Opinião

Os estereótipos de gênero na decidibilidade das ações de família

Autor

  • Camila Torres Zago

    é mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e advogada.

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12 de abril de 2023, 16h38

A atriz brasileira, mãe de três filhos, tem utilizado suas redes sociais para a divulgação dos conflitos enfrentados a respeito de guarda dos filhos, condutas do genitor e, claro a pensão alimentícia. Nas últimas semanas, os conflitos ganharam um novo capítulo para Luana, mas, infelizmente, não tão raro assim nas varas de família: a violação dos direitos daquelas que buscam no judiciário respostas e proteção, mas deparam-se com uma dupla violência, decorrente de subjugamento da figura feminina. Isto, pois, Luana Piovani declarou que em meio aos conflitos vivenciados com relação a guarda dos filhos, o seu ex-companheiro e genitor das crianças anexou ao processo fotos da ex nas quais estaria nua. "Aí eu vi umas fotos minhas, nua, ali no meio do processo. Eu peguei o processo e fui ler. E aí eu entendi (…) uma vez que ele me desqualifica como mulher e como mãe ele consegue tirar a guarda das crianças de mim" [trecho do relato da atriz, em sua rede social].

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A atriz Luana Piovani e Pedro Scooby
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O direito das mulheres ao ser analisado a partir de uma evolução na legislação, nos mostra como os estereótipos de gênero são materializados nas normas. O Código Penal até 2005 ainda trazia o conceito de "mulher honesta" e este mesmo código até recentemente considerava os crimes contra a liberdade sexual da mulher crime contra os costumes: privilegiando a honra e legitimando a dominação masculina acima da mulher. A honestidade, se traduzia (e se confundia) com a mulher honrada e reforçava uma construção legislativa arreigada de valores machistas e a limitação dos direitos das mulheres, seja no campo sexual, no desempenho de suas atividades profissionais ou no reconhecimento de sua dignidade.

No mesmo sentido, o exercício do julgamento pelo Poder Judiciário não se distancia desse padrão, repetindo a exigência de um ideal cultural machista e misógino e de um subjugamento feminino.

Em meados de 2020 noticiou-se o que ficou conhecido como o "caso Mariana Ferrer". O caso ganhou repercussão nacional após a publicização de trechos de audiência, em que apurava o crime de estupro contra a jovem, Mariana Ferrer, em que o advogado do acusado utilizava fotos da vítima, seguida de afirmativas como "posições ginecológicas" e até mesmo "peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você" [1], como forma desqualificá-la e induzir a uma suposta justificação pelo cometimento do crime.  Além da conduta violadora do patrono do réu, nenhuma atitude foi tomada pelo magistrado, a fim de cessar os constrangimentos [2].

Afasta-se, portanto, o mito de uma abstração e imparcialidade seja na ideia da existência de um direito igualitário ou de um julgamento com equidade.

E é neste contexto que o presente artigo traz o debate e pontos de reflexão: qual a influência dos estereótipos de gênero na decibilidade das ações judiciais que versam sobre direito de famílias? Quais os mecanismos efetivos para o combate da desigualdade e promoção da igualdade de gênero no exercício de condução e julgamento dos processos?

A delimitação ao Direito de Família não se fez ao acaso. Ao contrário, é pelo entendimento de que os espaços públicos e privados se inter-relacionam, e que por muitos anos as mulheres foram aprisionadas ao espaço privado, é que se enfatiza a necessidade de desenvolvimento e novas perspectivas para o direito das famílias, uma vez que ao tratar de igualdade aos direitos das mulheres, o impacto se tem, sobretudo, em modificação das normas familiaristas.

Admitir que se possa questionar judicialmente o estabelecimento da guarda dos filhos sob a argumentação e questionamento da forma como a mãe ocupa seu tempo livre, com o lazer; sobre o consumo ou não de bebida alcoólica (de forma social) ou o tempo disponibilizado para atividades profissionais, no intuito de demonstrar que na afirmação de tais atividades incapacitariam a mãe para o exercício da parentalidade e quando mesmos fundamentos não são oponíveis aos indivíduos ao sexo masculino, materializada como a cultura sexista se faz presente no judiciário.

