Opinião

"Revisão da vida toda" com mais de dez anos: inaplicabilidade da decadência

Autor

  • Perisson Andrade

    é advogado tributarista em São Paulo e mestre em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

13 de abril de 2023, 18h30

Tem sido bastante noticiado o julgamento do final do ano passado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), do Tema de Repercussão Geral nº 1.102 (RE nº 1.276.977/RG), ou seja, da chamada "revisão da vida toda", onde foi fixada a seguinte tese:

Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

"O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876, de 26.11.1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC 103/2019, tem o direito de optar pela regra definitiva, caso esta lhe seja mais favorável."

O STF, em tal leading case, considerou que o não oferecimento efetivo, ao segurado filiado à Previdência anteriormente a 1999, de uma opção pela melhor média e pelo melhor benefício (para o que seria necessário que o INSS apresentasse dois cálculos ao segurado, no momento de seu pedido de benefício  o que nunca fez) implica em ofensa ao princípio constitucional da isonomia, na medida que acarreta um tratamento diferenciado, mais gravoso, aos filiados à previdência com contribuições anteriores a julho de 1994, que tinham suas efetivas contribuições desse período desprezadas.

Com efeito, a partir da Lei nº 9.876/1999, o INSS, indistintamente, fez uma interpretação literal da regra geral e definitiva (do artigo 29) e da regra de transição, no artigo 3º, da Lei nº 8.213/91, em sua nova redação, e calculou, para todos os segurados filiados ao INSS "até o dia anterior à data de publicação desta Lei", a média das 80% maiores contribuições somente de julho de 1994 em diante somente, com o desprezo de todas as contribuições à previdência efetivamente realizadas pelos segurados nos períodos anteriores de toda a sua vida profissional.

Assim, o INSS, quando de pedidos de qualquer benefício, sequer efetuava mais de um único cálculo para a sua apuração, para fins de comparação e de concessão ao segurado de uma "opção" pelo cálculo mais favorável, já que, como explicado, sempre a considerou descabida.

Saliente-se, ademais, que o próprio INSS reconhece isto, por meio de pedidos de suspensão, no STF, da aplicação imediata da decisão de referida Corte acerca da revisão da vida toda, justamente por não ter sistema de informática nem treinamento de pessoal para ofertar tal opção declarada devida e obrigatória somente agora.

Por esse motivo, entendemos que os segurados que recebem benefícios há mais de dez anos, também possuem o direito de, agora, após a decisão do STF aqui analisada, de requererem a opção mencionada.

Realmente, não se trata aqui de um pedido de revisão sujeito ao prazo de decadência de dez anos, referido pelos artigos 103, caput e inciso I e artigo 103-A da Lei 8213/91, nem mesmo de aplicação da chamada tese do "melhor benefício", também recentemente decidida como sujeita ao prazo decadência, pelo STJ, como a seguir passaremos a demostrar.

Neste aspecto, salienta-se que nunca houve inércia dos segurados, nem tampouco haveria a possibilidade fática ou legal de se optar por fórmula de cálculo diversa da utilizada compulsoriamente pelo INSS, nem tampouco de se formalizar um pedido de revisão cujo fundamento seria a possibilidade de uma opção não reconhecida como sequer existente.

Destarte, se o direito não existia, vindo o STF a verdadeiramente criá-lo no caso da tese da vida toda, ou ao menos a ratificá-lo, após a sua criação no julgamento da tese repetitiva fixada no Tema 999 do mesmo STJ, não pode ser esse mesmo direito considerado caduco.

E são essas algumas das situações, idênticas ou análogas à tese da vida toda, onde foi expressamente afastada a decadência pelo Poder Judiciário:

Revisão do "buraco verde" ou revisão do "primeiro reajuste"
Em situação idêntica em tudo à tese da vida toda, temos a chamada revisão do "buraco verde" ou revisão do "primeiro reajuste", as quais foram decididas primeiramente pelo STF e posteriormente normatizadas e cristalizadas no artigo 26 da Lei 8.870/94 e no artigo 21, §3º da Lei 8.880/94.

Em poucas palavras, no período compreendido entre 5/4/1991 e 31/12/1993, o INSS fez a apuração do salário base de segurados (base de cálculo), aplicando a limitação do teto constitucional contemporâneo antes de apurar a média dos 36 salários de contribuição, o que acarretou em dupla limitação ao teto na formação da renda do segurado (apuração de sua base de cálculo, tal qual na revisão da vida toda). Sendo assim, aqueles benefícios sofreram perdas, merecendo consequentemente, reajuste.

Assim, após o entendimento fixado pelo STF, o legislador houve por bem dar cumprimento à determinação da Suprema Corte, prevendo o reajustamento devido pela revisão do "buraco verde", no artigo 26 da Lei 8.870/94 e no artigo 21, §3º da Lei 8.880/94.

