Opinião

A "última palavra" quanto ao seguimento de recurso excepcional

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9 de abril de 2023, 11h14

A quase imediata reforma do atual Código de Processo Civil (CPC) pela Lei Federal 13.256/2016 durante o período de vacatio legis do estatuto processual causou remendos na costura originária da novel legislação, especialmente se se considerar que o mens legislatoris foi o de privilegiar o comando constitucional relativo à competência final dos tribunais superiores em analisar e uniformizar temas de direito federal e direito constitucional.

A palavra sobre a questão, inicialmente exclusiva das Cortes superiores, passou a ser compartilhada com as Cortes ordinárias: recursos excepcionais (especiais e extraordinários) que originariamente deveriam ser remetidos aos tribunais superiores, sem qualquer crivo regularizador pelas instâncias ordinárias — "a remessa (…) dar-se-á independentemente de juízo de admissibilidade", ditava o finado parágrafo único do art. 1.030 do CPC —, passaram a sofrer filtragem de admissibilidade e de seguimento, conferindo-se competência singular à presidência ou vice presidência dos tribunais estaduais e regionais de promover a primeira checagem.

O legislador-reformador estabeleceu duas espécies de checagem:
admissibilidade (em sentido estrito) e seguimento, ou então: admissibilidade-admissibilidade e admissibilidade-seguimento. Para cada uma dessas figuras, há uma espécie recursal distinta para a sua impugnação.

Contra a decisão monocrática da presidência ou vice-presidência que meramente faz juízo negativo de admissibilidade dos recursos excepcionais (artigo 1.030, V, CPC) é cabível, em regra, agravo em recurso especial ou extraordinário, nos termos do artigo 1.030, §1º, do CPC, e do artigo 1.042, caput, do CPC (AREsp no REsp ou ARE no RE).

Quanto a isso não há qualquer dificuldade. O problema ocorre quando a decisão "negar seguimento a recurso extraordinário que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral" (artigo 1.030, I, "a", CPC) ou quando ela "negar seguimento a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos" (artigo 1.030, I, "b", CPC).

A impugnação da negativa de seguimento nesses casos deve ser feita em agravo interno (artigo 1.030, § 2º, CPC), recurso que será analisado pelo respectivo órgão colegiado a que pertence o presidente ou vice-presidente prolator da decisão — em regra, o Órgão Especial dos tribunais estaduais e regionais (AgInt no REsp/RE).

Feita essa distinção, surge naturalmente a seguinte pergunta: contra o acordão que nega provimento ao agravo interno cabe algum recurso ou, ao contrário, tal decisão é irrecorrível e a questão relativa à admissibilidade fica como que "trancada" em segunda grau de jurisdição, sem qualquer possibilidade de o tribunal superior a examinar?

A resposta é: o acórdão em questão é recorrível por agravo em recurso especial ou extraordinário, conforme lição de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:

"Negado seguimento com base no artigo 1.030, I, CPC, é possível mostrar a distinção entre a questão ou o caso invocado no recurso extraordinário ou no recurso especial mediante a interposição de agravo interno para o colegiado do tribunal recorrido a que pertence o presidente ou vice-presidente (artigo 1.030, §2.º, CPC). Reconhecida a distinção, o recurso deve ser provido, tendo o recurso extraordinário ou o recurso especial de ser remetido à instância competente (artigos 102, III, e 105, III, CF/1988, e 1.030, V, a, CPC). Não reconhecida a distinção, cabe agravo em recurso extraordinário ou agravo em recurso especial (artigos 102, III, e 105, III, CF/1988, e 1.042, CPC). Note-se que a ressalva da parte final do art. 1.042, CPC, merece interpretação conforme a Constituição: como é a própria Constituição que defere ao STF e ao STJ a última palavra a respeito da existência ou não de violação à Constituição e à lei federal (artigos 102, III, e 105, III, CF/1988), não é possível interpretar o artigo 1.042, CPC, no sentido de vedação ao cabimento do agravo [1].

O caso seria, então, o de um agravo no agravo interno no recurso excepcional (AREsp/ARE no AgInt no REsp/RE). Por vezes haveria dois agravos excepcionais: o primeiro, já interposto impugnando trecho da decisão de "mera inadmissibilidade" e sobrestado; e o segundo, impugnando o teor do acórdão do agravo interno que manteve o trecho da decisão denegatória de seguimento, então recorrida interna corporis.

Não raro, porém, os tribunais têm decidido em desfavor do recorrente,
proferindo decisões monocráticas de não conhecimento da segunda e nova insurgência (ARE/AREsp), porquanto hipoteticamente incabível a impugnação do acórdão pela via do agravo em recurso excepcional — este suposta e exclusivamente destinado a combater decisões presidenciais que apenas inadmitem o recurso originário (artigo 1.030, V, CPC) [2].

