Opinião

O trabalho nas plataformas digitais e a alteração da Lei Laboral de Portugal

Autor

  • Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é advogado mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa professor a contrato do Master Diritto & Sport da Universidade La Sapienza de Roma membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (IADF) e da União Internacional de Advogados (UIA) membro honorário da Academia Petropolitana de Letras e sócio do Corrêa da Veiga Advogados.

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24 de abril de 2023, 6h08

No Diário da República de Portugal do último dia 3 de abril, foi publicada a Lei nº 13/2023, que altera o Código do Trabalho no âmbito da agenda do trabalho digno.

A revisão da Lei Laboral ocorreu após intensos debates que promoveram incorporações de diretivas da União Europeia no ordenamento jurídico português, alterações de leis esparsas, alteração do Código de Processo do Trabalho e aditamento de dez novos artigos e modificação de 80 artigos do Código do Trabalho.

Inobstante os debates travados na Assembleia da República, as empresas e os empresários não tiveram muito tempo para se adaptar às mudanças que já estão em vigor.

Parte dessas alterações diz respeito ao trabalho das plataformas digitais, em especial a regulação do trabalho de condutores e entregadores de empresas como Uber, Glovo e Bolt, por exemplo.

O trabalho em plataformas digitais nasce em um período de mudanças da economia global e se traduz em um modelo empresarial no qual a atividade é facilitada por plataformas colaborativas que criam um nicho de mercado que possibilita a utilização temporária de bens e serviços, muitas das vezes prestados por particulares.

A expansão das plataformas digitais é avassaladora e em menos de uma década foram criadas cerca de 10 mil companhias responsáveis por gerar inúmeros empregos. Na Europa, há mais de 28 milhões de trabalhadores em plataformas, quase a mesma quantidade de trabalhadores presentes na indústria transformadora, que conta com 29 milhões pessoas.

No intuito de adequar a legislação laboral no âmbito do trabalho digno, o principal objetivo do legislador em relação a esses trabalhadores foi o de assegurar direitos mínimos e uma vinculação formal às empresas de plataformas digitais.

O artigo 3º do CT trata das relações entre fontes de regulação e já estabelecia as matérias que podem ser objeto de regulação coletiva de trabalho e afastar normas legais reguladoras de contrato de trabalho.

A partir de agora, matérias que digam respeito ao uso de algoritmos, inteligência artificial e matérias conexas, nomeadamente no âmbito do trabalho nas plataformas digitais, só podem ser afastadas por instrumentos de negociação coletiva de trabalho que, sem oposição das normas legais, disponha em sentido mais favorável aos trabalhadores.

Com efeito, o legislador português permite a intervenção de normas coletivas que contenham disposições menos favoráveis aos trabalhadores que a lei prevê, tendo em vista que nesta situação os empregados estão representados pelas associações sindicais. Todavia, há matérias em que se entendeu que o que está na lei é o mínimo assegurado para o trabalhador.

O Código do Trabalho já prevê a figura da presunção do contrato de trabalho (Artigo 12º), sendo esta caracterizada quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra(s) que dela se beneficiam, se verifiquem as seguintes características: a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade; c) O prestador da atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário desta; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador da atividade, como contrapartida desta; e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura da empresa.

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O serviço de aplicativo Bolt, em Portugal
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O Código estabelece que constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de atividade, por forma aparentemente autônoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.

Com a recente alteração, fica estabelecido que em caso de reincidência, são aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias: a) Privação de direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos; b) Provação no direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.

Desta forma, são cinco os requisitos para a configuração da relação de emprego. Todavia, de acordo com o novo diploma legal, foi inserido o artigo 12-A, que estabelece um rol alternativo de seis requisitos para a configuração da relação de emprego no âmbito da plataforma digital. A saber:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrônicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por estes explorados através de contrato de locação.

Desta forma, presente apenas um desses requisitos, em tese, já estaria configurado o liame empregatício entre prestador de serviço e plataforma digital que foi definida pelo legislador como a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrônicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.

Importante ressaltar que a lei prevê que a presunção mencionada poderá ser elidida se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controle, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.

Outrossim, a plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respectivos trabalhadores.

Com efeito, o trabalho em plataformas digitais é um caminho sem volta e está relacionado com a denominada economia colaborativa (sharing economy), que provoca uma profunda mudança nos conceitos clássicos de trabalho e emprego.

Portanto, não adianta querer impor regras positivadas que não guardem aderência com a realidade, pois, do contrário, sempre haverá formas de se contornar a exigência legal.

Em relação ao trabalho prestado pelos entregadores, por exemplo, seria possível dar margem ao prestador de serviços para definir o pagamento no intervalo, ao invés de fixar o pagamento e com isso afastar um dos critérios para o reconhecimento do vínculo de emprego que é a dependência laboral.

É sempre atual a lição do jurista francês Georges Ripert: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito".

Os trabalhadores das plataformas digitais têm uma maior liberdade e autonomia na sua atuação, o que não afasta a necessidade de uma proteção mínima, principalmente no que concerne a questão previdenciária e securitária.

Ao contrário do que se propaga, esses prestadores de serviços não são "empresários" e donos do seu próprio negócio. Por outro lado, também não são empregados nos moldes tradicionalmente conhecidos.

O grande desafio é encontrar o equilíbrio que permita a liberdade na prestação dos serviços, algo inerente ao trabalho das plataformas digitais, bem como direitos relacionados a esta atividade, como um seguro de acidentes, enquadramento fiscal e proteção social.

Torna-se necessária uma reflexão que nos liberte da visão binária e limitada de que o serviço somente pode ser prestado de forma autônoma, por conta e risco do trabalhador, ou através de uma relação empregatícia tradicional.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal no Brasil vem pautando as suas decisões, valendo destacar trecho de decisão utilizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso ao afirmar que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. (decisão proferida na Reclamação 56.132).

É possível, portanto, a existência de outras formas de prestação de serviços que contemplem a realidade atual em que vivemos.

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