Opinião

Cláusulas de wash-out em contratos: prática dos tribunais e riscos

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17 de abril de 2023, 20h44

Sabe-se que a base das operações de compra e venda é a fixação de uma prestação visando ao recebimento de uma contraprestação. Porém, é desarrazoado ater-se a tal síntese, à luz da relevância econômica desse tipo de contrato, que enseja a entabulação de aprofundadas minúcias entre os contratantes para garantir a plena operação de seus respectivos direitos.

Nesse cenário, destaque-se as hipóteses em que o cumprimento das obrigações pode sofrer perturbações por fatores alheios ao controle dos contratantes, como nos contratos de compra e venda de commodities a preço fixo, usualmente elaborados no contexto do agronegócio.

Tais operações, uma vez que versam sobre bens futuros, estão sujeitas a acontecimentos que, por fato imputável ou não a uma das partes, provoquem o inadimplemento das obrigações entabuladas, ensejando a inserção de cláusulas que prevejam a compensação da parte lesada pelos prejuízos sofridos. Nesse contexto, emerge a cláusula wash-out, que remedia o inadimplemento da prestação devida pelo produtor agrícola por evento superveniente aos termos do contrato. No sentido literal, o verbo frasal "to wash out" refere-se, na língua inglesa, ao cancelamento de eventos em decorrência de chuva extrema [1].

Nesse sentido, os contratos que inserem tal disposição estabelecem "o disparo de uma consequência pecuniária, consistente no pagamento da diferença entre o preço contratado e o valor de mercado das mercadorias — se positiva for a diferença —, pelo vendedor que não entregou ou não entregará a commodity" [2]. Assim, opera-se a extinção do contrato em decorrência de acontecimento que, embora antecipado de maneira genérica, está alheio ao controle das partes, estabelecendo uma obrigação pecuniária ao vendedor que deixa de promover a entrega dos produtos.

A despeito de a cláusula de wash-out não estar necessariamente relacionada a um fato imputável ao devedor, é comum que o disparo dessa disposição parta de uma falta imputável ao produtor agrícola [3]. O usual é que a falha na entrega do produto decorra do desinteresse do vendedor em entregar os bens, diante de uma variação positiva do preço da commodity entre a assinatura do contrato e o termo para sua remessa. Uma das funções precípuas do mecanismo, portanto, é proteger os interesses do comprador, que, no mais das vezes, já se comprometeu com terceiros, dentro da cadeia de fornecimento agrícola.

Porém, a cláusula de wash-out, uma vez que importada do Direito estrangeiro, clama por exame sob o viés do modelo jurídico nacional e, nesse contexto, há aprofundadas discussões acerca de sua qualificação no espectro de institutos do ordenamento pátrio [4].

Dentre os inúmeros institutos aventáveis, é inconteste a sua semelhança com o instituto da cláusula penal, delineada pelo art. 409 do Código Civil e que decorre de fato imputável a um dos contratantes, posto que "pressupõe a culpa da parte" [5], como confirma o artigo 408 do mesmo diploma. Tal cláusula exerce essencialmente duas funções: (1) compensatória, visando a "compensar a parte inocente pelos entraves e infortúnios decorrentes do descumprimento" [6] por inadimplemento total ou parcial das obrigações estipuladas; e (2) moratória, visando a gerar um incentivo ao devedor ao cumprimento da obrigação, acordando-se que o atraso no cumprimento da prestação implicará maior ônus ao devedor enquanto permanecer o estado de mora.

Pelo exposto, parece razoável concluir que a cláusula de wash-out, quando verificada em razão de inadimplemento por parte do devedor, aproxima-se da cláusula penal compensatória [7]. Afinal, no mais das vezes, busca-se o pagamento da diferença entre o preço contratado e o valor de mercado do produto, a fim de que o comprador seja colocado "na posição em que estaria caso o contrato fosse cumprido como inicialmente previsto", em semelhança à função a que se destina a cláusula penal compensatória. Inclusive, os tribunais pátrios vêm chancelando a admissibilidade da fixação da cláusula de wash-out, atribuindo-lhe, ainda que implicitamente, caráter de cláusula penal compensatória [8] [9].

Ante a equiparação da cláusula de wash-out à cláusula penal compensatória, inúmeras questões surgem em decorrência, como: (1) a (in)viabilidade de cumulação de cláusulas dessa natureza com os demais encargos moratórios suportados pelo devedor; (2) a impossibilidade de o valor previsto nas cláusulas superar o da obrigação principal; e (3) a possibilidade de o juiz reduzir equitativamente o valor da penalidade.

A respeito da (im)possibilidade de cumulação da cláusula de wash-out e de demais encargos moratórios para o devedor, importa destacar que alguns tribunais pátrios entendem que, na hipótese de as cláusulas penais moratória e compensatória possuírem como gatilho o mesmo fato gerador, estar-se-ia diante de dupla punição, fenômeno que seria vedado pelo direito brasileiro[10] [11]. Este, portanto, é um primeiro ponto de atenção acerca da matéria: disposições de wash-out, cujos eventos de eficácia coincidam com as de encargos moratórios, estão sob risco de, eventualmente, virem a ser invalidadas em hipótese de litígio entre as partes.

De todo modo, é necessário analisar o caso concreto, a fim de avaliar se tais disposições foram verificadas pela mesma falta ou se possuem causas distintas. Nessa última hipótese, deve-se perquirir, à mão das provas e das especificidades de cada situação, se é cabível a aplicação tanto de cláusula de wash-out, como de eventual cláusula penal moratória.

