Opinião

Custos dos direitos e deferência judicial: precedente do STJ no caso do rol da ANS

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30 de setembro de 2022, 21h36

Como se sabe, o direito à saúde encontra-se situado em nossa Constituição no campo dos direitos fundamentais, previsto em seus artigos 6º, e 196 a 200. O status desse direito revela sua relevância para sociedade e mereceu especial atenção do constituinte, o qual tratou não apenas de prever o direito abstrato em si, mas de estabelecer regras mínimas para sua proteção e promoção. Como se verifica da leitura do artigo 196 da Carta Política, a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas, nos termos de seu artigo 199, também pode ser promovida pela iniciativa privada.

Em inúmeras situações, o Poder Judiciário é instado a solucionar controvérsias envolvendo o direito à saúde, seja no que diz respeito aos serviços prestados pelo Estado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), seja quanto aos serviços prestados pela iniciativa privada, de forma suplementar, por meio de convênios médicos ou de seguros de saúde. No que diz respeito ao último, a sociedade e a comunidade jurídica há muito vem debatendo a respeito do chamado Rol de Procedimentos em Saúde, previsto em lei e editado pela Agência Nacional de Saúde (ANS). A controvérsia cinge-se à compreensão da amplitude do rol, se meramente exemplificativo ou taxativo. A opção por um por outro modelo implica num aumento considerável das obrigações mínimas dos planos de saúde.

A questão é cercada de complexidade e, como não poderia deixar de ser, sempre foi objeto de divergência jurisprudencial, o que levou o Superior Tribunal de Justiça, como intérprete máximo da lei federal, a uniformizar o entendimento do Poder Judiciário sobre a matéria, ao julgar os Embargos de Divergência em REsp n. 1.886.929/SP, cujo relator do voto vencedor foi o ministro Luis Felipe Salomão[1].

A taxatividade ou não do rol, como bem pontuado pelo ministro relator, coloca em confronto dois valores divergentes. Por parte das operadoras de serviços médicos, o equilíbrio econômico-financeiro que garanta o serviço prestado. Por parte dos consumidores, o interesse na preservação de sua saúde de todas as formas possíveis.

Da leitura do voto vencedor, que estabeleceu ser o Rol de Procedimentos em Saúde taxativo, em regra, observa-se a grande preocupação da Corte Superior em tentar equalizar os interesses das operadoras de serviços em saúde e dos usuários dos planos de saúde sob uma ótica pragmática, dando atenção às consequências do quanto decido, tendo em vista o impacto econômico que a adoção do rol exemplificativo poderia causar. Tal preocupação pode ser notada já nas primeiras páginas do extenso voto quando é apontado os elevados custos que envolvem a atividade de assistência à saúde.

O olhar pragmático do voto também é notado quando o relator, consignando os princípios que regem o direito social à saúde (universalidade, gratuidade e assistência integral), ressalta a escassez dos recursos necessários à promoção desse direito. Aliás, a escassez de recursos é, inclusive, uma das razões pelas quais o constituinte optou por delegar à iniciativa privada, sob sua fiscalização e regulação, parcela da gestão e oferta de serviços de saúde[2].

Em outro ponto do voto, o relator ressalta que estabelecer o rol como exemplificativo teria o condão de, ao mesmo tempo, atender à demanda dos usuários que requerem o tratamento não previsto no rol, e incrementar desproporcionalmente os custos dos serviços às operadoras, as quais, consequentemente, repassariam tal incremento a todos os usuários, o que poderia, por certo, inviabilizar a oferta de serviços, ou dificultar consideravelmente o acesso à saúde suplementar aos setores mais vulneráveis da população.

Com efeito, observamos que a posição da Corte Superior está em linha com o pensamento de Stephen Holmes e Cass Sunstein sobre os custos dos direitos. Para os autores, todos os direitos, sejam eles positivos ou negativos, possuem custos diretos e indiretos e para que sejam realmente denominados direitos necessitam de recursos financeiros, a fim de atribuir-lhes concretude. No entanto, a escassez de recursos exige do Poder Público em diversas ocasiões a tomada de decisões trágicas, direcionando o orçamento público para efetivação de certos direitos e não de outros a partir das escolhas políticas do governante da ocasião[3].

