Ademais, destaca-se que o Código Civil veda expressamente o pacto comissório, de modo que, pelo caput do artigo 1365, é nula a cláusula que autoriza o credor fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. É possível, contudo, que o devedor fiduciante dê a coisa que foi alienada em garantia em pagamento, após o vencimento da dívida e com a anuência do credor fiduciário, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo.

Outrossim, por se tratar de instituto capaz de se amoldar à vontade das partes, a alienação fiduciária pode prever, em seu respectivo instrumento, cláusulas que determinem, em vantagem ao credor fiduciário: 1) a possibilidade expressa da venda imediata das ações ou quotas para terceiros, sem necessidade de prévia notificação, em caso de mora ou inadimplemento; 2) a desnecessidade de avaliação prévia sobre o preço; 3) a inexistência de preço-mínimo para a venda; 4) a outorga de procuração em causa própria ao credor fiduciário, com poderes para efetivar a transferência das ações e abatimento do preço (cláusula-mandato); entre outras.

De outro lado, para o devedor fiduciante, pode ser vantajosa a inserção de cláusulas que prevejam: 1) a necessidade de notificação prévia em caso de alienação das ações ou quotas a terceiros; 2) a necessidade de avaliação das ações ou quotas por um terceiro e que a venda seja realizada conforme o laudo de avaliação; 3) que o devedor fiduciante fará jus ao integral exercício dos direitos políticos e econômicos das ações ou quotas dadas em garantia, que somente poderão ser limitados no caso de inadimplemento da obrigação principal (hipótese em que deverá exercer seu direito ao voto conforme instruções do credor fiduciário e desde que não sejam contrárias ao interesse da companhia).

Penhor
À semelhança da alienação fiduciária, o penhor também é modalidade de garantia real. Pelo penhor, no entanto, não se transfere o domínio da coisa dada em garantia, apenas sua posse. É, também, pacto acessório da obrigação garantida e segue à sua sorte.

O penhor de ações ou quotas de sociedades está compreendido na previsão do artigo 1.451 do Código Civil: "Artigo 1.451. Podem ser objeto de penhor direitos, suscetíveis de cessão, sobre coisas móveis".

Para o penhor de ações ou quotas, aplicam-se as mesmas disposições relativas à alienação fiduciária no que diz respeito ao direito ao voto, à participação nos lucros e ao direito de preferência na subscrição de novas ações ou quotas (artigos 113 e 109 da LSA e artigos 1.002 e 1.008 do CC). Também é contrato solene que deve ser feito por escritura pública ou privada, levado a registro em Junta Comercial ou em Cartório de Títulos e Documentos e averbado no livro de Registro de Ações Nominativas da Companhia (artigo 39 da LSA [3]) ou no Contrato Social da Sociedade, conforme o caso.

Uma vez vencida a dívida, o credor deverá cobrar seu crédito ou requerer em juízo a venda da coisa empenhada. Diferentemente da excussão da garantia na alienação fiduciária, não poderá o credor, ele mesmo, promover a venda a terceiros, já que a coisa dada em garantia não está sob seu domínio.

Também é vedado o pacto comissório, mas se permite que a coisa seja dada em pagamento, após o vencimento da obrigação, a critério do devedor (artigo 1.428 do CC [4]).

Para comparação, considera-se que, na alienação fiduciária, há a transferência do domínio do objeto da garantia; o credor fiduciário poderá vender a coisa dada em garantia para satisfazer seu crédito (a necessidade de avaliação por um terceiro ou de notificação prévia da venda ao devedor podem ser estipuladas em contrato); é vedado o pacto comissório; após o vencimento da dívida e com a anuência do credor fiduciário, o devedor fiduciante poderá dar coisa alienada em garantia em pagamento; e, não há transferência ao credor do direito de voto, nem o de participação nos lucros e demais vantagens patrimoniais ou pessoais decorrentes da qualidade de sócio.

Já no penhor, não há a transferência do domínio do objeto da garantia; vencida a dívida, o credor deverá cobrar seu crédito ou requerer em juízo a venda da coisa empenhada e não poderá, ele mesmo, promover a venda a terceiros; é vedado o pacto comissório; após o vencimento da dívida, poderá o devedor dar a coisa empenhada em pagamento; não há transferência ao credor do direito de voto, nem o de participação nos lucros e demais vantagens patrimoniais ou pessoais decorrentes da qualidade de sócio.

Em ambas as modalidades de garantia, no caso de serem as ações ou quotas o seu objeto, há especificidades relativas a esses bens que precisam ser consideradas pelas partes  a exemplo da necessidade do registro do gravame nos livros da companhia ou no contrato social da sociedade e o fato de que se conserva ao devedor o direito ao voto, o de participar dos lucros e as demais vantagens patrimoniais ou pessoais decorrentes da qualidade de sócio.

Em linhas gerais, tem-se que o instituto da alienação fiduciária mostra-se mais vantajoso ao credor, uma vez que a transferência do domínio da coisa dada em garantia confere-lhe uma segurança adicional se comparada a do penhor. Ademais, a opção pela alienação fiduciária permite que o credor, vencida a dívida ou inadimplida a obrigação, promova a venda a terceiro das ações ou quotas dadas em garantia sem que haja hasta pública ou necessidade de avaliação – o que, com o penhor, não seria possível.

Não obstante, a depender da operação a ser realizada ou da obrigação pactuada, é necessário que as partes avaliem a modalidade de garantia que melhor se adequa, além das cláusulas que são possíveis de serem inseridas em seus respectivos instrumentos.

 


[1] Artigo 109. Nem o estatuto social nem a assembléia-geral poderão privar o acionista dos direitos de:

 I – participar dos lucros sociais;

[…]

IV – preferência para a subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição, observado o disposto nos artigos 171 e 172;  (Vide Lei nº 12.838, de 2013)

Artigo 113. O penhor da ação não impede o acionista de exercer o direito de voto; será lícito, todavia, estabelecer, no contrato, que o acionista não poderá, sem consentimento do credor pignoratício, votar em certas deliberações.

Parágrafo único. O credor garantido por alienação fiduciária da ação não poderá exercer o direito de voto; o devedor somente poderá exercê-lo nos termos do contrato.

[2] Artigo 1.002. O sócio não pode ser substituído no exercício das suas funções, sem o consentimento dos demais sócios, expresso em modificação do contrato social.

Artigo 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.

[3] Artigo 39. O penhor ou caução de ações se constitui pela averbação do respectivo instrumento no livro de Registro de Ações Nominativas .

§1º O penhor da ação escritural se constitui pela averbação do respectivo instrumento nos livros da instituição financeira, a qual será anotada no extrato da conta de depósito fornecido ao acionista.

§2º Em qualquer caso, a companhia, ou a instituição financeira, tem o direito de exigir, para seu arquivo, um exemplar do instrumento de penhor.

[4] Artigo 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.

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