Opinião

Saneamento compartilhado e a efetividade nos processos estruturais

Autores

  • Agenor de Andrade

    é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) formador da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados (Enfam) professor e coordenador do curso de pós-graduação de Processo Civil da Escola Judicial do Estado do Pará (EJPA) integrante do Centro de Inteligência do TJPA (Cijepa) coordenador do 7º Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) juiz de cooperação do TJP mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

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  • Gisele Fernandes Góes

    é procuradora do Trabalho doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora na UFPA.

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8 de abril de 2023, 6h32

Uma das normas fundamentais enunciadas no CPC é a cooperação (artigo 6º), a qual ganha relevo na resolução de conflitos da atualidade, principalmente quando se trata de questões que dizem respeito à efetivação de políticas públicas e à solução de demandas coletivas mais complexas, como são os processos estruturais [1].

Segundo Abram Chayes, o processo de interesse público se trata de uma nova forma de litígio constitucional, visto que o objeto do conflito é em sua grande maioria das vezes a reivindicação de políticas públicas e compreende uma demanda que pode ser individual ou coletiva e que se volta essencialmente em face do Estado [2].

Esses litígios de índole constitucional passam pela discussão a respeito da concretização de direitos fundamentais (principalmente os de ordem social) e exigem a figura de um juiz mais ativo e que busca, por meio da ponderação dos princípios, a garantia da máxima efetividade do rol dos direitos mencionados.

No entanto, como afirma Canotilho, "a correção do direito incorreto não pode chegar ao ponto de criar direito legal" [3]. Tais balizas doutrinárias servem para conter arbitrariedades judiciais em tais contextos e para se absorver que as decisões do Poder Judiciário, em determinadas hipóteses, devem submeter-se à participação popular e ao diálogo institucional [4].

A cooperação é uma das técnicas processuais para se evitar o arbítrio judicial, a qual desloca o centro do processo civil de uma atuação única e exclusiva do juiz para uma em conjunto com os sujeitos processuais, dividindo de maneira equilibrada as posições jurídicas na relação jurídica processual [5].

Com efeito, atualmente se exige, principalmente nas causas de maior complexidade, o desempenho de todos os agentes em prol da resolutividade do mérito do conflito.

Na estrutura cooperativa, as fases organizatória e probatória ganham ainda mais relevância por propiciarem um amplo contato e debate entre todos os que participam do contraditório, como ocorre na fase de saneamento compartilhado, prevista no artigo 357, §3º, do CPC [6].

A fase de saneamento ou de ordenamento do processo surge após a apresentação ou não da resposta do réu. Portanto, surge, de regra 7 , após o escoamento do prazo de contestação.

Caso não seja hipótese de extinção do processo sem ou com resolução do mérito, deverá o magistrado proferir uma decisão de saneamento e de organização do processo (CPC, artigo 357).

Segundo Ferreira e Lecciolli, a função do saneamento compartilhado é "dialogar e definir os pontos cardiais relacionados à necessidade, ao espectro, à ordem e aos modos de realizar a instrução probatória, materializando um modelo de case management (gerenciamento do processo)" [8]. Em razão disso, o código estabelece que a delimitação
consensual em processos complexos das matérias controvertidas de fato ou de direito deva ser feita em audiência, conforme a previsão do artigo 357, §3º, CPC [9].

Logo, naqueles processos que envolvam interesses públicos relevantes, faz-se necessário que a atividade saneadora seja realizada oralmente, para que os atores do sistema de justiça possam contribuir com a gestão processual dos casos, buscando soluções eficientes, com primazia do mérito, dentro de um padrão de celeridade e menor onerosidade, com o
protagonismo das partes, envolvidos e interessados.

Dessa forma, as partes ficam dispensadas de intimação para a prática de atos dentro do processo ou para a realização de audiência cujas datas tiverem sido definidas no calendário. Tais atos vinculam os sujeitos processuais e somente poderão ser modificados em casos excepcionais. Nesse ato processual, após debate prévio e consenso com as partes, o juiz também pode adotar a flexibilização do procedimento, ajustando os atos processuais às peculiaridades da demanda (CPC, artigo 139, VI).

Isso permite ao julgador, dentro de determinados limites, realizar a adequação de forma concreta para alcançar, nas palavras de Gajardoni, o "ritmo necessário à efetiva atuação jurisdicional" [10], realizando aumento de prazos, inversão da produção dos meios de prova e combinação de técnicas dos procedimentos comuns e especiais nos casos de pedidos cumulados (quando houver compatibilidade entre os ritos) [11], entre outros atos, de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito.

