Cheiro de corrupção

Denúncias contra ministro da Suprema Corte agitam política dos EUA

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19 de abril de 2023, 10h50

Uma sequência de denúncias contra o ministro da Suprema Corte Clarence Thomas vem produzindo muita fumaça, mas nenhum fogo à vista. Isto é, estão enlameando a imagem do ministro, por produzir um cheiro de corrupção, mas não estão resultando em qualquer efeito prático — ou em qualquer coisa que afete a posição de Thomas na corte.

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O ministro Clarence Thomas fez
viagens de luxo bancadas por biolionário
Reprodução

A última notícia foi a de que, nas últimas duas décadas, o ministro Clarence Thomas relatou, nos formulários de declarações financeiras da corte, que ele e sua família receberam pagamentos de aluguel de US$ 50 mil a US$ 100 mil por ano, de uma firma chamada Ginger, Ltd., Partnership. O problema é que essa firma foi fechada em 2006, segundo o jornal Washington Post e outras publicações.

Antes disso, a agência jornalística ProPublica havia noticiado que, em 2014, uma empresa do bilionário texano Harlan Crow, "megadoador" do Partido Republicano e das causas conservadoras, comprou três propriedades de Thomas, sua mãe e um irmão falecido, em Savannah, Geórgia.

Não foi uma aquisição típica do "magnata imobiliário": ele pagou apenas US$ 133.363 por uma casa de dois quartos, ocupada pela mãe de Thomas, e por dois lotes vazios. Crow declarou que comprou a casa porque pretende transformá-la, um dia, em um museu em homenagem a Clarence Thomas.

Thomas nunca relatou a venda dos imóveis nas declarações financeiras que todos os ministros da corte têm de fazer anualmente. Quatro especialistas em ética, consultados pela agência, afirmaram que isso pode ser considerado uma violação da lei federal de declarações financeiras. Essa lei, criada após o escândalo de Watergate, requer que os ministros (e outras autoridades federais) declarem suas transações imobiliárias de mais de US$ 1 mil.

No entanto, a denúncia que provocou todo esse clima de escândalo, também noticiada pela ProPublica, foi a de que Thomas fez viagens de luxo pelo mundo, por mais de duas décadas, bancadas pelo bilionário texano Harlan Crow.

O ministro nunca incluiu, em suas declarações financeiras, esses generosos presentes, que incluíram viagens no jato particular e passeios em um iate de quase 50 metros, com serviço de bordo e um chefe particular — ambos de Crow. Se o ministro tivesse de pagar por essa mordomia, o custo total excederia US$ 500 mil, segundo a ProPublica — fora a hospedagem.

Além disso, Thomas viaja de férias, quase todos os anos, para outra propriedade de Crow, o resort Camp Topridge, que fica nas montanhas de Adirondacks, no norte de Nova York. A região atrai bilionários de todo o mundo e a diária mais baixa de um hotel nessa área é de US$ 2.250.

Thomas também frequenta o espaçoso rancho de Crow no Texas e já viajou com ele para Bohemian Grove, um refúgio exclusivo para homens na Califórnia.

A mulher do ministro
No rastro dessas denúncias, vieram à tona notícias que envolvem a mulher do ministro, Virginia Thomas, mais conhecida como Ginni Thomas. Isso tem importância porque a lei federal requer que as autoridades dos três poderes do governo declarem, além de suas finanças, as rendas de seus cônjuges e certos familiares.

De 2003 a 2007, por exemplo, Ginni Thomas recebeu mais de R$ 686 mil da Heritage Foundation, uma entidade conservadora. Thomas admitiu em 2011, depois que a notícia circulou, que se equivocou, ao deixar de declarar essa renda da mulher. Ele também deixou de declarar a renda da mulher em 2008 e 2009, quando ela trabalhou para a entidade conservadora Hillsdale College.

De acordo com a revista New Yorker e outras publicações, esses grupos protocolaram alguns pedidos como amicus curiae na Suprema Corte. Especialistas consultados pelos jornais disseram que Thomas deveria ter se declarado suspeito e não participar de julgamentos dos casos em que sua mulher Ginni tinha interesse.

O bilionário texano também ajudou Ginni Thomas. Doou meio milhão de dólares a uma organização filiada ao grupo ultraconservador Tea Party, fundada pela mulher do ministro. E pagou a ela um salário de US$ 120 mil.

Ginni Thomas também participou ativamente dos esforços do ex-presidente Donald Trump para reverter a eleição de 2020, depois que o Colégio Eleitoral deu a vitória ao presidente Joe Biden.

Ela criticou publicamente o Comitê da Câmara que investigou a invasão do Congresso em 6 de janeiro. Quando a Suprema Corte decidiu que Trump deveria entregar ao comitê certos registros oficiais, o ministro Thomas foi o único voto dissidente.

Reação dos políticos
Os políticos democratas estão com as cristas levantadas. Já fizeram pedidos de impeachment de Thomas, de investigação pela Judicial Conference, pelo Departamento de Justiça e pela própria Suprema Corte, de criação de uma CPI no Senado. E sugeriram que Thomas deveria ter a decência de renunciar. Mas nada disso ganhou tração, porque não há apoio dos republicanos, que vêm virando os olhos para outro lado.

Os democratas, a imprensa liberal e parte da comunidade jurídica também estão pressionando o presidente da Suprema Corte, ministro John Roberts. Querem que a instituição adote um código de ética mais rigoroso, a exemplo do que é seguido pelos juízes federais de primeira e segunda instância — mas não pelos ministros da Suprema Corte.

História de superação
O ministro Clarence Thomas acredita, muito provavelmente, que poderá superar essa situação delicada em que se encontra. Afinal, muito de sua história tem a ver com superação, segundo o The Economist.

Nascido negro, em um barraco com uma lâmpada elétrica e sem água corrente, desde cedo conviveu com o racismo e a pobreza. Só podia beber de fontes de água reservadas para negros e frequentar escolas públicas reservadas para negros.

Ele e seu irmão foram morar com os avós porque sua mãe não tinha recursos para sustentá-los. Mas não foi de graça. Seu avô obrigou-os a vender combustível de aquecimento durante o período escolar e trabalhar na lavoura nas férias de verão. Os colegas de escola o apelidaram de ABC (America's blackest child — a criança mais negra dos Estados Unidos).

Thomas foi para um seminário, pensando em ser padre, mas se frustrou quando percebeu que a igreja católica não o ajudava a confrontar o racismo. Desistiu da vocação quando circulou a notícia de que alguém havia atirado em Martin Luther King e ouviu um de seus colegas dizer: "Isso é bom. Tomara que esse filho da puta morra".

Voltou para a casa dos avós, mas seu avô o rejeitou, com base na suposição de que ele não ia prestar para nada na vida. Mas foi em frente, aos trancos e barrancos, e conseguiu ingressar na Faculdade de Direito de Yale — só para descobrir que seus colegas universitários eram mais racistas do que os seminaristas.

De qualquer forma, fez uma carreira na magistratura e, depois de um divórcio, casou-se com Ginni, uma mulher branca. Finalmente, foi nomeado para a Suprema Corte pelo então presidente George H. W. Busch, em 1991, depois de passar por uma das mais duras confirmações no Senado, onde foi acusado de assédio sexual.

Já na Suprema Corte, conheceu seu "melhor amigo", o bilionário texano Harlan Crow, defensor das causas conservadoras como ele, que lhe abriu as portas do lado luxuoso da vida.

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