Opinião

Não precisamos de novo teto: arcabouço fiscal, austeridade e direitos fundamentais

Autor

  • Gustavo Livio Dinigre

    é promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ex-defensor público do Estado da Bahia e mestrando em Direito e Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

26 de abril de 2023, 6h07

Juristas preocupados com a efetividade dos direitos fundamentais precisam prestar atenção à política fiscal. Educação pública de qualidade, fortalecimento do SUS, investimentos em segurança pública, todas essas pautas exigem robusta política fiscal. 

A política fiscal tem dois lados: arrecadação e despesas. Quando cobra tributos, o Estado retira riqueza do setor privado. Quando gasta, o Estado despeja recursos na economia.

Com isso, percebemos a política fiscal é essencialmente redistributiva, o que significa que o Estado desloca riqueza de um lugar para outro. Mas não se engane: o Estado não precisa antes arrecadar para depois gastar. Isso porque o Estado tem soberania monetária, o que significa que pode injetar dinheiro na economia sem lastro prévio.

Em resumo, duas correntes se digladiam sobre o papel do Estado na economia. A primeira é a corrente ortodoxa neoclássica. Em geral, os ortodoxos contraindicam políticas fiscais expansionistas porque a intervenção do Estado produz um efeito de deslocamento do investimento privado (conhecido no jargão econômico como crowding out).

Existiria relação de concorrência entre gasto público e gasto privado, de modo que a ampliação dos gastos públicos geraria retração da atividade privada. Como o setor público, por definição (!), é menos eficiente que o privado, o expansionismo fiscal pode até gerar crescimento no curto prazo pelo aumento imediato da demanda agregada, mas a médio e longo prazos geram apenas inflação e desequilíbrio. Por trás desse pensamento está a crença de que o mercado é dotado de mecanismos estabilizadores que induzem equilíbrio automático, e se o Estado entra na jogada, tudo o que ele pode fazer é perturbar esse equilíbrio.

Os ortodoxos acreditam que o crescimento econômico é, em essência, resultado do aumento de produtividade do setor privado (a demanda não tem tanta importância). Se o Estado quiser ajudar, deve cortar tributos e reduzir seu "tamanho" (ou seja, deve ter uma política fiscal enxuta: poucos tributos e poucos gastos).

A estratégia keynesiana não pode funcionar porque todo dinheiro que o Estado injeta na economia deve ser antes arrecadado, de modo que o Estado não pode criar nova demanda, mas apenas transferir riqueza de um grupo para outro. Se o Estado gastar sem lastro prévio na arrecadação, tudo que produzirá é inflação e desequilíbrio.

Seguindo essa linha, as políticas de austeridade ganharam força após a crise de 2008. O cenário foi o aumento da dívida dos países europeus e dos Estados Unidos. A tese da austeridade sustenta que o corte de gastos do Estado proporciona crescimento econômico porque eleva a confiança dos agentes privados.

Isso ocorre por dois mecanismos: redução da taxa de juros e tributos mais baixos. Gastos menores do governo abrem espaço para a redução da carga tributária e das taxas de juros, o que inspira a confiança nos agentes econômicos, que, por sua vez, antecipam esses resultados futuros e voltam a investirconsumir no presente. Em momentos de criseestagnação, o Estado deve cortar gastos. É basicamente essa a teoria por trás das políticas fiscais adotadas no Brasil desde 2015.

De outro lado, as teorias heterodoxas em geral argumentam que o motor do crescimento é a demanda agregada. Ninguém vai investir se não tiver perspectiva de que o produto será vendido. As análises ortodoxas são psicologizantes ("confiança", "credibilidade") e se baseiam mais em humores do que na materialidade econômica.

Ao invés de afastar, os gastos públicos costumam estimular o setor privado porque déficits públicos são superávits do setor privado e vice-versa. Além disso, existe um efeito multiplicador fiscal que indica que cada R$ 1 injetado na economia eleva o produto agregado em mais do que o valor original (o Bolsa Família, por exemplo, tem um multiplicador médio de 1,78).

O nível de emprego depende do nível de investimentos; os investimentos, por sua vez, dependem do nível de demanda agregada. A demanda agregada responde a uma simples equação (e prometo que é simples, não desista!): Y = C + I + G + (E – I).

Demanda agregada (Y) é igual à soma do consumo das famílias (C) + investimentos (I) + gastos do governo (G) + saldo da balança de pagamentos (exportações – importações). Só que o consumo (C) e os investimentos (I) são variáveis autorreferidas, o que significa que uma oscila em função da outra.

Em recessões, famílias e estão endividadas e preferem poupar a consumir. A balança de pagamentos (exportações – importações) até pode puxar a economia pelo estímulo externo, mas num país continental como o Brasil tem efeitos apenas regionais (melhora a situação de Goiás, mas não carrega o Brasil).