Chegado a esse ponto, indaga-se: de quem é a última palavra a respeito do seguimento de recurso excepcional? Para Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, o "trancamento" do recurso excepcional na instância ordinária, por meio de impedimento de remessa do agravo ao tribunal superior, viola norma constitucional que atribui competência final aos tribunais superiores para a apreciação de recursos que versem sobre questões legais federais e constitucionais, usurpando-lhes, portanto, a respectiva competência:

"O sistema do CPC 1030 prevê mais um filtro na fase de admissibilidade do RE/REsp. Não se admite interposição direta do agravo do CPC 1042 para o STF/STJ, da decisão monocrática do presidente ou vice-presidente do tribunal local. É preciso que o recorrente submeta seu recurso excepcional ao tribunal local, que fará o juízo de admissibilidade. Se negativo (negar seguimento) com fundamento no CPC 1030 I, ou, ainda, proferida decisão monocrática quanto à matéria de sobrestamento do recurso (CPC 1030 III), é necessário que o recorrente primeiro impugne essa decisão monocrática por meio do agravo interno (CPC 1021), dirigido ao colegiado competente do tribunal local (TRF ou TJ). Só então, se mantida pelo colegiado a decisão monocrática que negou seguimento ao RE/REsp ou que julgou o sobrestamento do recurso, seja porque o agravo interno não foi conhecido, seja porque foi negado provimento ao agravo interno, dessa decisão colegiada caberá o agravo de que trata o CPC 1042 para o STF/STJ. Esse entendimento — criação de mais um passo no juízo local de admissibilidade do RE/REsp — é a única maneira de salvar-se o dispositivo da reforma, instituída pela Lei 13256/16 (DOU 5.2.2016), da pecha de inconstitucionalidade, pois se evita o "trancamento" da via recursal e a subtração da competência constitucional do STF/STJ para apreciar o RE/REsp. A entender-se pelo não cabimento de nenhum recurso, a admissibilidade do RE/REsp ficará restrita e definitiva à competência do tribunal local, competência essa que, pelos expressos termos da CF 102 III e 105 III, é do STF e STJ, respectivamente [3].

Ao deixar de conhecer de agravo em recurso especial (AREsp) interposto contra acórdão que negou conhecimento ou provimento ao agravo interno (AgInt) destinado a reformar a decisão monocrática que negou seguimento a recurso especial (REsp), a presidência ou vice-presidência do tribunal estadual e regional usurpa a competência final do STJ, frustrando-lhe o exercício por impedir que a Corte Superior, talhada
constitucionalmente para apreciar temática relativa à uniformização do direito federal, analise a questão prequestionada. O mesmo raciocínio vale para o agravo em recurso extraordinário (ARE no AgInt no RE), por idêntica razão.

O próprio STJ já reconheceu que, nesses casos, há usurpação de competência:

"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA RECLAMAÇÃO. OMISSÃO. EXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. TEMA REPETITIVO. ADEQUAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL LOCAL. OUTRAS QUESTÕES. JULGAMENTO PELO STJ. NECESSIDADE. ARTIGO 1.041, §2º, DO CPC/2015. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RETENÇÃO PELO TRIBUNAL LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. PRESERVAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO STJ. CABIMENTO DA AÇÃO CONSTITUCIONAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS, COM EFEITOS INFRINGENTES. RECLAMAÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. A presente reclamação foi ajuizada sob três fundamentos, dentre os quais dois foram expressamente examinados e rejeitados pela Segunda Seção do STJ. O terceiro fundamento, contudo, não foi apreciado, do que resulta omissão passível de ser sanada pela via recursal declaratória.
2. O recurso especial interposto no feito originário suscitou violações do
direito federal não diretamente relacionadas à tese definida no recurso
repetitivo nº 956.943/PR, temas cujo exame compete ao STJ, após
ultrapassada a fase do juízo de admissibilidade na instância regional.
Inteligência da previsão contida no artigo 1.041, §2º, do CPC/2015. 3. A recusa do Tribunal local em remeter os autos para o STJ configura usurpação de competência desta Corte Superior, autorizando o ajuizamento de reclamação constitucional. 4. Embargos de declaração acolhidos. 5. Reclamação julgada parcialmente procedente. (EDcl no AgInt nos EDcl na Rcl nº 36.835/SP, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 30/3/2021, DJe de 16/4/2021)".

Por sua vez, o STF já decidiu que "Incumbe ao Tribunal de origem proceder ao exame prévio de admissibilidade do recurso extraordinário, o que não configura usurpação da competência constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal" (ARE 1175663 AgR-ED, julgado em 17/05/2019). Porém, o exame prévio de admissibilidade, por definição, não pode substituir nem impedir o exame final; do contrário, não haveria sentido em ser qualificado de "prévio" o juízo de admissibilidade
feito pelo tribunal local, por razões óbvias.

A Suprema Corte já afirmou categoricamente que o exame prévio da
admissibilidade-seguimento é, em verdade, pleno e total: "(…) de se ressaltar que a Constituição Federal, ao estabelecer de modo taxativo a competência deste Supremo Tribunal Federal, não prevê a realização de juízo de admissibilidade 'definitivo' de Recurso Extraordinário por parte desta Corte, não havendo substrato lógico ou jurídico que ampare a usurpação de competência apontada pelos reclamantes, já que compete aos próprios Tribunais de origem a análise da admissibilidade dos apelos extremos (…)" (Rcl 39.057 AgR, ministro relator LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 27/03/2020) [4].