A estereotipização de gêneros  atribuição de papeis socialmente impostos daquilo que se espera para homens e mulheres, decorrentes de um histórico de subjugamentos e discriminação, ainda permeiam as estruturas legislativa e influencia a condução e decidibilidade dos processos judiciais. Reconhecer a que a sociedade brasileira foi construída sob uma cultura patriarcal, é reconhecer, por consequência, que a estrutura do seu direito também o é.

A persistência da estereotipização de gênero nas decisões judiciais aponta para além de uma necessidade de mudança estrutural e cultural. É necessário a adoção de instrumentos que fortaleçam esse caminho e abandone a ideia de uma subjetividade abstrata inexistente. Para além de uma educação não sexista, demais mecanismos são necessários para que se possa trazer a igualdade.

O reconhecimento da necessidade de concretização da igualdade de gênero em todos os âmbitos — legislativo, executivo e judiciário já encontra respaldo nos documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, trazendo a obrigação dos Estados em, por quaisquer meios necessários e em tempo razoável, condenar e punir a violência contra a mulher, como expressamente disposto no artigo 7º da Convenção Belém do Pará:

Vale dizer, a violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher, porque é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional. Adicionam que a violência baseada no gênero reflete relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres [3]

Em 2021, no entanto, para o plano interno, e com vistas a propositura de medidas para garantir que as mulheres sejam tratadas com igualdade e equidade ganham destaque a aprovação e lançamento do Protocolo para julgamento com perspectivas de gênero pelo Conselho Nacional de Justiça, com o intuito de atender as políticas públicas nacionais de enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário [4]. Trata-se de instrumento que traz em seu conteúdo recomendações expressas aos magistrados que vão desde conceitos básicos de gênero e tratamento, como as questões de gênero por ramos da justiça.

O papel da adoção de uma perspectiva de gênero na ressignificação, ampliação e evolução do Direito das Famílias, que possibilita a abertura deste instituto, fundamental para a preservação da dignidade da pessoa humana, juntamente com instrumentos que garantam parâmetros para que o discurso dos juízes seja inclusivo, respeitando as mulheres e reconhecendo a violência de gênero, foram os objetivos traçados por este estudo.

Neste sentido, o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero é um passo importante para o abandono por estereótipos de gênero, sexismo e outras formas de discriminação, o que tem profundas consequências para as mulheres que buscam justiça.

Para além da necessidade de uma construção de um direito com maior participação das mulheres, a partir de ações afirmativas que garantam a presença da mulher nos espaços públicos de tomada de decisão, tem-se a necessidade de uma hermenêutica feminista, aqui entendida como a inserção de uma perspectiva de gênero no direito, com a finalidade de revisitar conceitos clássicos do direito e propor novos caminhos que de garantam de fato o direito a igualdade trazido pela Constituição Federal [5] Busca-se, assim, mecanismos para que se corrija o silêncio histórico das mulheres na construção dos direitos e para que se atinja a concretude do Princípio da Igualdade.

 


[1] CNJ decidirá se abre PAD contra juiz do caso Mariana Ferrer. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/377475/cnj-decidira-se-abre-pad-contra-juiz-do-caso-mariana-ferrer. Acesso em: 10/12/2022.

[2] Tão somente em Em 2022 o Conselho Nacional de Justiça iniciou procedimento administrativo disciplinar para apurar a conduta do juiz que conduziu a instrução.

[3] BRASIL. Decreto-lei 1973, de 1 de agosto de 1996. Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Diário Oficial da União, Brasília, 1 de agosto de 1996.

[4] BRASIl, Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/julgamento-com-perspectiva-de-genero-justica-menos-preconceituosa-e-igualitaria/. Acesso em: 17/11/2022.

[5] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; DEMETRIO, André. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por um constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, v. 15, nº 3, 2019, e 1930. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2317- 6172201930

Autores

  • é mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e advogada.

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