Opinião

O que podemos aprender com as eleições do Estado digital da Estônia

Autores

  • Raimundo Nonato Silva Santos

    é vice-presidente e corregedor do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Ceará. Desembargador do TJ-CE (Tribunal de Justiça do Ceará).

  • Tiago Asfor Rocha Lima

    é ex-juiz titular do TRE-CE. Presidente do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) seção do Ceará. Doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo).

  • Cássio Felipe Gois Pacheco

    é ex-Juiz titular do TRE-CE. Presidente da Comissão Especial de Compliance Eleitoral e Partidário do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

  • André Garcia Xerez Silva

    é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará advogado presidente da Comissão Especial de Ética na Política e Combate à Corrupção Eleitoral da OAB-CE membro da Abradep e da Comissão Especial de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil.

28 de abril de 2023, 12h23

Antes de tudo, devemos nos perguntar: por que comparar? A comparação científica permite vislumbrar as diferentes maneiras de regulação e exercício do poder, por meio de suas semelhanças e diferenças, a fim de melhor compreender o seu funcionamento. O toyotismo traz consigo a fórmula segundo a qual "quem quer melhorar deve se comparar".

A comparação é um processo natural operado pelo homem, predicado indissociável das ciências sociais — na qual está inserida o Direito, que adquire um valor científico como modo de apreender o mundo fenomenológico, para, a partir daí, refletir sobre a realidade.

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Claro que permanece de essencial importância romper com o etnocentrismo, que seduz a universalização de pontos de vista particulares sobre a realidade como sendo a percepção de todos. As evidências da comparação auxiliam uma melhor maneira de se autointerrogar e fazer uma introspecção sobre si.

A comparação é ainda um método para validar ou refutar hipóteses, pois, segundo Durkheim[1], ela constitui-se como forma de experimentação, ou seja, um meio de substituir o método experimental das ciências exatas nas ciências sociais.

Não por outra razão é que se constatou a alta adesão à missão de observação eleitoral das eleições parlamentares da Estônia de 2023, que despertou interesse de diversas nações e autoridades de todo o mundo para estudar e compreender o moderno e avançado sistema tecnológico de votação do pequeno país báltico, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, durante os dias que antecederam o encerramento do pleito em 5 de março.

Apesar de o voto eletrônico ser o objeto central de curiosidade dos observadores, toda a estrutura administrativa do Estado atravessou por uma profunda transformação no caminho da digitalização, que culminou com a informatização do processo eleitoral.

A Estônia se proclama um Estado digital (e-Estônia), a fim de enaltecer as facilidades ofertadas para a interação dos cidadãos e residentes com o seu e-government. Propaga-se que 99% dos serviços públicos são disponibilizados virtualmente 24 horas por dia.

O último por cento que impede a universalização dos e-services é (ainda) o divórcio ("you still need to leave the house for this"[2]). Esse ecossistema digital garantiu à Estônia elevados níveis de transparência em governança e fortaleceu a confiança de sua sociedade digital. Além disso, foram economizados anos de trabalho para tornar o país um ambiente livre de burocracias para o desenvolvimento de negócios e empreendedorismo.

Era muito clara para o governo estoniano a premissa pela qual a digitalização não seria uma inimiga do funcionalismo público, sob o ponto de vista de ameaçar servidores com a eventual extinção de seus cargos e empurrá-los para o desemprego.

Na verdade, a diretriz era otimizar, racionalizar e redirecionar a carga de trabalho para as atividades essenciais do Estado, evitando o desperdício de energia e tempo em atividades meio, ao invés de se ocuparem com as atividades fim das políticas públicas, em benefício da população como destinatária dos serviços públicos. Eis algumas explicações para o sucesso da experiência estoniana na edificação de seu Estado digital.

É, pois, nesse panorama que se inserem as eleições da Estônia, uma república, independente e soberana, cujo povo está investido de poder supremo, que foi exercido pelo seu universo de 965.757 eleitores aptos a escolherem os 101 cargos para o Parlamento em 5 de março de 2023, ocasião na qual se registrou novo recorde para a quantidade de votos online. Do total de 456.856 estonianos que expressaram sua preferência eleitoral (o voto não é obrigatório), 313.510 cidadãos votaram eletronicamente, ao passo que 143.246 depositaram cédulas nas urnas.

A trajetória do modelo de votação pela internet começou em 2001, quando foram apresentados os primeiros estudos de viabilidade para sua implementação no país. Em 2002, foi incluída a sua regulação na Lei Eleitoral, mas somente para vigorar a partir de 2005. No ano de 2003, inicia-se a conceituação do desenho da solução a ser adotada por meio de uma equipe conjunta de empresas, academia e Comissão Nacional Eleitoral.

Adotaram-se as seguintes diretrizes: utilização do voto pela internet durante o período de votação antecipada; a identidade eletrônica é usada para identificação e assinatura digital; para evitar coerção, permite-se a emissão de mais de um voto, devendo somente o último ser computado como oficial, como também o voto em papel, registrado no dia da eleição, tem precedência ante o virtual[3].

Finalmente, em 2004, realiza-se um concurso público que seleciona a empresa de tecnologia que veio a ser responsável pelo desenvolvimento e implantação do modelo. Desde 2005, quando apenas 2% dos votos foram registrados virtualmente, a adesão à plataforma digital pela sociedade foi sempre crescente. Em 2021, a votação online atingiu a marca de 47% em face dos 53% contabilizados em papel, até que, pela primeira vez, nas eleições parlamentares de 2023, superou a utilização das cédulas.