Em adição, nota-se que a aproximação do wash-out à cláusula penal implica também o exame dos artigos 412 e 413, do Código Civil. A dicção do artigo 412 desse diploma aponta que o valor da penalidade estipulada na hipótese de inadimplemento e, dessa forma, da aplicação da respectiva cláusula inserida para tal contexto, não pode exceder o valor da obrigação principal. Em igual sentido, o artigo 413 aponta que o juiz pode reduzir, equitativamente, o valor da penalidade nas hipóteses de cumprimento parcial da obrigação principal e de constatação de excesso por ocasião do disparo da cláusula em tela.

Nesse âmbito, à vista das especificidades do mercado em que a cláusula de wash-out é usualmente aplicada, é fulcral perquirir, visando à constatação de eventual excesso, o contexto observado em sua incidência. É dizer, em razão de tal disposição ser aplicada, em grande maioria, no bojo de contratos de compra e venda de commodities, as quais têm como característica uma acentuada flutuação de preços, é certo que o valor a ser considerado como o da obrigação principal e, portanto, parâmetro para a verificação de excesso, deve ser variável. Afinal, a previsão de cláusula de wash-out implica dizer que o inadimplemento da obrigação terá como consequência o pagamento da diferença entre o valor de mercado do produto e o preço acordado. Evidentemente, indenizações suplementares convencionadas entre as partes, conforme artigo 416 do Código Civil, poderão ser cobradas, desde que devidamente comprovadas.

Para além da limitação ao valor da obrigação principal, deve-se ter em mente a possibilidade de redução equitativa da penalidade pelo juiz, na forma do artigo 413 do Código Civil. Nesse viés, a autorização concedida ao juiz existe apenas na hipótese de que se verifique um "montante de penalidade (…) manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". Portanto, eventual redução deverá adotar como baliza a função precípua da cláusula de wash-out, isto é, garantir à parte a posição que estaria, não fosse pelo incumprimento na entrega dos produtos. Novamente, a análise casuística é necessária e fórmulas amplas e genéricas devem ser refutadas.

Por fim, deve-se ter em mente casos em que o incumprimento da obrigação de entrega decorra da impossibilidade de cumprimento da obrigação em decorrência de fatos supervenientes inesperados. Tais cenários, que poderiam vir a justificar a ineficácia das cláusulas de wash-out, demandam ainda mais atenção no exame do caso concreto, a fim de se afastar condutas oportunistas (exatamente uma das funções da disposição em tela). Embora excepcionais, as hipóteses de impossibilidade não parecem completamente afastadas diante de uma cláusula da wash-out.

Pelo exposto, vê-se que as disposições de wash-out são plenamente validadas pelos Tribunais Pátrios, mas, ante sua importação do estrangeiro, inúmeras discussões podem surgir, principalmente em um contexto litigioso [12]. Assim, seja para análise da viabilidade de cumulação de cláusula de wash-out com cláusula penal moratória, seja para o exame de excesso na aplicação da penalidade e, assim, da intervenção do juiz para a redução equitativa, deve-se analisar o caso concreto. Afinal, somente à mão das provas e das especificidades de cada situação será possível investigar a hipótese estudada e seus eventuais desdobramentos, que levarão à elaboração de estratégias específicas à resolução de cada caso.

 


[1] https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/wash-out

2 MARTINS-COSTA; XAVIER, 2021, p. 787.

3 Ibid., p. 787.

4 Como bem suscitam Judith Martins-Costa e Rafael Branco Xavier (2021, pp. 787-788).

5 MEDINA, 2022, capítulo RL-1.64.

6 VENOSA, 2022, p. 334.

7 Posição defendida por Judith Martins-Costa e Rafael Branco Xavier (2021, p. 808).

8 TJ-RS, 15ª Câm. Cív., Apel. n. 0160900-54.2017.8.21.7000, Des. Rel. Adriana da Silva Ribeiro, j. 6.12.2017. Grifos nossos.

9 TJ-PR, 15ª Câm. Cív., Apel. n. 1268606-7, Des. Rel. Elizabeth M. F. Rocha, j. 28.1.2015. Grifos nossos.

10 TJ-SP, 31ª Câm. de Dir. Priv., Apel. n. 1036007-33.2021.8.26.0100, Des. Rel. Adilson de Araujo, j. 11.5.2022.

11 TJ-MS, 1ª Câm. Cív., AI n. 1407462-18.2020.8.12.0000, Des. Rel. Geraldo de Almeida Santiago, j. 8.12.2021.

[1]2 Vale o registro de que o tema é objeto da V Competição de Arbitragem no Agronegócio da CAMAGRO.

Referências Bibliográficas

MARTINS-COSTA, Judith; XAVIER, Rafael Branco. A cláusula de wash-out nos contratos de compra e venda de commodities a preço fixo. In: VALVERDE TERRA, Aline de Miranda; DA CRUZ GUEDES, Gisela Sampaio. (Coord.). Inexecução das Obrigações: Pressupostos, evolução e remédios. Vol. II. Rio de Janeiro: Processo, 2021, p. 785-818.

MEDINA, José Miguel Garcia. Código Civil Comentado [livro eletrônico]. 4. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. 22. ed., Barueri: Atlas, 2022.

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