Como o atual CPC confere ao magistrado a possibilidade de sanear o processo durante todo o procedimento, entende-se que também o saneamento compartilhado pode ser feito a qualquer momento em que o juiz entender necessário. Assim, o saneamento compartilhado não se exteriorizaria em apenas um único ato do juiz, mas em vários momentos
conforme a causa e as questões a serem dirimidas, podendo haver a possibilidade de existirem vários atos saneadores durante o processo.

Principalmente em processos complexos como os estruturais, o julgador deve estar constantemente adaptando o procedimento à fluidez e plasticidade da realidade social. Se o processo tenciona efetividade, ele deve caminhar ao lado das camadas do problema estrutural.

Por isso, com fundamento nas lições de Mitidiero e Didier, sustenta-se que, no processo estrutural, devem ter incidência vários saneamentos compartilhados ao longo do processo.

A reestruturação de uma instituição ou de uma política pública debatida em um processo demanda a existência de várias decisões, ou, como afirma Arenhart, decisões em cascata [12], o que exige um constante ir e vir na adaptação do procedimento aos litígios estruturais com uma grande margem de flexibilidade no procedimento, para que se conforme às peculiaridades apresentadas em cada conflito. São litígios que possuem como característica a existência de violações sistemáticas de direitos, causadas pelo rol de práticas e de dinâmicas institucionalizadas.

A causalidade complexa gera uma mudança constante nos contornos dos pedidos e da causa de pedir, que se modificam à medida que as provas são produzidas e que todo o plexo de interesses é levado ao processo. Por isso, a convicção do julgador vai-se construindo ao longo do procedimento em permanente diálogo com as partes, não sendo razoável permitir que haja apenas um momento definido e delimitado no processo para um único saneamento compartilhado.

Dessa forma, nota-se que o saneamento compartilhado é uma técnica processual que cria um ambiente argumentativo de trabalho e possibilita que as partes colaborem com o juiz para identificarem conjuntamente as alegações de fato essenciais para as provas necessárias ao julgamento do mérito (CPC, artigo 370), havendo uma verdadeira materialização do contraditório substancial com a efetiva influência das partes sobre os rumos que o processo deve tomar.

Em razão da importância do instituto do saneamento compartilhado nos processos estruturais, foi aprovado como repertório de boas práticas processuais no XII FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Civis) nos dias 24 e 25 de março de 2023 em Brasília a "Utilização do saneamento compartilhado para o diagnóstico do litígio como estrutural e
para proposição de adequação procedimental" (Grupo Processos estruturais; XII FPPC-Brasília), utilizado pelo Juízo da 3ª Vara Cível e Empresarial da Comarca de Altamira, no Tribunal de Justiça do Estado do Pará [13].

Adotando-se a doutrina dos professores Fredie Didier Jr e Leandro Fernandez, para quem "as boas práticas na administração da justiça podem ser compreendidas como ações ou comportamentos (no âmbito processual ou administrativo) ou arranjos institucionais direcionados ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional ou os demais serviços da
justiça"
[14]; este caso aprovado no XII FPPC poderá servir como paradigma de uso de instrumentos processuais como aplicação da norma fundamental prevista no artigo 3º, §§2º e 3º, do CPC, que invoca o estímulo de todos à solução consensual do conflito, que deve ser
alargada para além da autocomposição acerca do objeto material do litígio, também devendo ser aplicada aos caminhos procedimentais que o processo percorrerá, a fim de que haja uma administração conjunta dos rumos do procedimento, feita de forma cooperada entre os sujeitos processuais, em audiência especialmente designada para esse fim objetivando superar, de forma unida e conjunta, o estado de desconformidade de políticas e instituições.

 


[1] A demanda estrutural é aquela que visa alterar uma política pública ou uma situação de desconformidade, pois decorre do modo como a estrutura burocrática, usualmente pública, opera. Sua causa é o mau funcionamento dessa organização ao longo do tempo, e a estrutura pode ser uma instituição pública, uma empresa privada, políticas públicas ou ações individuais. Didier Jr., Zaneti e Alexandria assim definem uma situação de desconformidade:
"Estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal" (DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria
de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo, SP, v. 45, nº 303, maio 2020, p. 46).

[2] CHAYES, Abram. El rol del juez en el litigio de interes público. Tradução de Olivia Minatta e Francisco Verbic. Revista de Processo, SP, v. 42, nº 268, p. 143-188, jun. 2017. p. 145-146.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed, 2001, p. 295-296.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. SP: RT, 2021, p. 46.