E posteriormente o Poder Judiciário reconheceu, unissonamente, a inaplicabilidade do prazo decadencial a tais pedidos reajustamento, verbis:

"PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE BENEFÍCIO NOS TERMOS DOS ARTIGOS 26 DA LEI Nº 8.870/94 E ARTIGO 21, §3º, DA LEI Nº 8.880/94. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. JULGAMENTO NOS TERMOS DO ART. 1.103, §4º, DO CPC. In casu, não há que se falar na ocorrência da decadência, por não se tratar de pedido de revisão do ato de concessão do benefício, mas de reajuste do benefício, de forma que a sentença merece ser anulada".
"(…) (TRF 3ª Região, OITAVA TURMA, Ap  APELAÇÃO CÍVEL  2254247  0008053-64.2016.4.03.6183, relatora DESEMBARGADORA FEDERAL TANIA MARANGONI, julgado em 18/09/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:02/10/2017)."

Revisão do artigo 29 (revisão dos auxílios)
A "revisão do artigo 29", também conhecida como "revisão dos auxílios", existe porque, entre 17/4/2002 e 17/4/2009, os benefícios por incapacidade ou doença foram calculados com base na média de 100% dos salários de contribuição do segurado ao longo de sua vida profissional, enquanto o artigo 29, da Lei nº 8.213/91, estabelece que a média seja das 80% maiores contribuições, com o desprezo das 20% menores. Sobre o tema, o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical e o Ministério Público Federal ajuizaram uma ação civil pública contra o INSS (ACP n° 0002320.59.2012.4.03.6183/SP), na qual ficou determinado, em acordo firmado perante o STF, que o INSS deveria revisar administrativamente todos os benefícios que se enquadraram nessa situação, seguindo um cronograma que iniciaria em março de 2013 e se encerraria em maio de 2022.

E justamente em relação a essa "revisão do artigo 29 — revisão dos auxílios", fruto de um acordo celebrado pelo INSS no Supremo Tribunal Federal (o qual o ministro da Previdência, conforme manifestações públicas, deseja repetir em relação à "vida toda"), o Poder Judiciário hoje é assente e uníssono ao afirmar a inaplicabilidade da decadência, sendo, ainda, mesmo a prescrição, interrompida pelo ato de reconhecimento da mesma pelo INSS, o Memorando-Circular Conjunto nº 21 Dirben/PFEINN do INSS.

RE 924.456 (Tema 754)
Direito emerge da decisão do STF
E nem se alegue que a decadência somente não se aplicaria a essas duas situações por conta unicamente de determinação legal neste sentido. Esse argumento não prevalece a um exame simples e nem tampouco frente à interpretação do próprio STF em situação análoga, abaixo descrita.

Isto porque as leis — no caso aquelas que normatizaram as revisões do buraco verde e dos auxílios (artigo 29), após decisões do STF sobre essas matérias (como ocorreu também com outras matérias, como veremos a seguir)  quando tornaram clara a necessidade de cumprimento imediato de decisões do STF, não criaram nada de novo, e por isso mesmo o seu cumprimento imediato e irrestrito deriva, antes do que da lei, da força e autoridade das decisões do Supremo Tribunal.

Por conta disso, uma vez que é das decisões soberanas do STF que nasce o direito e somente a partir daí os seus efeitos, não se aplica a decadência ou mesmo a prescrição em relação aos períodos de perdas anteriores a tais decisões do STF.

Realmente, essa questão é muito bem captada pelo voto do ministro Dias Toffoli, do STF, no julgamento, com repercussão geral, do RE 924.456 (Tema 754), quando da análise das consequências intertemporais da EC nº 70/12, ao verdadeiramente normatizar a jurisprudência já anteriormente consolidada no próprio STF:

"Note-se, portanto, que a EC nº 70/12, nesse ponto, não veio a instituir nada de novo: a inovação legislativa, in casu, destinou-se muito mais a dirimir as dúvidas existentes, transformando em cristalina norma constitucional aquilo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já há tempos havia reconhecido."
(RE 924456 – Órgão julgador: Tribunal Pleno  Relator: ministro DIAS TOFFOLI Redator do acórdão: ministro ALEXANDRE DE MORAES  Julgamento: 05/04/2017 Publicação: 08/09/2017).

E mais adiante, no mesmo voto, o ministro fundamenta o seu entendimento, na premissa de que a declaração de inconstitucionalidade da norma previdenciária (ou de sua forma de aplicação pelas autoridades administrativas) cria o próprio direito de reajustamento do benefício previdenciário, direito este que assegura ao beneficiário o recebimento de todos os valores que indevida e inconstitucionalmente o ente previdenciário não o pagou, desde a data de concessão do benefício.

E o entendimento do ministro Toffoli vai além, no sentido de que nem mesmo uma emenda constitucional poderia limitar esse direito de recebimento do integral benefício, desde a origem, estabelecendo efeitos financeiros somente a partir da data de sua publicação:

"(…) a meu ver, o que fundamenta o direito ao recebimento dos atrasados, de modo geral e, também, no caso concreto  isso é, inclusive, o que extraio do acórdão impugnado , não é a alteração promovida pelo artigo 2º da EC nº 70/2012, mas sim a própria interpretação conferida, dentre outros, por este Tribunal à EC nº 41/03, antes mesmo de ter sua redação modificada, como anteriormente ponderado.
Disso resulta que, embora os efeitos financeiros da EC nº 70/2012 tenham sido projetados para o futuro  isto é, a partir de sua promulgação, em 29/3/12 , o servidor público aposentado por invalidez permanente em decorrência de doença grave entre o início da vigência da EC nº 41/03 e a publicação da EC nº 70/2012 tem direito à integralidade, bem como ao recebimento de retroativos anteriores   a 29 de março de 2012.
O direito aos proventos integrais e ao pagamento de atrasados decorre   aqui não de indevida retroatividade da primeira, mas sim do próprio texto da segunda e da interpretação que esta Suprema Corte conferiu a ela."