Restam os gastos públicos, única variável exógena dependente apenas da vontade política do governo. Nos momentos de queda do ciclo econômico, o ativismo fiscal é fundamental para retomar a trajetória de crescimento. Só que as crises e choques têm o péssimo hábito de não avisar quando vem, o que significa que o Estado deve estar livre de amarras jurídicas para atuar anticiclicamente quando for preciso. Logo, a política fiscal deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico de modo a induzir o desenvolvimento nacional.

Mas e a dívida pública? Os pregadores do evangelho da austeridade conseguiram disseminar com sucesso a pegajosa analogia o Estado e a família. "Veja a Argentina", dirão.

Há quatro coisas a se considerar sobre a dívida pública: 1) O Estado não é como uma família porque possui soberania monetária, o que significa que detém o monopólio de emissão da moeda nacional e pode injetar dinheiro na economia antes de arrecadar. Como diz André Lara Resende, "só o Estado é capaz de criar poder aquisitivo sem poupança prévia". "Só ele e seus concessionários, os bancos com acesso ao banco central, podem criar poder aquisitivo não lastreado em algum ativo existente" (1).

Com isso, o mito de que o Estado precisa primeiro arrecadar para depois gastar não se sustenta; 2) Não existe o menor risco de que um Estado monetariamente soberano deixe de pagar sua dívida em moeda nacional. Por isso é tão importante distinguir dívida interna de dívida externa. A dívida externa tem risco de inadimplência na medida em que o Estado não tem ingerência sobre a emissão de moeda estrangeira; mas a dívida interna não corre risco de não ser paga.

Jintana Pokrai
Jintana Pokrai

Logo, as comparações com a Argentina e a Grécia não têm pertinência. A Argentina tem um problema crônico de dívida externa. A Grécia abdicou de sua soberania monetária em favor do euro. Não existe nenhum exemplo histórico de Estado que tenha "dado calote" de dívida denominada em moeda nacional.

Veja de novo Lara Resende: "Existe risco na dívida pública denominada em moeda estrangeira, mas não existe risco de crédito na dívida pública denominada em moeda nacional" (2); 3) Isso não significa que o Estado possa sair por aí imprimindo dinheiro. Os gastos públicos podem ter efeito inflacionário nocivo em uma economia já aquecida; 4) O Brasil possui US$ 335 bilhões de reservas cambiais. Não temos rigorosamente nenhum problema de dívida externa. Nossa dívida interna é moderada e está na casa dos 73% do PIB.

A título de comparação, a dívida dos EUA hoje é 123% do PIB, a do Japão é de 266% e a da Inglaterra de 100%. E podemos afirmar que nenhum desses países vai "dar calote".

Em geral, as políticas de austeridade não funcionam porque não existe uma "fada da confiança" que vai despertar os "ânimos" dos agentes econômicos e fazer com que eles voltem a consumirinvestir sem que exista demanda correspondente.

Ainda que o mercado possa ficar "animado" com as expectativas de redução dos gastos, isso tem um efeito indireto, incerto e efêmero sobre a economia que raramente compensa os efeitos diretos, líquidos e certos resultantes da redução da demanda que acontece aqui e agora quando o governo corta gastos.

O corte de gastos em momentos de crise apenas contribui para agravá-la. Até o FMI (Fundo Monetário Internacional) reconhece: "retirar estímulos fiscais demasiado depressa nas economias em que a produção já está contraindo pode prolongar as suas recessões" (3).

Então por que elas fazem tanto sucesso? Porque são muito lucrativas para o andar de cima. Lembra que a política fiscal é sempre redistributiva? A burguesia não tem interesse em redistribuir sua riqueza. Por isso defende uma política fiscal enxuta. A dívida pública não passa de "fator espantalho" para disseminar medo e inclinar o debate público a favor das políticas de redução do Estado com base em analogias estúpidas. O tal do "rombo fiscal" não passa de terrorismo ideológico-midiático.

Fixemos três premissas: a) A política fiscal deve ser instrumento de concretização dos objetivos do artigo 3º, CF e dos direitos fundamentais. O "tamanho" do Estado deve ser robusto o suficiente para englobar esse programa. Não é a Constituição que devem caber no orçamento, é o orçamento que deve ser suficiente para efetivá-la; b) Políticas de austeridade, além de contraproducentes do ponto de vista econômico, restringem a efetivação do programa constitucional; c) O Estado precisa de ativismo fiscal para concretizar a Constituição.

Isso significa atuação pujante do Estado como indutor do desenvolvimento e efetivador de políticas públicas. Normas fiscais rígidas baseadas em "metas fiscais" são problemáticas por natureza. O Estado deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico, estimulando a economia em momentos de anemia e atuando em equilíbriosuperávit nos momentos de expansão.

Dito isso, contra todas as expectativas constitucionais, o teto de gastos algemou as mãos do Estado e determinou um limite fixo de despesas sem qualquer relação com as receitas. O que se sucedeu foi uma autofagia generalizada do Estado na esperança de que a "fada da confiança" viesse nos salvar. Bem, ela não veio. No período, registramos pífio crescimento econômico, sucateamento de serviços públicos e até mesmo ligeiro crescimento da dívida.