A desburocratização do Estado estoniano também permeia o processo eleitoral como um todo. Para disputar uma cadeira no Parlamento, basta ser cidadão estoniano, possuir 21 anos de idade, não ser membro ativo das Forças Armadas, não está cumprindo pena de prisão por crime e não haver sido destituído da capacidade de votar pelo Judiciário. Como a votação para o Legislativo se dá em lista, não se admite que o membro de um partido dispute como candidato pela lista de outra agremiação.

O registro das candidaturas é operado de maneira "self-service" pelos candidatos, cuja documentação pode ser entregue em papel, digitalmente, ou de maneira híbrida. Em 2023, foram apresentadas 969 candidaturas, das quais dez são de candidatos independentes e o restante distribuídas entre nove partidos políticos que participaram do pleito.  

A Estônia se considera, ainda, um país praticamente sem regulação das campanhas políticas. Não há limite de gastos por partidos ou candidatos. Não há limite de doação para pessoas físicas (não se admite doações de pessoas jurídicas). Todos os partidos e candidatos devem reportar a sua despesa e arrecadação depois da campanha. Todos os meios de propaganda que o dinheiro puder comprar são possíveis.

Embora até 2021 fosse vedada a divulgação de propaganda eleitoral em outdoor nos 40 dias que antecedessem a eleição, essa restrição foi revogada. Atualmente, a propaganda política é permitida durante o período pré-eleitoral e no próprio dia da eleição.

Os partidos e candidatos investem em anúncios de televisão, divulgação em outdoors, mídias impressas, jornais e revistas, eventos de rua, visitas de porta em porta, anúncios online em portais, no Google Ads, anúncios no Youtube, TikTok e, sobretudo, nas redes sociais do Facebook e Instagram, que, em uma estimativa parcial, apontava o gasto de 206.183,00 euros, entre todas as legendas.

É comum se deparar com placas, outdoors e anúncios em paradas e ônibus nas ruas com a divulgação do rosto dos candidatos, seu número, partido e uma breve mensagem aos eleitores. Também há distribuição de "santinhos", em alguns casos, com um calendário no verso, acompanhado de um simpático bombom de chocolate por ativistas, em ambientes públicos ou privados.

Dentro da seção de votação onde ocorre o depósito das cédulas na urna pelos eleitores que optam por votar presencialmente, contudo, adverte-se que não seja distribuído material de propaganda.

Naturalmente que esse breve relato do sistema eleitoral da Estônia e suas peculiaridades não se presta a sustentar uma importação acrítica para o modelo brasileiro. O método experimental da sociologia das ciências sociais recomenda expandir os horizontes de compreensão quanto à existência de soluções factíveis e funcionais para operar uma avaliação crítica e comparativa de sua adequação à cada realidade.

Não podemos duvidar, contudo, do caráter universal da filosofia que consagrou o avanço institucional da exitosa experiência do governo estoniano, pautada no ousado investimento em uma visão inovadora e empreendedora, que conseguiu suplantar o inevitável receio que o conservadorismo desperta contra rupturas de paradigma.

Cada vez mais próximo ciclo eleitoral de 2024, o Brasil ainda desfruta da possibilidade de avançar em sua inacabada agenda de reforma política a fim de aperfeiçoar e otimizar a atuação do Estado na regulação do processo eleitoral. Conceber a prestação jurisdicional e a função administrativa da Justiça Eleitoral sob a ótica de um serviço público de excelência é uma tarefa permanente a ser perseguida em favor de toda a sociedade.


[1] Para o sociólogo francês, as regras do método sociológico assumem relevância, eis que “nous n’avons qu’un moyen de démontrer qu’un phénomène est cause de l’autre, c’est de comparer les cas où ils sont simultanément présents et absents et de chercher si les variations qu’ils présentent dans ces différentes combinaisons de circonstances témoignent que l’un dépend de l’autre” (DURKHEIM, Emile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: PUF, 1983, p. 124).

[2] https://e-estonia.com/solutions/e-governance/government-cloud/

[3] Nas eleições de 2023, foi estimado que aproximadamente mil votos online foram anulados pelo voto em papel na urna (https://news.err.ee/1608904730/estonia-sets-new-e-voting-record-at-riigikogu-2023-elections).

Autores

  • é vice-presidente e corregedor do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Ceará. Desembargador do TJ-CE (Tribunal de Justiça do Ceará).

  • fez pós-doutoramento/visiting scholar pela Columbia Law School (Nova York); doutor em Direito pela USP; mestrado em Direito pela UFC (Universidade Federal do Ceará), juiz Titular do TRE-CE (classe de jurista, biênio 2017/2019), presidente do Cesa-CE, integrante da Caoeste, advogado e sócio do RMS Advogados.

  • é ex-Juiz titular do TRE-CE. Presidente da Comissão Especial de Compliance Eleitoral e Partidário do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

  • é doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Mestre em Direito pela UFC (Universidade Federal do Ceará). Presidente da Comissão Especial de Ética na Política e Combate à Corrupção Eleitoral da Ordem dos Advogados do Ceará.

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