Opinião

Sistema de compliance em direitos humanos: opção ou obrigação?

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24 de abril de 2023, 6h31

Nas últimas décadas, o padrão de responsabilidade empresarial tem migrado de uma responsabilidade unicamente centrada na geração de lucros imediatos para os acionistas, para uma nova perspectiva de expansão da responsabilidade quanto aos impactos ambientais e sociais decorrentes de suas atividades.

Essa ideia da necessidade de assunção de responsabilidade social e ambiental das empresas foi concebida de modo mais sistematizado, como um modelo, no início dos anos 90, pelo britânico John Elkington e ficou conhecida como triple bottom line [1] ou tripé da sustentabilidade. O modelo foi estruturado em três aspectos: social, ambiental e econômico. Elkington lançou luz sobre a responsabilidade das empresas, não só em relação aos aspectos financeiros relacionados aos seus acionistas, mas também a responsabilidade quanto aos impactos sociais e ambientais de suas atividades.

Nessa necessária mudança de perspectiva em nível mundial, o termo ESG (Environmental, Social and Governance) ganhou destaque a partir de 2004 quando a ONU publicou o relatório Who Care Wins que enfatizava a importância de se conciliar as práticas sociais e ambientais sustentáveis com a geração de lucros para os acionistas.

As práticas ESG, inicialmente concebidas para serem utilizadas pelos investidores como um conjunto de indicadores e métricas para aferir a sustentabilidade e responsabilidade das empresas quanto aos aspectos ambiental, social e governança, hoje é instrumento para tornar as empresas melhores, mais resilientes e mais responsáveis, além de comprometidas com os impactos ambientais e com a sociedade na qual estão inseridas [2].

Na dimensão social (S) do ESG, a responsabilidade social corporativa destaca-se pela necessidade de as empresas voltarem os olhos para os impactos que suas atividades causam na comunidade local (justiça social) e nas relações de trabalho (gestão do capital humano) [3]. Para aderir de forma efetiva a uma agenda voltada à gestão do capital humano, as empresas devem, sobretudo, iniciar pelo respeito aos direitos humanos, promovendo trabalho decente.

Sob o prisma de promoção de trabalho decente, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8 (ODS8), da Agenda 2030 da ONU, faz vinculação do crescimento econômico ao trabalho decente de modo que o progresso sustentável passa necessariamente pela promoção do emprego e pela valorização do trabalhador enquanto pessoa humana [4].

Ainda sobre a responsabilidade corporativa de respeitar os direitos humanos, os Princípios Orientadores Sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU estabelecem como dever das empresas respeitar os direitos humanos e enfrentar os impactos negativos de suas atividades, adotando medidas adequadas para identificar, prevenir, mitigar e, se necessário, reparar eventuais danos que tenha causado ou para as quais tenha contribuído. Além disso, devem ser criados mecanismos acessíveis e eficientes de reparação de violações cometidas [5].

Os princípios também servem como um padrão global através do qual as empresas podem ser avaliadas, quanto a efetividade dos direitos humanos e da promoção de trabalho decente.

No cenário atual, pode até parecer que a adesão das empresas a práticas socialmente responsáveis e adesão a sistemas de integridade para proteção dos direitos humanos sejam opcionais, diante do caráter voluntário de algumas normas (soft law). Entretanto, há um movimento global que não pode ser desconsiderado. Cada vez mais os países e organizações internacionais exigem compromisso e responsabilidade das empresas transnacionais com as questões relacionadas à preservação ambiental e respeito aos direitos humanos, tanto nas relações diretas como indireta, nas cadeias de abastecimento.

E neste novo contexto global, entrou em vigor, no dia 1º de janeiro de 2023, a Lei Alemã de Diligência em Cadeias de Fornecimento (LDCF) [6] que estabelece a obrigatoriedade de as empresas nacionais adotarem sistema de compliance, nele inserido a obrigação de due diligence (diligência prévia ou devida diligência) para prevenir violações aos direitos humanos em cadeias de suprimentos.

Embora a lei só se aplique as empresas alemãs, as subsidiárias de empresas alemãs com atuação no Brasil e as empresas brasileiras que atuem como fornecedoras para companhias com sede na Alemanha deverão se adequar à nova lei por exigências contratuais.

Essas exigências, cada vez mais presentes em diversos países, são um indicativo de que, muito em breve, as empresas nacionais terão que, obrigatoriamente, adotar sistemas de compliance relacionados à proteção aos direitos humanos como imposição para negociar com as empresas transnacionais, notadamente, neste primeiro momento, com aquelas sediadas na Alemanha, visto ser o Brasil um dos maiores exportadores de matéria prima para aquele país.

