Opinião

As farmácias tiram petróleo de você

Autor

  • Arthur Rollo

    é doutor e mestre em Direito; especialista em Defesa do Consumidor; e professor universitário de cursos de graduação e de pós-graduação de Direito; foi Secretário Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

30 de abril de 2023, 6h09

Clive Humby, matemático londrino especializado em ciência de dados, proferiu a célebre frase "os dados são o novo petróleo". E, de fato, são! Por volta do ano de 2005, as grandes redes de farmácias brasileiras passaram a pedir os números de cadastro de pessoa física (CPF) dos consumidores, proporcionando, em troca disso, supostos descontos. Não se tratava, em tese, de programa de fidelidade, porque o simples cadastro já conferia acesso imediato ao benefício. Mesmo sem ter realizado nenhuma compra anterior, o fornecimento do CPF e de outros dados pessoais, como endereço e telefone, já assegurava o desconto.

O consumidor que se recusava a fornecer o número do CPF e a se cadastrar, em alguns casos, pagava o dobro do que pagariam os cadastrados. Não há dúvida de que o preço, mesmo com a incidência do suposto desconto, já assegurava a margem de lucro das farmácias, o que significa que os consumidores não cadastrados maximizavam, consideravelmente e ainda mais, o lucro. Resultava dessa prática das farmácias a obrigatoriedade do consumidor se cadastrar, para não pagar um preço escorchante.

Já em 2005, essa prática das farmácias era abusiva, porque violava o artigo 43, §2° do Código do Consumidor, uma vez que esse tipo de cadastro, segundo a lei, deve ser voluntário. A enorme diferença do preço praticado para não cadastrados viciava o consentimento do consumidor, já que, caso não se cadastrasse, pagaria o dobro do preço e para medicamentos já bastante caros.

A iniciativa das drogarias também violava o artigo 9º, VII do decreto n° 5903, de 20 de setembro de 2006, que regulamentou a lei 10.962, de 2004, que trata da oferta e da afixação de preços dos produtos e de serviços oferecidos ao consumidor, porque é proibida a atribuição de preços distintos para o mesmo objeto. Quando isso ocorre, o cliente tem o direito de exigir que a transação aconteça pelo valor mais baixo, uma vez que a interpretação das situações duvidosas deve ser sempre favorável ao consumidor.

Somente a partir da lei 13.455, de 2017, passou a ser permitida a concessão de descontos para situações taxativamente descritas no artigo 5º-A, que foi incorporado à legislação 10.962, de 2004. A lei modificada passou a permitir a concessão de descontos "oferecidos em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizados", devidamente informados "em local e formatos visíveis ao consumidor".

A prática adotada pelas farmácias não se enquadra na excepcionalidade da distinção de preços e viola tanto o princípio da isonomia, quando o da igualdade das contratações — direito básico do consumidor previsto no artigo 6º, II do Código do Consumidor.

Outro problema desse comportamento das farmácias é que ele foi adotado pelas principais redes, tirando a liberdade de escolha do consumidor, porque onde quer que ele fosse, a conduta mercadológica seria a mesma. Mas, o pior de tudo é que, na verdade, não se trata, tão somente, de desconto, mas, sim, de sobrepreço para quem não se cadastra, o que torna a prática enganosa.

CRF/MS
CRF-MS

Os procedimentos das farmácias foram se sofisticando ao longo dos anos. Além do CPF, as redes passaram a perguntar se o consumidor tem plano de saúde e, em caso positivo, qual seria o plano; se o consumidor faz parte de alguma entidade de classe ou empresa "conveniada" e qual é o cartão de crédito do consumidor — só para citar alguns exemplos. E, mais: chegaram a condicionar o suposto desconto ao fornecimento de biometria, para se ter uma ideia do absurdo.

Existe fundamento jurídico para um advogado pagar menos do que outros consumidores? Existe fundamento jurídico para que aquele que contratou plano de saúde pague menos do que outros consumidores? Essa conduta das farmácias acentua, ainda mais, as hipervulnerabilidades, porque idosos, doentes e superendividados não têm acesso aos descontos e acabam pagando mais caro. Trata-se de subsídio cruzado, uma vez que muitos pagam mais para que alguns paguem menos. Viola a isonomia porque não existe lei autorizando essas distinções. Ao contrário, as discriminações são inconstitucionais e ilegais!

A ilicitude da prática se acentuou, sobremaneira, a partir do início da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), n° 13.709, de 14 de agosto de 2018, porque a biometria e informações referentes à saúde e à vida sexual passaram a ser consideradas sensíveis, submetidas, então, a tratamento especial.

A LGPD exige que o consentimento do usuário em relação ao tratamento de seus dados seja livre, informado e inequívoco, o que, como visto, não se verifica nesse comportamento das drogarias. Os cadastros antigos, em muitos casos, não foram saneados de acordo com a nova lei, que faz, no seu artigo 9º, uma série de exigências quanto à informação e, principalmente, à transparência, que também não estão sendo atendidas pelo setor.

Vem acontecendo a contratação, por parte das farmácias, de empresas terceirizadas que tratam os dados do consumidor, sem o conhecimento do consumidor. Esses dados, não raro, são compartilhados com parceiros das drogarias, como laboratórios, visando à obtenção de preços melhores nos medicamentos adquiridos e possibilitando pesquisas comportamentais (perfis dos clientes).

O consumidor, antes de tudo, tem o direito de comprar os medicamentos que quiser, por preço justo e acessível, sem ter que fornecer graciosamente seus dados, em troca de um suposto benefício. O consumidor só está obrigado, excepcionalmente, a fornecer seus dados nos casos de aquisição de medicamentos controlados, que exige retenção de receita, por força de regramento, a rigor, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A vantagem oferecida pelas farmácias tem de ser real, clara, precisa, correta e devidamente informada, a fim de que o consumidor exerça validamente sua liberdade de escolha, e decida se, naquele momento e nas circunstâncias pormenorizadamente descritas, vale a pena ou não fornecer os dados em troca da vantagem oferecida. Quem optar por não receber a vantagem, deve adquirir os produtos essenciais ao seu dia a dia sem ser escorchado, como ocorre, não de hoje.

No estado de São Paulo, foi editada a lei estadual 17.301, de 1º/12/2020, que proíbe que farmácias e drogarias exijam o CPF, sem informação clara e adequada sobre a abertura de cadastro ou registro de dados pessoais e de consumo, condicionado a determinadas promoções. Na prática, a legislação em tela não vem sendo cumprida.

Percebe-se que, sob verdadeira coação e informações enganosas, as farmácias vêm tirando petróleo graciosamente dos consumidores brasileiros, usando-o para melhorar sua logística, tornar mais eficientes os seus fluxos internos, etc.. Vale dizer: as farmácias reduzem seus gastos internos às custas dos dados dos consumidores, que ficam sujeitos a vazamentos e a compartilhamentos de toda a sorte, de forma manifestamente contrária à LGPD e ao Código do Consumidor.

Essas práticas abusivas precisam se ajustar à legalidade em vigência, porque, lamentavelmente, já se expandiram para diversos outros segmentos do mercado.

Autores

  • é advogado; doutor e mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo; especialista em Direito Administrativo (Público); professor de Direito Eleitoral de Cursos de Graduação e de Pós-Graduação; e coordenador e coautor do livro “Eleições — o que mudou" (Editora Foco).

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