Opinião

O que é o direito sancionador? (parte 2)

Autor

  • Amanda Guimarães da Cunha

    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch) juntamente com Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.

24 de abril de 2023, 18h07

Escrevi aqui mesmo nesta ConJur sobre o que compreendo identificar o ramo de direito sancionador e, para tanto, estabeleci as seguintes premissas: toda sanção é uma medida restritiva de direito, mas nem toda medida restritiva de direito é sanção; para ser sanção, deve existir a finalidade de impor um castigo a quem atentou contra o ordenamento jurídico e não somente restabelecer um bem jurídico violado.

Em linhas gerais, concluí que "é afeto ao regime de direito sancionador toda norma jurídica que busca, além de restabelecer o status quo ante do bem jurídico violado, imprimir um mal a quem que atentou contra o ordenamento, seja para fins de castigo, educativos ou políticos".

Discutir a teoria do delito em si já é algo desafiador, dada a não existência de um consenso absoluto do que seja um crime e uma pena em si, bem como pelo fato de que são conceitos influenciados diretamente pelas normas social e politicamente impostas. Imagina transportar esse raciocínio para as demais esferas sancionatórias do direito.

Pois bem. Nessa tentativa, em continuidade aos estudos acerca dos mais diversos ilícitos de natureza sancionatória do ordenamento jurídico brasileiro para além dos crimes em si, escrevi o texto supraindicado.

Em conversa com o professor Thiago Yukio, grande e exímio criminalista, atualmente defensor público de Santa Catarina, sobre suas impressões acerca do texto, ele me chamou atenção para uma confusão comumente cometida por estudiosos do tema, na qual eu também incorri: o de definir o conceito de sanção a partir das suas finalidades.

Separar o conceito da finalidade, afinal, é fundamental para que se possa questionar a legitimidade da pena, ou da sanção, com os fins pelos quais ela se justifica. Em suas palavras, uma coisa é dizer que "se trata de um mal imposto em razão de um ilícito praticado; outra coisa é dizer que se trata de um mal imposto para o fim de".

E aqui colocamos uma questão central: o desafio está em definir, como na teoria da pena, o que é uma sanção não penal, seja administrativa, seja econômica, tributária, eleitoral, etc.

Em consulta à dissertação de mestrado do professor, para as discussões que ele travaria, sobre a racionalidade da motivação na determinação judicial da pena, precisou visitar o tema. Ao fazê-lo, não sem antes criticar justamente a confusão comum entre o conceito e função da pena, invocou os estudos do também penalista Luís Greco [1] para construir o que ele próprio entende como pena.

Preliminarmente o autor compreende que "as penas são males especialmente graves, de tipo físico ou comunicativo, impostos pelo Estado, que se infligem como reação objetiva diante de um suposto delito". "Em outras palavras, pode haver penas que sejam apenas um mal físico (prisão, exemplo meu), pode haver penas que sejam apenas um mal comunicativo (multa, exemplo meu), e pode haver ainda penas que reúnam os dois aspectos."

O professor Yukio analisa esse conceito e chama atenção para a amplitude, que permitiria uma compreensão de pena muito alargada e deixaria "pouco espaço para sanções de outra natureza jurídica e que iguala reações estatais muito distintas, com extensão desmesurada das exigências justificativas da pena".

A observação é pertinente, tendo em vista que a sua defesa é feita para um conceito stricto sensu penal. E, mais ainda, sobre a pena privativa de liberdade, sua justificativa e legitimidade. Todavia, quando pensamos para além da prisão em si, ela vai ao encontro daquilo que precisamos para delimitar um conceito amplo de sanção, que, na minha intransigente defesa, extrapola o âmbito penal, até mesmo por questão ontológica, como já venho defendendo, na esteira da majoritária doutrina e tribunais internacionais de direitos humanos sobre o tema [2].

O mestre Yukio menciona então um trabalho mais recente de Luís Greco [3], em que o conceito material de pena foi restringido após a seguinte reflexão:

"Caracterizar a pena como um mal físico ou como um mal comunicativo é insuficiente, di-lo agora: uma vez que existem males sensoriais que não são penas (prisão preventiva ou multa de trânsito) e que não pressupõe culpabilidade, o conceito de pena como mal é insuficiente; por outro lado, caracterizar a pena apenas como reprovação é insuficiente porque há vários juízos estatais de censura que não são penas (um relatório final da comissão da verdade sobre violação de direitos humanos, por exemplo) e também porque torna a pena inofensiva, haja vista que pode haver censura sem tocar sequer em um fio de cabelo do apenado. Portanto, a pena, agora, não seria um mal sensível ou um mal comunicativo, mas sim um mal sensível e comunicativo."