Esse aperto global por práticas empresariais responsáveis tem gerado o efeito compliance em cadeia. Diante das exigências mais duras em determinados países, muitas empresas transnacionais, por serem obrigadas por lei nacional a implementarem sistema de compliance, também passaram e passarão a se relacionar comercialmente apenas com outras empresas que adotem o mesmo sistema.

Então, empresas internacionais começaram a exigir de empresas nacionais que implementem compliance como condição para negociar e, em consequência, as empresas nacionais passaram a exigir também das outras empresas nacionais com as quais se relacionam, resultando no compliance em cadeia.

Para além das exigências do mercado internacional, cada vez mais a sociedade tem buscado consumir produtos e serviços de empresas comprometidas com o respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos. Essa nova geração (denominada geração Z [7]) são os consumidores e trabalhadores que estão chegando ao mercado de trabalho. É a geração que tem maior consciência dos seus direitos e do conceito de cidadania, até então.

Por terem a necessidade de pertencimento, os grandes talentos (mastermind) não colocam a sua força de trabalho a serviço de organizações nas quais eles não acreditam ou que tenham um meio ambiente de trabalho tóxico. Inclusive, um recente estudo da Mercer — consultoria em carreira, saúde, previdência e investimentos — de Tendências Globais de Talentos (GTT) 2022 [8] mostra que já aparece no topo das preocupações da geração mais nova se a organização onde costuma dar atenção a saúde mental.

Essa mesma geração tende a não consumir produtos que sejam produzidos com mão de obra escrava ou mão de obra infantil. Não tolera ambiente de trabalho nocivos e se indigna verdadeiramente com condutas discriminatórias ou violadoras dos direitos humanos.

Portanto, a resposta para a pergunta inicial desse título passa por uma reflexão necessária. Em palavras diretas: muito em breve não será mais opção a adesão pelas empresas a práticas socialmente responsáveis e a sistemas de integridade com foco na valorização dos direitos humanos. Será obrigação legal ou exigência de mercado.

A resposta também passa pela necessária mudança de perspectiva quanto à renovação, fortalecimento ou criação de cultura empresarial para receber essa nova geração, seja como consumidores, seja como trabalhadores. E, neste último caso, o respeito aos direitos fundamentais e a promoção de trabalho decente são condições indispensáveis para retenção de talentos, o que garantirá a longevidade da organização empresarial.

Elis Regina já cantava Belchior: "É você quem ama o passado e que não vê que o novo sempre vem…"

Assim, empresas que buscam contemplar a dimensão social (S) do ESG, implementando efetivas políticas de inclusão, equidade e diversidade, que combatem as mais diversas formas de discriminação e o preconceito estrutural, as diversas formas de violência e assédio no ambiente de trabalho, o trabalho escravo e as piores formas de trabalho infantil, que monitoram e fiscalizam suas cadeias de fornecedores e que respeitam a liberdade sindical, não somente promovem o bem-estar dos trabalhadores, mas contribuem também para a continuidade sustentável do empreendimento, mantêm-se mais competitivas no mercado, além de contribuir também para construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Por isso, nesse contexto de sustentabilidade e efetivação dos direitos humanos, a ideia de um sistema de compliance se apresenta como um dos principais instrumentos que pode ser utilizada pelas organizações para a promoção de trabalho decente.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GALINDO, Fábio. JUNG KIM, Yoon. ZENKNER, Marcelo. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

SANCHES, Arthur Caldeira. Sustentabilidade empresarial: uma abordagem estratégica no ambiente de negócios. Presidente Prudente: Cubo Evoluir, 2019.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU BRASIL. Agenda 2030. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS — ONU. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf

Texto da lei disponível aqui

 


[1] SANCHES, Arthur Caldeira. Sustentabilidade empresarial: uma abordagem estratégica no ambiente de negócios. Presidente Prudente: Cubo Evoluir, 2019.

[2] GALINDO, Fábio. JUNG KIM, Yoon. ZENKNER, Marcelo. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

[3] GALINDO, Fábio. JUNG KIM, Yoon. ZENKNER, Marcelo. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.

[4] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU BRASIL. Agenda 2030. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs

[7] A Geração Z é composta pelas pessoas nascidas entre meados da década de 1990 e o início dos anos 2010, que cresceram em um ambiente cada vez mais conectado, tecnológico e diverso. O termo ganhou popularidade na década de 2000, especialmente a partir do livro Generation Me, publicado pela psicóloga americana Jean Twenge em 2006. Desde então, o termo tem sido amplamente utilizado para descrever essa nova geração de jovens que está entrando no mercado de trabalho e se tornando consumidores.

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