Opinião

"Do Sopro, um Vendaval": livro conta os bastidores do "caso do juiz coach"

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1 de agosto de 2023, 18h28

Onde é fácil demitir juiz, é impossível encontrar justiça.
Saul Tourinho Leal

"Tenho uma história boa que talvez te interesse pra coluna. Mas não vou me adiantar e não quero te influenciar, porque o caso fala por si só, meu amigo. Vou te mandar as informações objetivas e o link pra um vídeo. Assista e tire suas próprias conclusões."

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A ligação do Saul foi assim, curta e grossa. Instantes depois chegava no meu WhatsApp o link para uma sessão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Era outubro de 2020. Dias antes da ligação, naquela sessão que eu começava a assistir, os desembargadores decidiram demitir o juiz Senivaldo dos Reis Júnior sob a acusação de que ele era coach e, advertido pela Corregedoria do Tribunal, se recusou a cumprir a ordem de interromper a atividade taxada de irregular pelo Conselho Nacional de Justiça.

Esse era o motivo declarado da demissão. Mas as manifestações dos juízes durante a sessão revelavam as nuances. E é nas nuances que, sabemos, se esconde a essência.

Assisti, ao longo da carreira de jornalista especializado na cobertura do Poder Judiciário, a incontáveis sessões de tribunais, judiciais e administrativas. É comum que nas sessões administrativas, mesmo diante de fatos por vezes graves, o tom dos magistrados seja mais ameno. Uma reação, muitas vezes, humana. Outras vezes, corporativista. Não era, contudo, o que se via naquela sessão do Órgão Especial. As críticas estavam acima do tom, principalmente diante da conduta estava em discussão — uma busca de 30 segundos no Google nos coloca diante de uma penca de cursinhos preparatórios para concursos, alguns integrados por magistrados.

Por que, então, o caso de Senivaldo era diferente? O que, de fato, levava os desembargadores aplicar a pena máxima a uma conduta aparentemente banal? Para muitos, o motivo não declarado da decisão se fez presente de forma cristalina em alguns votos. Um dos desembargadores, por exemplo, ressaltou que, na primeira fase do concurso para a magistratura, Senivaldo foi aprovado nas vagas reservadas para cotistas. Por isso, o desembargador dizia não saber se "ele atingiu aquele número, na primeira fase, exigido dos demais candidatos, o que tornaria, paradoxalmente, mais grave a conduta dele".

Diante do vídeo da sessão, fui atrás de dados, fornecidos pela assessoria de comunicação do tribunal. Nos cinco anos anteriores, o Órgão Especial havia punido 37 magistrados do Poder Judiciário paulista: 27 juízes e 10 juízas. Todas e todos com penas de advertência e censura. Apenas uma demissão: Senivaldo dos Reis Júnior.

Não é preciso dizer que demissões de magistrados são raríssimas. E têm de ser mesmo, porque poucos são os cargos da República em que se faz uma coleção de desafetos com tanta facilidade. Por mais correto, justo e afável que seja o juiz, sempre haverá pessoas insatisfeitas com sua decisão. De novo, é da condição humana. Nada mais natural.

Com os dados em mãos, usei meu espaço na rádio BandNews FM para chamar a atenção para essa demissão. Me espantava não apenas o motivo da decisão, mas também um desembargador ter dito, sem meias palavras, que o fato de um candidato negro ter sido aprovado no concurso pelo sistema de cotas tornava a conduta dele mais grave. Disso, poderíamos inferir que juízes negros e juízas negras, se fizeram uso do sistema de cotas, têm de se portar de forma mais cuidadosa do que seus colegas? Certamente não é assim que pensa a esmagadora maioria da magistratura brasileira.

O comentário sobre a demissão do Senivaldo foi ao ar na rádio no dia 13 de novembro de 2020. Conversei algumas vezes com o Saul ao longo do processo, mas só voltei a prestar atenção de verdade ao caso em abril de 2022, às vésperas de o CNJ julgar a revisão disciplinar que o advogado apresentou em nome do juiz demitido. O processo foi pautado e retirado de pauta algumas vezes, até que, no dia 24 de maio de 2022, o Conselho Nacional de Justiça derrubou a decisão do TJ-SP e determinou a reintegração do juiz aos quadros da magistratura paulista.

A maior parte dos conselheiros julgou a pena de demissão desproporcional. O conselheiro Vieira de Mello, também ministro do Tribunal Superior do Trabalho, chamou a atenção para o fato de outros 18 magistrados, em situação semelhante, terem seus casos avaliados com muito mais equilíbrio.

O presidente do CNJ na ocasião, ministro Luiz Fux, disse que o Conselho dava a Senivaldo uma carta de alforria e o livrava de uma espécie de "prisão perpétua". A frase tinha fundamento: após a demissão, Senivaldo voltou a prestar concursos. Foi, novamente, aprovado. No Rio Grande do Sul. Mas impedido de tomar posse por conta da demissão. Este é só um dos fatos do "caso do juiz coach" que ficou longe dos holofotes.

Em parecer pro bono anexado aos autos, o professor Lenio Streck — insuspeito justamente por ser um crítico mordaz do empobrecimento e da pasteurização do ensino jurídico — saiu em defesa de Senivaldo. Em suas palavras, o juiz "foi buscar lã, e voltou tosquiado". Ou, ainda segundo sua cirúrgica definição, o Tribunal de Justiça de São Paulo transformou "uma pequena coceira em uma gangrena". Por quê? Porque a investigação que culminou com a demissão do juiz começou com uma consulta sua sobre se poderia seguir dando aulas.

Frei David, líder da Educafro, também veio aos autos para reclamar da desproporcionalidade da pena aplicada pelo TJ-SP. E disse: "Esse Brasil, cujas estruturas estatais distinguem pela cor da pele — de uma pele — é um Brasil que precisa acabar".

Mas isso é apenas parte da história. O que mais se passou neste ano e meio em que Senivaldo ficou fora do exercício da função de juiz? Como são os bastidores de um processo complexo como esse? Como um advogado decide as ações que tomará no curso do processo e qual a influência do cliente nessas decisões, ainda mais quando o cliente é um juiz? Quais os dramas da vida humana, real, palpável que são vividos intensamente e que ficam fora dos autos? A resposta para essas perguntas está no livro Do Sopro, um Vendaval: A história da reparação de uma injustiça.

O livro, que será lançado no dia 16 de agosto, em Brasília, é uma aventura, da qual tive o prazer de participar a convite do Saul e do Senivaldo. Conheço Saul há mais de 15 anos. Tivemos contatos intensos por alguns anos, em Brasília. Depois, trocamos palavras mais raramente. Voltamos a nos aproximar quando ele assumiu o "caso do juiz coach". Mas nunca deixei de acompanhar sua exitosa carreira de advogado e acadêmico. Senivaldo conheci só em julho de 2022, quando ele já estava de volta ao trabalho, em plena atividade, mas ainda lambendo as feridas.

A decisão de aceitar escrever sobre um caso paradigmático foi fácil. Difícil foi conseguir colocar em texto a experiência de vida rica, riquíssima, dos dois personagens que são os autores deste livro, sem perder a essência de suas vozes. O livro é deles, a voz é deles, a história é deles. Eu contribuí apenas com o trabalho técnico, com a experiência de costurar as memórias dos autores de forma a tentar tornar o mais prazerosa possível a viagem da leitura de um caso tão relevante.

Um spoiler: Senivaldo nunca foi coach.

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