Opinião

Suspensão de garantias no plano de RJ: "alquimia vernacular" no REsp 2.059?

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2 de agosto de 2023, 7h03

"Alquimia vernacular". Nessas palavras, o ministro Villas Boas Cueva, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), definiu aquilo que se pretende no julgamento de um novo recurso sobre o tema da suspensão de garantias por previsão do plano de recuperação judicial. A alquimia é a antiga teoria que se baseava na crença fundamental de que um elemento químico poderia ser transmudado em outro. Buscavam os alquimistas a criação de uma "pedra filosofal", que permitiria transformar metais não preciosos em ouro, e a produção de um "elixir da imortalidade", que seria a cura de todas os males, até mesmo da morte. A expressão não poderia ser mais oportuna.

No julgamento do REsp nº 2.059.464/RS, a 3ª Turma do STJ se depara com um tema já conhecido pela corte: a chamada novação recuperacional, prevista no artigo 59 da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF). A novação recuperacional é o efeito de vincular o devedor e os credores aos termos do plano aprovado em assembleia e homologado pelo juiz. Mas com uma vírgula: "sem prejuízo das garantias".

Em uma investida contra o entendimento da corte, uníssono no sentido de a novação operada pelo plano não pode projetar seus efeitos em face de terceiros garantidores, a discussão desse novo recurso se envereda por uma questão de ordem semântica: argumenta-se que não se estaria buscando "suprimir" garantias, mas apenas "suspender" execuções contra os garantidores. Daí, então, a chamada "alquimia vernacular", vale dizer, uma tentativa de, com essa artificiosa troca de palavras, transmudar uma questão já pacificada na instância superior.

O argumento convenceu o TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), que, depois de inicialmente dar provimento a um recurso de um banco credor e tornar sem efeito a cláusula de suspensão de garantias, ao julgar embargos de declaração da empresa recuperanda, reviu o seu entendimento para relativizar a aplicação de precedentes do STJ e, assim, reconhecer a legalidade da referida cláusula. O credor, por sua vez, interpôs recurso especial, trazendo o tema à apreciação do STJ.

Aberto o julgamento pela 3ª Turma do STJ, o relator, ministro Moura Ribeiro, negou provimento ao recurso especial, reconhecendo a eficácia da cláusula de suspensão em face de todos os credores da empresa devedora. A posição externada pelo relator reflete, em linhas gerais, o entendimento que o mesmo ministro, em voto vencido, já havia defendido no REsp nº 1.794.209/SP, julgado pela 2ª Seção em 29/6/2021.

Na sequência o ministro Villas Boas Cueva pediu vista para analisar mais detidamente a questão e, com a retomada do julgamento na sessão no último dia 20/6, abriu divergência, dando provimento ao recurso do banco credor, fundamentando-se na doutrina e na jurisprudência do tribunal. Dentre os precedentes citados no voto, destaca-se justamente o REsp nº 1.794.209/SP, da 2ª Seção, de relatoria do próprio ministro Cueva.

O ministro Marco Bellizze, então, formulou novo pedido de vista para, em suas palavras, "organizar o pensamento", mas já antecipando aquilo que nos parece a conclusão mais natural e acertada: ante o que já se decidiu na 2ª Seção, em se vislumbrando que naquele precedente se discutia efetivamente a extensão dos efeitos da novação — e, a toda evidência, a resposta deve ser positiva —, no caso em análise deve prevalecer a mesma orientação. Agora, com esse novo pedido de vista, aguarda-se a retomada do julgamento.

Nesse interregno em que se aguarda o pronunciamento da 3ª Turma, dedicamos alguns comentários sobre relevantes pontos tratados no julgamento. São eles:

(1) ao julgar o REsp nº 1.333.349/SP, sob o rito dos recursos repetitivos, firmou-se o entendimento de que "a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral";

(2) a Súmula nº 581/STJ estabelece que "a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória";

(3) no julgamento do REsp nº 1.794.209/SP, a 2ª Seção concluiu que "a cláusula que estende a novação aos coobrigados seria apenas legítima e oponível aos credores que aprovarem o plano de recuperação sem nenhuma ressalva".

A partir desses precedentes, pode-se inferir que o racional que orienta as decisões do STJ é de que os direitos dos credores em face do terceiro garantidor ou coobrigado não são obstados pela recuperação judicial do devedor principal. Daí decorrem as conclusões adotadas em cada um dos julgados, isto é, de que as ações contra o garante não são suspensas ou extintas pelo processamento da recuperação e de que as pretensões contra terceiros (que não a empresa recuperanda) só serão afetadas pela novação com a concordância expressa do credor.