O ministro Dias Toffoli finaliza seu o voto, em tal julgamento, com a sua proposta de resultado e de tese (que restou vencido por um voto apenas  6 a 5  e ainda assim somente por conta da expressa postergação dos efeitos financeiros em emenda constitucional):

"Portanto, há que se reafirmar a jurisprudência desta Corte e de se fixar a seguinte tese jurídica: o servidor público que, entre o início da vigência da EC nº 41/2003 e a publicação da EC nº 70/2012, tenha-se aposentado por invalidez permanente em decorrência de acidente em serviço ou de moléstia   profissional ou doença grave, contagiosa   ou incurável prevista em lei faz jus à integralidade e à paridade desde a data da inativação."

O julgamento do Tema 754 acima visto, embora desfavorável por conta da prospecção de efeitos financeiros determinada por emenda à Constituição, deixa evidente a inaplicabilidade da decadência ou da prescrição, em relação ao recálculo e recomposição da base de cálculo dos benefícios previdenciários, determinado pela e somente a partir da decisão da Suprema Corte.

Nova decadência (ADI 6.096)
Em outro giro verbal, também é essencial considerar para o deslinde da questão aqui colocada  aplicação ou não da decadência  o quanto julgado pelo mesmo Excelso Pretório, no julgamento da chamada "nova decadência", na ADI 6.096, da relatoria do ministro Edson Fachin.

Em tal ADI, foi declarada inconstitucional a alteração veiculada pela Medida Provisória 871/2019, convertida depois na Lei 13.846/2019, a qual trouxe alterações no artigo 103, da Lei nº 8.213/91, para estabelecer a decadência do próprio direito ao benefício previdenciário, depois de dez anos de decisão administrativa de indeferimento, cancelamento ou cessação de um benefício.

O STF considerou, neste caso, que a decadência não pode ser aplicada, sendo inconstitucional o referido dispositivo legal alterado pela MP, por atingir o próprio fundo de direito fundamental à Previdência Social, assegurado pelo artigo 6º da CF/88 e pela jurisprudência do STF, e neste aspecto considerado um direito fundamental, imprescritível.

Ora, ao se negar a receber e analisar o direito de opção a que se refere a tese da vida toda, ao fundamento de suposta decadência, as autoridades administrativas do INSS fazem exatamente aquilo que o Plenário do STF, na ADI 6.096, decidiu não ser possível e inconstitucional, ou seja, NEGA o próprio fundo de direito ao segurado (opção legal por média contributiva mais vantajosa).

De fato, tendo as condições/pressupostos para este pedido de opção passado a existir somente agora, com a decisão do E. STF, conclui-se não poder ser negado o direito ao benefício dela decorrente, o qual é impassável de decadência, como já proclamado pelo E. STF, como visto acima, na ADI 6.096.

Tema nº 1.117 do STJ
"Dies a Quo" da decadência de Direito Novo
E por derradeiro, mas não menos importante, temos, no mesmo sentido do quanto acima visto anteriormente  de que somente a partir da declaração/constituição do direito antes inexistente ou não declarado é que surge o direito ao seu pleito ou "revisão"  o entendimento pacificado, em sede de recursos repetitivos, pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, por sua Primeira Seção, no julgamento do Tema nº 1.117.

De fato, em tal julgamento, se estabeleceu a tese de que o marco inicial da fluência do prazo decenal, previsto no artigo 103 da Lei 8.213/1991, quando houver pedido de revisão da renda mensal inicial (RMI) para incluir verbas remuneratórias recebidas em ação trabalhista nos salários de contribuição que integraram o período básico de cálculo (PBC) do benefício, deve ser o trânsito em julgado da na respectiva ação reclamatória.

O relator dos recursos especiais, ministro Gurgel de Faria, esclareceu que o tema debatido no referido julgamento não diz respeito à imposição do instituto da decadência sobre o ato de concessão, mas sobre o dies a quo deste prazo, e, se tratando de pedido de revisão de benefício cuja base é um direito que ainda não era reconhecido judicialmente no momento da concessão inicial, sendo-o somente posteriormente.

Assim, mutatis mutandis, para o caso da "tese da vida toda", onde inequivocamente não era concedida sequer a possibilidade de opção ao segurado, na escolha da base de cálculo de seu benefício, vindo esta a ser declarada como imprescindível somente a partir da decidão do STF (e antes pelo STJ, no Tema 999), somente a partir do nascimento desse direito é que pode ser iniciado o "dies a quo" do prazo decadencial, isto é, se realmente se considerar o mesmo aplicável à situação.

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