Opinião

Código de Defesa do Consumidor e juros: interpretação deontológica dos contratos

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19 de abril de 2023, 19h41

Em que pese vivermos num país capitalista e com pensamento eminentemente liberal, a Constituição foi forjada numa época de imensa turbulência, violência, arbitrariedades e disparidade de classes e, por isso, o constituinte originário prestigiou os social e economicamente mais fracos e oprimidos, estabelecendo como um dos objetivos constitucionais a 1) dignidade da pessoa humana, a 2) redução das desigualdades e a 3) justiça social, conforme se depreende do artigo 3º.

Além disso, a ordem econômica deveria proteger uma importante figura das relações negociais derivada da revolução industrial e que, em não raras as vezes, é quase invisibilizada ou mesmo ignorada, qual seja: o consumidor.

As relações de consumo parecem serem calcadas mais na relevância do capital do que propriamente por quem realmente tem importância. Ora, poderíamos fazer o raciocínio não tão absurdo de que sem consumidores não haveria demanda; e, sem demanda não haveria mercado. Por mais razoável que seja imaginarmos que os fornecedores também podem criar a demanda, ainda assim, sem pessoas que não estejam interessadas em consumir ou adquirir, não haveria demanda e, com isso, o lucro seria inexistente.

Os celulares, por exemplo, que hoje servem, inclusive, como instrumento de trabalho e uma verdadeira necessidade dos tempos modernos para a comunicação, quando foram criados, não havia a necessidade de sua criação. Foi uma inovação, um "plus", uma benfeitoria voluptuária que deu certo.

Uma das maiores batalhas judiciais que o consumidor enfrenta é no tocante à revisão de juros. O Código de Defesa do Consumidor prevê uma regra de revisão mais benéfica ao consumidor do que aquela prevista nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Entretanto, aquele ainda padece nesta "luta de braço" jurídica em face às instituições financeiras.

Com isso, cria-se o ambiente perfeito não apenas para um maior desequilíbrio contratual, mas igualmente num endividamento desenfreado com o oferecimento irresponsável de crédito.

Desequilíbrio e endividamento andam de mãos dadas, impactando a economia nacional.

O consumidor vem perdendo a briga por uma relação mais justa e equilibrada e, não fosse o Código de Defesa, sua situação estaria bem pior. Vejamos, por exemplo, o EREsp nº 1.889.704/SP no qual se julgou em favor das operadoras de planos de saúde no tocante à taxatividade do rol de procedimentos previstos no artigo 10 da Lei nº 9.656/1998; ou REsp nº 1.061.530/RS, no qual se definiu, dentre outros assuntos, que os juros remuneratórios cobrados a taxa acima de 12% a.a. não é, por si só, abusivo, ainda que esteja pré-definido em contrato, bem como que não se admite que os magistrados tomem conhecimento "ex officio" de cláusulas abusivas a não ser que efetivamente provocados pela parte.

Vários fatores contribuem para esses entendimentos desfavoráveis, dentre eles: 1) a ainda enraizada idéia do "pacta sunt servanda" como um super-princípio de direito contratual; 2) a confusão consciente entre os pressupostos de revisão estabelecidos pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, com a prevalência do primeiro sobre o segundo; 3) um lobby jurídico dos principais litigantes em matéria de direito do consumidor que financiam palestras, seminários, congressos, resorts, etc. para membros do Poder Judiciário; 4) a grande quantidade de desrespeitos, por negligência e visando apenas e tão somente o lucro, às normas de qualidade e segurança dos produtos e serviços que causam numa enxurrada de ações na justiça e, das quais o Poder Judiciário muitas vezes as classificam errônea e precipitadamente como "industria do dano moral", etc. Enfim, poderíamos enumerar uma série de outros fatores que contribuem para o flagelo do consumidor no âmbito da justiça.

Recentemente, o egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou entendimento nos autos do REsp nº 2.015.514/PR de relatoria da e. ministra Nancy Andrighi  da qual temos imensa admiração e respeito. Neste, fora imposto o ônus da prova dos juros abusivos não aos fornecedores, mas sim à parte mais fraca da relação. Deste modo, o STJ entendeu que cabe ao consumidor, e não ao fornecedor — que é quem redige unilateralmente o contrato, quem detém toda a expertise do processo de produção, fiscalização e distribuição do produto ou serviço  a prova de que os juros são abusivos, não cabendo a "singela" afirmação de que estes estão acima dos juros médios praticados pelo mercado. O consumidor deve, portanto, provar que os índices de um determinado banco são maiores do que os juros cobrados por outro banco de sua região, na mesma espécie contratual. A nosso ver, partir-se da presunção de que os consumidores teriam acesso a contratos de outros bancos, dos quais sequer fazem parte, além de equivocado é, outrossim, processualmente cruel e oneroso, na medida em que, em não raras as vezes, os consumidores sequer têm conhecimento sobre os seus próprios contratos ou possuem acesso dificultado aos mesmos.

Da PNRC: No mais, o entendimento reiterado do STJ é flagrantemente inconstitucional, contrariando-se o disposto no artigo 5º, XXXII da Constituição Federal. É de se lembrar que o Poder Judiciário, enquanto Poder do Estado brasileiro, encarregado da fiscalização quanto à aplicação adequada das leis, possui o dever de conhecimento dos litígios que lhe são propostos, diante do que determina o inciso XXXV do referido dispositivo.

Os cidadãos possuem a garantia constitucional de acesso ao órgão judicante, quando houver risco de não reconhecimento ou de violação aos seus direitos. Inobstante, o artigo 5º, IV do Código de Defesa do Consumidor prevê, como instrumento de implementação da PNRC, os juizados especiais e as varas especializadas em direito do consumidor, integrando, portanto, a chamada Política Nacional das Relações de Consumo.