Conforme disposto pelos professores Nery, este entendimento é inexoravelmente inconstitucional, sobretudo por impedir a remessa do agravo à instância recorrida para que ela endosse ou supere a decisão sobre o seguimento do recurso.

Se assim não for, caberá ao tribunal estadual ou regional definir, em última instância, a ampla admissibilidade do recurso excepcional (que não é de sua competência), pronunciando-se sozinho e definitivamente sobre haver ou não distinção ou superação do precedente em que se fundara a decisão que negou seguimento ao recurso principal. O exame "diferido" de admissibilidade, nesse caso, transforma-se em exame "exclusivo" de admissibilidade. E pior: um tribunal inferior fará o exame
exclusivo da admissibilidade de um recurso cuja competência é de um tribunal superior.

Ou seja: não caberá ao STF, como deveria, a última palavra a respeito de
questão constitucional que a própria corte tenha reconhecido não ser dotada de repercussão geral, nem a respeito de recurso extraordinário interposto contra acórdão que, supostamente, esteja em conformidade com entendimento exarado pela corte no regime de repercussão geral ou no regime de julgamento de recursos repetitivos.

O mesmo se passaria com o STJ, relativamente aos pronunciamentos sobre questão federal infraconstitucional albergada em recurso interposto contra acórdão que esteja em conformidade (ou não) com entendimento exarado pela corte no regime de julgamento de recursos repetitivos.

Nesses casos, caberá somente ao Tribunal de Justiça ou ao Tribunal Regional definir se determinada questão está ou não em consonância com o entendimento do STF (exarado em regime de repercussão geral ou em regime de julgamento de recursos repetitivos) ou do STJ (exarado em regime de julgamento de recursos repetitivos), estando nesse caso estranhamente impedida de fazê-lo a própria corte que é constitucionalmente investida da competência de se pronunciar sobre a questão.

Aliás, a tendência do tribunal local é justamente e quase sempre a de dizer que o acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência dos tribunais superiores, o que reforça, já por uma razão prática e estatística, a necessidade de se garantir o acesso do recorrente aos tribunais superiores para que procedam ao exame definitivo da admissibilidade.

A manutenção do atual entendimento — irrecorribilidade do acórdão que
desprovê agravo interno contra decisão de denegação de seguimento de recurso excepcional — fomenta, no mínimo, duas situações processual e constitucionalmente nefastas: a) primeira: não cabendo AREsp/ARE após o desprovimento do agravo interno contra a decisão que negou seguimento ao recurso excepcional, será absolutamente impossível que as Cortes Superiores modifiquem a sua jurisprudência,
tornando os precedentes e as súmulas rigorosamente inalteráveis; e b) segunda: se a decisão que negou seguimento ao recurso excepcional e o acórdão que, em agravo interno, a confirmou não puderem ser revistos pelo tribunal superior competente, será impossível que este reconheça eventual distinção ou superação do precedente e, assim, corrija a equivocada subsunção entre o caso concreto e o precedente ou súmula.

Para evitar essas consequências, só há um caminho: reconhecer a possibilidade de interposição de dois agravos quanto ao capítulo decisório que negar seguimento ao recurso excepcional: a) primeiro, o agravo interno (AgInt) ao colegiado competente do próprio tribunal local; e b) depois, o agravo em recurso excepcional (AREsp ou ARE) ao
tribunal superior competente para o exame final da admissibilidade, inclusive quanto à negativa de seguimento.

Só assim os dispositivos constitucionais que conferem competência derradeira aos tribunais superiores para julgar as questões inscritas nos artigos 102, III, e 105, III, da Constituição, restarão devida e eficazmente aplicados.

Em suma: a palavra final, tanto no que diz respeito à admissibilidade, quanto no que diz respeito ao seguimento, é sempre do tribunal superior competente para o exame do mérito recursal, e não do tribunal recorrido com o qual justamente se disputa o sentido da jurisprudência e a ocorrência ou não de distinção ou superação de precedente.

 


[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, pp. 1193-1194.

[2] É o que se encontra a título de exemplo nos julgados dos seguintes autos: 032290-35.2019.8.16.0017/5 (TJ-PR), 1018316-77.2019.8.26.0002 (TJ-SP), 0018530-76.2022.8.21.7000 (TJ-RS).

[3] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 19ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 2377.

[4] Curioso notar que, nesse caso, o STF se dispensa de decidir sobre questão potencialmente constitucional, confiando no ímpeto defensivo das instâncias ordinárias. O entendimento, contudo, não é novo: mesmo
no regime do CPC/73, tanto o STF, quanto o STJ, já haviam decidido nesse sentido, em duas Questões de Ordem bastante conhecidas a esse respeito: a QO no AI 760.358-7 e a QO no AgR 1.154.599, respectivamente.

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