Um dos argumentos que os defensores da tese de validade da cláusula de suspensão sustentam é que o precedente do repetitivo e a Súmula nº 581/STJ teriam enfrentado apenas a discussão sobre a extensão ou não do stay period a terceiros coobrigados. Ou seja, não se teria analisado naqueles recursos a possibilidade de suspensão após a aprovação do plano, mas apenas em um momento anterior.

No entanto, o voto do ministro Luís Felipe Salomão no REsp nº 1.333.349/SP — recurso repetitivo citado acima — sugere o contrário, como ilustra o trecho a seguir:

"Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a decisão judicial."

Além de atentar contra a jurisprudência consolidada no STJ, a imposição da suspensão de garantias aos credores que com ela não anuírem também parece desprezar uma interpretação sistêmica da legislação. A análise é importantíssima, afinal, como bem salientou o ministro Marco Belizze na primeira sessão de julgamento desse novo recurso, "é preciso olhar para o sistema como um todo".

Da leitura da legislação se observa que, por repetidas vezes, o legislador fez ressalvas para proteger os direitos dos credores em face de terceiros garantidores com relação aos efeitos do processo de recuperação judicial. É o que se observa dos artigos 49, §1º; 50, §1º; 59, caput; 163, § 4º, todos da LREF. O mesmo racional é repetido em diferentes seções da lei, apresentando-se como premissa geral que permeia toda a legislação de insolvência.

Se a intenção do legislador não fosse proteger os direitos do credor perante garantidores após a aprovação do plano, não haveria razão para reproduzir essa ressalva justamente nos dispositivos que tratam sobre as consequências decorrentes do plano — por exemplo, ao tratar dos meios de recuperação judicial (artigo 50, §1º) e da novação recuperacional (artigo 59, caput). A lei não contém palavras inúteis.

Também não nos parece consistente o argumento de que, enquanto em cumprimento o plano de recuperação, não haveria inadimplemento a autorizar a execução das garantias. Aqui, como bem ponderou o ministro Marco Bellizze, é preciso pensar "um passo à frente": se o plano aprovado aplica um desconto (haircut) sobre o valor dos créditos sujeitos, o credor teria o direito de executar o valor integral em face do garante? O ponto é fundamental para entender se há, de fato, inadimplemento, e se há sentido na suspensão.

Se a resposta for positiva, ou seja, se o credor puder executar o todo contra o garante, não haveria motivo para suspender as execuções contra esse terceiro, porque, mesmo com o cumprimento integral do plano, o credor ainda assim teria o direito de perseguir um crédito remanescente — o que faria cair por terra o argumento de que não há inadimplemento. Se a resposta for negativa, isto é, de que o credor não poderá executar o garante pelo valor total, mas apenas pelo seu crédito com deságio, a cláusula de suspensão teria, então, o efeito de tornar letra morta o artigo 59, caput, da LREF (quando ressalva de que a novação se dá "sem prejuízo das garantias"), pois neste caso o credor não poderia executar o garante nem pelo valor com deságio e nem pelo excedente, mesmo que com isso não concorde. Ora, se a garantia não serve nem para executar o todo, nem a parte com deságio, tornando-se subordinada aos termos plano, é porque o crédito foi, sim, novado em relação ao garante.

Por fim, mas não com menor importância, não podem ser desprezados os efeitos negativos para o mercado advindos de uma eventual decisão que esvaziasse a razão de ser de uma garantia, que é, afinal de contas, proteger o credor do risco de inadimplemento. Nesse sentido, lembre-se a ponderação do ministro Raul Araújo, no supracitado REsp nº 1.794.209/SP, da 2ª Seção, quando salientou que: "(…) a extensão da supressão das garantias reais ao credor discordante impacta negativamente o ambiente econômico/empresarial, especialmente os mercados de crédito de fornecimento de insumos e mercadorias, que, junto à força de trabalho, representam os elementos mínimos para a continuidade da atividade produtiva, um dos princípios fundantes do processo de recuperação judicial".

Ao que nos parece, o reconhecimento da ineficácia da cláusula de suspensão a credores que não a aprovaram é, antes de mais nada, uma questão de coerência da jurisprudência. Mas não é só. É também uma questão de garantir a integridade do sistema, a eficácia das garantias e, em última análise, a preservação de um ambiente com mínima segurança jurídica para o financiamento da atividade empresarial. Negar o que está posto em termos tão claros pela lei e pela jurisprudência soa mesmo como crer na ilusão do "latão transformado em ouro” ou do “elixir da imortalidade".

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