Ora, o autor constrói o seu raciocínio notadamente utilizando o vocábulo pena apenas para a prisão. Mas veja o trecho destacado: "uma vez que existem males sensoriais que não são penas". Importa dizer que existem males, leia-se sanções, para além da pena de prisão, como a própria multa. O fato de o autor assim considerar porque dispensariam a culpabilidade demanda uma discussão à parte e precisa ser contextualizado com o regramento alemão que promoveu um esvaziamento das condutas puníveis, resguardando um direito penal mínimo.

No que diz respeito ao mal sensorial, o autor ainda faz uma delimitação interessante, muito bem recortada pelo mestre Yukio:

Em relação ao aspecto do mal sensorial, o critério da gravidade característico da pena não deve repousar na quantidade (o quanto atinge o apenado), e sim na qualidade (o que retira do apenado): "o mal da pena atinge direitos inatos (em contraposto aos chamados direitos adquiridos), que são aqueles direitos que todo ser humano possui em razão de sua condição humana. O mal da pena reside, portanto, em ela se dirigir contra a liberdade de locomoção […] pena é a supressão de um direito inato – nos dias de hoje, portanto, da liberdade de locomoção – como reação a um comportamento errôneo".

Em outras palavras: a pena caracteriza-se por um mal, sensorial e/ou comunicativo, que restringe direitos fundamentais de toda e qualquer pessoa humana que são notadamente inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. O mal da pena de prisão atinge a liberdade de ir e vir, mas ouso dizer que o mal da sanção em si é a restrição de um direito fundamental por excelência.

Para o professor Yukio esta é a delimitação ideal, pois utiliza um critério qualitativo (o que retira do apenado), ao invés de quantitativo (o quanto atinge o apenado). Acredito que isso também importe sobre a justificação da pena, afinal, o quanto aflige o apenado, ou sancionado, é algo extremamente subjetivo. A título exemplificativo, proponho a seguinte reflexão: seria mais penoso a um político de carreira passar um ano com restrição de liberdade e ter seus direitos políticos recuperados tão logo ela cesse ou permanecer em liberdade de locomoção por oito anos e inelegível?

Para além disso, o mestre invoca o critério formal de delimitação do que é pena, entendida por aquilo que o legislador define como tal, utilizando como exemplo a pena de multa e a pena de admoestação verbal, as quais, previstas como penas no Código Penal, deverão, por razões materiais (e não somente formais), observar as exigências mais rigorosas para sua justificação e aplicação.

Sendo assim, para Yukio "a pena deve ser compreendida como uma grave restrição a um direito inato  nos dias de hoje, portanto, da liberdade de locomoção, que é o único direito inato suscetível de cálculo no tempo  como reação a um comportamento humano supostamente errôneo, além das reações objetivas a um delito tipificadas pelo legislador como pena"

E aqui eu respeitosamente discordo do meu querido mestre, pois, em que pese ele fazer referência a direitos inatos, defendo que há outros direitos fundamentais, mesmo que adquiridos, como os direitos políticos que são, inclusive, direitos de liberdade de mesma geração, os quais também podem ser contados por meio do tempo, ainda que parcialmente, como no caso da suspensão apenas da capacidade eleitoral passiva. Mas, frisa-se, seu contexto de análise foi voltado, magistralmente, ao direito penal.

O desafio que venho me propondo, porém, é outro: de que forma pode-se conceituar uma sanção lato sensu? E, ainda mais, ela pode ser definida dissociada de sua finalidade?

Resgatando um exemplo do autor, a própria prisão preventiva, ainda que atinja a liberdade de locomoção e seja revestida de gravidade, não é sanção. É um mal sensorial que não é pena. Ou seja, é uma medida severa de restrição desse direito fundamental, mas para fins processuais e nas hipóteses delimitadas legalmente, não para fins de castigo.

Trazendo o exemplo para outras searas, se por meio de uma obrigação eu imponho uma restrição visando somente a restauração do bem jurídico, atingido por ato do próprio infrator, como o pagamento por um dano material ou moral, eu não estou punindo. Eu não estou sancionando.

De outra banda, pelo atraso de um tributo, se além da correção de juros e demais correções monetárias, é imposta uma multa, se está restringindo o direito fundamental à propriedade privada do particular não só para fazê-lo cumprir uma obrigação que precisa ser atualizada para não perder seu valor real, mas para puni-lo a fim de castigá-lo e/ou reeducá-lo a não incorrer no mesmo erro.

As sanções impostas por meio dos ilícitos de improbidade administrativa, que além de exigirem o ressarcimento ao dano e ao erário, proíbem de contratar com o poder público, suspendem direitos políticos, dentre outras restrições, são nitidamente sancionadoras. Neste caso, digno de nota o avanço ao reconhecer o regime de direito sancionador (ainda que não o seja administrativo sancionador, mais um assunto para outro momento).

