Opinião

A ilegalidade do FECP à luz da LC 194/22

Autores

1 de agosto de 2023, 6h33

Os estados, o Distrito Federal e os municípios foram autorizados pela Emenda Constitucional nº 42/03 a instituir o Fundo de Combate e Erradicação à Pobreza (FECP), com recursos derivados de adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS, sobre produtos e serviços considerados supérfluos, a serem definidos por lei federal (artigos 82 e 83 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

Apesar de o ADCT prever a possibilidade de cobrança de até dois pontos percentuais, alguns estados exigem montantes superiores, como é o caso, por exemplo, das operações relativas à energia elétrica com consumo superior a 300 quilowatts/hora mensais ou na prestação de serviço de comunicação no estado do Rio de Janeiro, oneradas por mais dois pontos percentuais.

O conceito de "bens e serviços supérfluos" pode causar interpretações divergentes por ser uma expressão aberta. Porém, como conteúdo mínimo, pode-se dizer que: (a) os supérfluos são aqueles dispensáveis ou menos úteis, que não impedem a realização de atividades básicas; (b) os essenciais são aqueles de primeira necessidade, que permitem o exercício das atividades necessárias para a população e, inclusive, a própria liberdade.

Embora o ADCT preveja que o FECP será cobrado nas condições definidas em lei complementar e que lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos, leis estas até então inexistentes, cada ente federado regulamenta, mediante legislação interna, as mercadorias e serviços que estão sujeitos ao acréscimo de ICMS pelo FECP.

Diante dessa indefinição, que gera discussões judiciais, a LC 194/22 incluiu o artigo 18-A no CTN explicitando que os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, os serviços de comunicações e de transporte coletivo são considerados essenciais e indispensáveis, razão pela qual "não podem ser tratados como supérfluos".

Não se qualificando como supérfluos por lei complementar, a cobrança do Fundo de Combate e Erradicação à Pobreza nas operações e prestações envolvendo tais bens e serviços passou a ser ainda mais controversa, havendo, portanto, relevantes fundamentos para defender que sua exigência é indevida. Alguns estados questionaram no STF a introdução do art. 18-A no CTN (p. ex. ADI 7195), sem, contudo, conseguir suspender os efeitos dessa norma.

O Poder Judiciário, por sua vez, vem reconhecendo a essencialidade da energia elétrica e dos serviços de comunicação para afastar a imposição do FECP, sobretudo após a edição da LC 194/22. Há decisões recentes dos Tribunais de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ) e da Paraíba (TJ/PA) neste sentido:

"Nessa toada, ao nosso sentir, a partir da publicação da LC 194/22 (23/06/2022) não é mais possível fazer incidir o adicional do FECP sobre energia elétrica e, com isso, merece provimento parcial o apelo manejado pela parte autora". (TJ-RJ – Apelação nº 0152438-47.2016.8.19.0001 – 13ª CC – DJ 01/02/2022)

"Como visto, a alteração legislativa, nos termos do art. 18-A do CTN e art. 32-A da LC 87/1996, não mais trata o serviço de comunicação como supérfluo, elevando-o ao patamar de serviço essencial indispensável." (TJ-PB – AI nº 0809144-73.2020.815.0000 – 2ª CC – DJ 10/06/2023)

Vale ressalvar que o reconhecimento da essencialidade desses bens e serviços para fatos geradores anteriores à LC 194/22 (23/06/22) não é pacífica. Nos julgados acima, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considerou que a essencialidade se aplica apenas para fatos geradores posteriores à LC 194/22, enquanto o Tribunal de Justiça da Paraíba não estabeleceu corte temporal.

Destaca-se que recentemente o estado do Rio de Janeiro reinstituiu o FECP por meio da Lei Complementar nº 210/23, revogando a Lei Estadual nº 4.056/02, até então vigente.

Referida lei manteve a cobrança ampla do FECP, bem como o acréscimo de dois pontos percentuais adicionais sobre as operações com energia elétrica (consumo superior a 300 quilowatts/hora mensais) e serviços de comunicação, o que comporta discussão judicial à luz da LC n° 194/22.

Diante de todo o contexto acima, observa-se que o legislador federal acertou ao reafirmar, na LC nº 194/22 o que já era evidente, pois os combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo são produtos e serviços essenciais para que as pessoas possam viver, trabalhar, se alimentar, se transportar, realizar essas e outras atividades básicas, que estão intimamente ligadas ao que é imprescindível para sua subsistência e para o exercício da própria liberdade individual.

Por certo, a cobrança do adicional de ICMS para produtos e serviços não supérfluos acaba por atingir as camadas mais vulneráveis da sociedade, prejudicando, sobretudo, a parcela da população que se pretende amparar por meio da instituição do FECP, representando um exemplo claro da regressividade do nosso sistema tributário.

Ademais, tais bens/serviços não passaram a ser "essenciais e indispensáveis" somente a partir da publicação da LC 194/22, pois não foram convertidos, de um dia para o outro, de "supérfluos" para "essenciais e indispensáveis".

Sobre tal aspecto, questiona-se se antes da LC 194/22 as pessoas poderiam dispensar a utilização dos combustíveis, do serviço de telecomunicações, do gás natural e da energia elétrica. É evidente que não, pois esses bens/serviços estão diretamente conectados às atividades cotidianas e necessárias das pessoas há muito tempo.

Por fim, o fato de a LC n° 194/22 prever que os bens/serviços indicados são essenciais não quer dizer que todos os demais produtos e serviços não mencionados no referido ato normativo são supérfluos.

Os medicamentos, alimentos e produtos que compõem a cesta básica, por exemplo, são bens indispensáveis, embora não tenham sido incluídos na LC n° 194/22.

Conclui-se, assim, que as recentes decisões dos tribunais vêm confirmando que os estados não podem exigir o FECP de determinados bens e serviços essenciais, em especial, aqueles previstos na LC n° 194/22, sendo importante, em cada caso, analisar a natureza da operação ou do serviço, para avaliar a constitucionalidade da cobrança do referido adicional de alíquota.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!