[5] Segundo Mitidiero, o modelo cooperativo de processo tem inclusive fundamentação constitucional, na medida em que a Constituição da República funda o Estado na "dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, III) e tem por objetivo "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (artigo 3.º, I), o que enseja um "Estado Constitucional Cooperativo" (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: do modelo ao princípio. 4. ed. SP: RT, 2019, p. 64).

[6] "Artigo 357. […] §3º Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações".

[7] Didier Jr. salienta: "[…] é possível que, após esse momento, a fase postulatória (que é aquela em que se define o objeto litigioso do processo) se prolongue, pois o réu pode ter reconvindo ou denunciado a lide a um terceiro. É possível, ainda, que o autor requeira o aditamento ou a alteração do pedido ou da causa de pedir, com o consentimento do réu, com base no artigo 329, II, do CPC. Os primeiros atos da fase de saneamento podem coincidir, portanto, com a prática dos últimos atos da fase postulatória" (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito
Processual Civil. 24. ed. SSA: JusPodivm, 2022. v. 1, p. 866).

[8] FERREIRA, William Santos; LECCIOLLI, Willian. Audiência de saneamento e organização instrutória comparticipativa (case management). Revista de Processo, SP, v. 45, nº 305, jul. 2020, p. 115.

[9] De acordo com Flávio Pedron e Jéssica Costa, após tomadas as devidas providências preliminares e descartada a possibilidade de extinção do processo sem julgamento de mérito, o juiz deverá emitir decisão de saneamento e de organização do processo, que poderá ser feita por escrito, denominada de saneamento solipsista, ou será realizada uma audiência com o mesmo objetivo, conforme prevê o §3º do artigo 357, em razão da complexidade em matéria de fato ou de direito (PEDRON, Flávio Quinaud; COSTA, Jéssica Nayara Duarte. O saneamento no processo civil como instrumento de efetividade da atividade jurisdicional. Revista de Processo, SP, v. 42, nº 274, dez. 2017, p. 177).

[10] GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. RJ: Forense, 2022, p. 379.

[11] O Enunciado nº 35 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) preceitua bem essas hipóteses: "Além das situações em que a flexibilização do procedimento é autorizada pelo artigo 139, VI, do CPC, pode o juiz, de ofício, preservada a previsibilidade do rito, adaptá-lo às especificidades da causa, observadas as garantias fundamentais do processo".

[12] ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, SP, v. 38, nº 225, nov. 2013, p. 400.

[13] No caso do abastecimento de água no município de Altamira (PA), havia cinco ações coletivas na Justiça Estadual (Ação Civil Pública nº 0007611- 66.2016.8.14.0005, Ação de Produção Antecipada de Prova nº 0007151- 45.2017.8.14.0005, Ação Cautelar n.º 0800051-98.2020.8.14.0005, Ação de Execução nº 0801344-06.2020.8.14.0005 e Ação de Reparação de Danos n.º 0804432-86.2019.8.14.0005), além de diversas ações individuais em tramitação na 3.ª Vara Cível e Empresarial da Comarca. Por meio da realização de diversas audiências de saneamento compartilhado, buscou-se superar a discussão jurídica sobre qual ente seria o responsável pelo abastecimento de água no município e estabelecer um cronograma de obras, visando à
implantação de uma efetiva estrutura de prestação de serviço, a fim de manter a adequada operação dos sistemas de saneamento no município. Durante as rodadas dialógicas ocorridas nas audiências, foi possível a realização de negócio jurídico processual, no qual decidiu-se que apenas uma ação civil pública seguiria no trâmite processual e que as demais seriam suspensas (artigo 190, CPC). Houve a fixação de calendário para a prática de atos processuais, com a designação prévia de audiências e o estabelecimento de prazos para a apresentação dos relatórios técnicos (artigo 191, CPC). Foi possível a escolha consensual de membros técnicos para a formação de Grupo de Trabalho e Acompanhamento (GTA), responsável por acompanhar em tempo real a execução das
medidas, receber críticas e apontamentos das partes e de terceiros, assim como relatar e monitorar o andamento das medidas.

[14] DIDIER, Fredie Jr. FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual — administração judiciária, boas práticas e competência normativa. SP: JusPodivm, 2021. p. 88.

Autores

  • é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), formador da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados (Enfam), professor e coordenador do curso de pós-graduação de Processo Civil da Escola Judicial do Estado do Pará (EJPA), integrante do Centro de Inteligência do TJPA (Cijepa), coordenador do 7º Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), juiz de cooperação do TJP, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

  • é procuradora Regional do Trabalho (PRT8), doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora de Processo Civil na UFPA.

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