O NAF infelizmente segue a mesma lógica de colocar a redução da dívida pública na frente dos direitos fundamentais. Ele funcionará assim: o crescimento real das despesas primárias de um ano para outro possuem um piso e um teto que serão fixados na LDO do início de cada legislatura (artigo 4º, §1º, I).

Para 2024 a 2027, o piso é de 0.6% e o teto é de 2.5% (artigo 9º, I). A LDO também fixará a proporção máxima de variação real da despesa em relação à variação real da receita (art. 4º, §1º, II). Para 2024 a 2027, o governo fixou o percentual de 70%. Se a arrecadação crescer 2%, a despesa poderá subir até 1,4% (dentro do teto de 2.5%).

A LDO também deve fixar metas fiscais com bandas de tolerância. Para esse ano, o governo projeta déficit de 0.5% do PIB (com bandas de 0.25%). Para 2024, pretende-se zerar o déficit; em 2025, projeta-se superávit de 0.5% e em 2026, de 1% do PIB. Se o resultado primário ficar abaixo da banda da meta, a LDO deve prever a redução do percentual de variação (artigo 4º, §1º, III). Entre 2024 e 2027, essa redução será de 70% para 50%.

O NAF fixou um piso de R$ 75 bilhões de investimentos corrigidos anualmente e permitiu que se o resultado primário tiver superávit acima do teto da banda, o excedente pode ser redirecionado para investimentos (artigos 5º e 6º).  

Aspectos positivos da regra: a) piso para investimentos públicos; b) É melhor que o teto de gastos. Ao menos, garante um crescimento real mínimo de 0,6%.

Aspectos negativos: 1) O que ninguém parece perceber é que o piso de 0,6% é, na verdade, um teto. Exemplo: entre 2009 e 2010, durante a crise mundial, a arrecadação sofreu uma redução de -0.14%. Se o NAF estivesse em vigor, entraria em cena o "piso" de 0,6% de crescimento real da receita. Sabe aconteceu na realidade? O governo aumentou os gastos em robustos 16.29% (cálculos de David Deccache), uma diferença colossal em relação aos 0.6% que seriam permitidos pelo NAF. E assim tivemos crescimento de 7.5% em 2010, o que contribuiu para que passássemos pela crise com tranquilidade mantendo estável a dívida pública.

2) Como alerta Élida Graziane Pinto (5), os pisos da saúde (15%) e da educação (18%) incidem sobre a receita resultante de impostos (art. 212) e sobre receita corrente líquida (artigo 198, §2º, I). Com isso, variam em proporção igual ao crescimento das receitas. Se as receitas crescerem 5%, os gastos com saúde e educação também crescem 5%, mas o NAF só permite acréscimo de 2,5%. Isso gerará conflito entre as despesas no médio prazo, pois algumas despesas crescem na base de 100% enquanto outras crescem na base de 70%.

3) Teto muito baixo de crescimento das despesas (2,5%). Para fins de comparação: entre 2003 e 2010, o crescimento real médio dos gastos foi de 5.2%. Entre 2010 e 2016, foi de 3.5%. Os primeiros estudos demonstram que se o teto de 2.5% estivesse vigente desde 2002 perderíamos algo em torno de R$ 10 trilhões em gastos públicos (4).

4) As metas de resultado primário são problemáticas em si porque geram constrangimentos políticos para fixação de superávits. Déficits públicos não são populares. Apesar de fundamentais, paira sobre eles enorme preconceito. A regra é projetada para que cada novo governo estipule metas de resultado primário ao longo dos 4 anos de mandato. Isso gerará constrangimento político para a fixação de metas superavitárias. Que governo eleito fixará déficits para seus 4 anos de mandato? O déficit não pode ser projetado de antemão; ele deve acontecer em momentos de estagnaçãocrise, para os quais não temos bola de cristal para saber quando vêm.

5) Vinculação das despesas às receitas. O que caracteriza a atuação anticíclica é justamente a desvinculação de ambas. A política fiscal deve estar livre de amarras jurídicas para dinamizar a economia de acordo com o ciclo econômico. As receitas tendem a cair quando a economia desaquece, e é nesse momento que o déficit do Estado entra em cena.

Os juristas preocupados com a concretização dos direitos fundamentais precisam entender que a política fiscal é a base de tudo. A volatilidade do ambiente econômico não recomenda a utilização de mecanismos legislativos rígidos. O Estado brasileiro deve deslocar seu compromisso com a dívida pública para o atendimento dos direitos fundamentais. Há décadas a economia tem sido guiada por regimes de metas fiscais e de inflação que precisam passar a conviver com metas de caráter social. A responsabilidade social e o planejamento fiscal devem começar a disputar espaços com a, por enquanto, solitária responsabilidade fiscal.

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REFERÊNCIAS:
1 – RESENDE, ANDRÉ LARA. Camisa de força ideológica. 2022. P. 37.
2 – Idem, p. 68.
3 – BATTINI, NICOLETA et all. Sucessful Austerity in The United States, Europe and Japan.
4 –Ver aqui.

5 – Ver aqui.

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