Trazendo para o contexto de meu interesse particular, o eleitoral, se para restaurar a legitimidade do pleito eleitoral por uma conduta de abuso de poder que o maculou eu não só casso o mandato eletivo, mas impeço que essa pessoa exerça seus direitos políticos passivos por oito anos (inelegibilidade), eu estou impondo castigos.

Então concordo plenamente com o fato de que é necessário construir o conceito material de sanção, mas é somente a partir da finalidade da restrição imposta que eu defino se estou atrelado ao regime de direito sancionador ou não.

Qualquer restrição de direito fundamental é um mal em si e carrega por si só um caráter aflitivo, quando isso ocorre a partir da identificação de um ilícito [4]. Todavia, o que diferencia, em essência, o direito sancionador é a utilização desse mal para fins de castigo/ressocialização/reeducação e demais diversos fins da pena, sem entrar no mérito aqui se eficientes ou não. É utilizar-se da sanção como mecanismo de coerção que delimita o núcleo comum deste ramo do direito [5].

A diferença afinal reside no direito fundamental restringido, na gravidade da restrição imposta e no bem jurídico protegido pela norma.

Sem descuidar que a pena privativa de liberdade é a sanção, digamos, clássica por excelência, as demais atingem igualmente direitos fundamentais que precisam ser resguardados mediante as regras do devido processo.

Deixar de reconhecer os demais ilícitos com natureza sancionatória no ordenamento jurídico não levará, na minha percepção, a um esvaziamento das garantias rígidas do processo penal, uma justa preocupação. Mas, sobremaneira, a proteção dos demais direitos fundamentais tutelados pelas normas sancionadoras de outras esferas, tendo em vista que vivemos, como bem nomeou Silva Sanchéz, uma irreversível expansão do direito penal a demais esferas.

Quem sabe esse reconhecimento, com os diversos bis in idem que podem ser constatados ante normas sancionadoras sobre os mesmos fatos em diversas esferas, consiga trazer um pouco mais de racionalidade à atividade punitiva estatal e, talvez ainda, um esvaziamento dessa proliferação de condutas.

Sanção é um mal, sensorial e/ou comunicativo, porque utiliza-se de uma restrição de direito com finalidade punitiva. Demarcar estas fronteiras de forma métrica ou hermética talvez seja uma tarefa impossível, dado também o contexto social, político e jurídico do qual emergem esses conceitos. Também demonstram como, de partida, essas regras foram sendo construídas sem maiores critérios, especialmente que se perguntassem, afinal, o que é direito sancionador, no que isso implica e de que forma deve ser regulamentado.

Na linha do que já o fazem os tribunais internacionais de direitos humanos, defendo, portanto, que há diversos critérios cumulativos para delimitar esse campo do direito, materiais e processuais.

Termino a parte 2 desta reflexão com mais perguntas do que respostas e sem dúvida aberta a uma parte 3 e sucessivamente. Se fosse diferente, tratando-se de pena e sanção, sem dúvida eu estaria de partida equivocada.

Agradeço imensamente ao querido Thiago Yukio pela oportunidade de aprendizado e reflexão. Os grandes mestres, mais do que ensinar, nos provocam ao pensamento crítico e reflexivo.

 


[1] GRECO, L. Lo vivo y lo muerto en la teoria de la pena de Feuerbach: una contribuición al debate actual sobre los fundamentos del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2015.

[2] "Há quem defenda, perspectiva na qual me incluo, que não haveria diferenças ontológicas entre eles, sendo apenas critério do legislador, aliado a questões de tempo e espaço, defini-los como ilícitos cíveis, administrativos ou penais. Até mesmo porque, há não muito tempo, o poder de restringir direitos e/ou punir quaisquer condutas se concentrava no poder do soberano, não havendo distinção entre atividades administrativas e judiciais" (CUNHA, op. cit).

[3] GRECO, L. Opõe- se o princípio da culpabilidade à penalização de pessoas jurídicas? Reflexões sobre a conexão entre pena e culpabilidade. In: GRECO, L. As razões do direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019a, p. 53-82.

[4] A regulamentação de um direito fundamental, como a concessão de licenças, o exercício de garantias constitucionais, em que pese restritivo, não possui um caráter aflitivo nos termos que aqui se propõe. O recorte, e diferenciação, que aqui se propõe é sobre as formas de responsabilização para os mais diversos tipos de ilícitos, sancionadores ou não.

[5] Por exemplo, o Caso Maldonado Ordoñez Vs Guatemala julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Autores

  • é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais, autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch), juntamente com o dr. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior, membro-pesquisadora do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professora de Direitos Humanos.

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