Do risco da atividade: historicamente, o CDC é primo  ou dever-se-ia dizer filho  das leis trabalhistas, na medida em que seu surgimento se deu inicialmente tendo como objetivo a melhoria das condições de trabalho. Daí nasceu, por exemplo, a Liga dos Consumidores de Nova Iorque, criada por Josephine Lowell, impondo como sanção aos que negligenciavam as leis trabalhistas para mulheres e crianças, o boicote de produtos e serviços de seus empregadores.

A CLT, ao conceituar quem figura na posição de empregador, estipula que "considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço". Desta forma, o empregador  que se confunde com a figura do fornecedor, no âmbito do direito do consumidor  também é aquele que assume os riscos do negócio. Inobstante, a Justiça vem repassando ilegalmente e de forma ilegítima o ônus pelo risco do negócio aos consumidores, que, em verdade, devem ser protegidos.

A postura de comprovação da abusividade dos juros deve ser atribuída ao estipulante do contrato, uma vez que é este quem confecciona  frisamos  unilateralmente os contratos, impondo quais serão as obrigações e os direitos dos contratantes, sem qualquer possibilidade de discussão de suas cláusulas. Ao consumidor cabe apenas informar em quantas parcelas poderá pagar o financiamento que pretende contratar e optar, por fim, em assinar ou não o contrato.

Do fim social da norma: Outro caminho à interpretação é o disposto na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb). O artigo 5º do Decreto nº 4.657/1942 determina que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". O CDC é norma de ordem pública e, portanto, admite a aplicação de suas regras e princípios "ex officio" pelo Juízo, contrariando o entendimento do STJ. Ademais, a ordem econômica nacional, prestigiando a dignidade das pessoas, elenca, como um de seus princípios, a defesa do consumidor, sem a qual, aquela não sobreviveria ou não se sustentaria. O consumidor é a parte indiscutivelmente mais importante da relação. De nada adiantaria produzir se não houvesse pessoas para comprar. O capitalismo adotado por nossa ordem econômica encontra, portanto, como freio social a dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e, no caso específico das revisões de juros, a defesa do consumidor. Trata-se de um contrapeso à obstinação do lucro desenfreado.

Da interpretação "in dubio pro misero": Além da presunção de vulnerabilidade do consumidor, o CDC aduz, no artigo 47, outrossim, ao princípio da interpretação em favor do consumidor. Nesta, o CDC não impõe nenhuma condição de aplicação do princípio, tornando-o, assim, auto aplicável. Não se trata, por exemplo, da ausência de conhecimento prévio, pelo consumidor, das cláusulas e condições do contrato, mas de norma que impõe uma regra geral de interpretação ao Judiciário. É importante pontuarmos, ainda, que a interpretação em favor do consumidor não é uma regra que promove desigualdade ou favorecimento amplo e irrestrito ao consumidor. Obviamente que haverá de ser feito o juízo caso-a-caso. Entretanto, podemos afirmar com absoluta segurança que os contratos de consumo, escritos ou não, já nascem prontos, constituindo-se em verdadeiros contratos de adesão, ou seja, já se presumindo que com estipulações favoráveis a uma só das partes: o seu redator. Daí a interpretação quanto à presunção de vulnerabilidade técnica, jurídica, social e econômica do consumidor. Daí, igualmente, a importância do artigo 51 do "Codex" Consumerista, o que determina que os contratos devem obediência aos princípios e ao próprio sistema da PNRC (artigo 51, §1º, I).

Como se percebe, há inúmeros instrumentos técnicos à disposição e a que deve fazer uso o Poder Judiciário, a fim de que possa, de forma efetiva e concreta  e não meramente "pro forma"  proteger o consumidor, não permitindo que a Lei nº 8.078/1990 se torna lei vazia. O Estado brasileiro, em que pese adotar, como "modus operandi" de sua economia capitalista, o liberalismo econômico, de outro lado, também adota posturas que integram o chamado "Welfare State"  ou princípio do Estado do Bem-Estar Social [1]  no qual se privilegia não a busca egoística pelo lucro, mas também deve levar em consideração  e assegurar  a dignidade da pessoa humana, visando, como um dos princípios estatais mais básicos, a redução das desigualdades sociais. Entretanto, o que infelizmente testemunhamos é um Judiciário que embarca, cada vez mais, na onda do neoliberalismo, protegendo o lucro, os interesses dos mais ricos e poderosos em desfavor dos mais pobres. Não é raro, como já dissemos, que hajam decisões que convalidam o contrato, suas cláusulas ou seus juros abusivos, adotando-se apenas e tão somente o "pacta sunt servanda", ignorando-se todos os demais princípios e regras que admitem a revisão dos contratos, mesmo que com a opção de contratação do consumidor.

Enfim, temos um Código extremamente social e protecionista, que visa o equilíbrio e harmonia das relações e a proteção dos interesses dos consumidores, mas que, em que pese ser uma lei principiológica, ainda é julgada por mentes de cunho eminentemente neoliberal, causando, com isso, não apenas impacto direto na economia, mas também nos padrões de fornecimento e de consumo, no desleixo das empresas e comércios quanto à segurança de seus produtos e serviços; na certeza de que sairão impunes ou de que o risco de arcarem com danos materiais e morais é mínimos  daí também o tabelamento de "preços" de indenizações [2]  gerando, assim, num fornecimento débil, frágil, sem qualquer segurança técnica ou jurídica e, inevitavelmente num maior número de proposituras de ações judiciais e recursos, impactando na morosidade da justiça.


[1] Aqui, destacamos o voto do e. ex-ministro Eros Grau, nos autos da ADI 2163, de relatoria do ministro Ricardo Lewandoswki, julgado em 12/04/2018.

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