Nesse contexto, é salutar observar que o Poder Judiciário não fecha os olhos à questão econômica que envolve a efetivação de direitos. É claro que a tarefa do julgador em situações que envolvem o direito à saúde é absolutamente complexa, pois, não raras vezes, vem a público notícias de decisões que concedem liminares ordenando o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Poder Público para que sobre o juiz não recaia a responsabilidade sobre a deterioração da saúde ou mesmo vida do jurisdicionado, mas é certo que a postura do Superior Tribunal de Justiça no voto em análise apresenta um olhar sobre a questão de forma transversal, considerando as consequências que dela podem sobrevir.

Outro elemento relevante que podemos extrair do voto é o nível da postura deferente da Corte ao legislador e à administração pública. Em algumas passagens do voto, observamos que a Corte preferiu não interferir nas escolhas políticas feitas pelo legislador, notadamente quando ressalta que "não cabe ao Judiciário substituir-se ao legislador, violando a tripartição de Poderes e suprimindo a atribuição legal da ANS ou mesmo efetuando juízos morais e éticos, não competindo ao magistrado a imposição dos próprios valores de modo a submeter o jurisdicionado a amplo subjetivismo".

Deveras, nota-se que, nos moldes da deferência construída pelo direito americano, conforme leciona Marcos Paulo Verissimo, a Corte Superior entendeu que a ANS, dada sua competência legal e técnica, tem mais condições de estabelecer quais procedimentos médicos devem fazer parte do rol mínimo a ser observado pelos prestadores de serviços em saúde. A adoção do outro posicionamento existente na Corte (rol exemplificativo) certamente significaria uma autorização para a tomada de decisões muitas vezes arbitrárias pelas instâncias inferiores do Judiciário acerca da questão, interferindo substancialmente na política pública de saúde[4].

Ainda, a postura deferente ao legislador se observa na medida em que a Corte respeitou a delegação concedida pelo Poder Legislativo à ANS para regular a matéria, nos termos do artigo 4º, III, da Lei n. 9.961/2000, o qual preceitua competir à agência "elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades"[5].

É certo que a tese fixada pela Corte Superior não foi bem recebida por boa parte da sociedade e da comunidade jurídica. A repercussão midiática e a pressão da sociedade civil foram de tal monta que imediatamente deu-se início à tramitação do Projeto de Lei nº 2.033/2022[6], que pretende obrigar as operadoras de planos de saúde a financiar tratamentos de saúde que não estiverem previstos no Rol de Procedimentos em Saúde estabelecido pela ANS. O PL inclusive já foi aprovado em ambas as casas legislativas e sancionado pelo Executivo na semana passada.

No entanto, a par da desaprovação popular quanto ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em tempos de severas críticas à postura ativista do Judiciário, é salutar celebrar uma decisão judicial que se atenta às consequências econômicas que orbitam a questão posta em julgamento e que adota postura deferente ao legislador e ao administrador público, reconhecendo que em certos temas não cabe a interferência do Judiciário na política pública desenha pelo Estado. O custo de se adotar um rol taxativo ou exemplificativo deve e será, caso o PL seja sancionado, do Congresso e do Poder Executivo, poderes dotados de conhecimento técnico e legitimidade democrática para decidir uma questão que implica em relevantes alterações na política pública de saúde como um todo.


BIBLIOGRAFIA

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em REsp n. 1.886.929/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 8/6/2022, DJe de 3/8/2022.

[2] MAGALHÃES, Andréa. Precisamos Falar Sobre a Crise: a jurisprudência da crise sob uma perspectiva pragmática. 237 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

[3] HOLMES, Stephen. O custo dos direitos: porque a liberdade depende de impostos/Stephen Holmes e Cass R. Sunstein: tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.

[4] VERISSIMO, Marcos Paulo. Juízes deferentes? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, abr./jun. 2012.

[5] BRASIL. Lei n. 9.961/2000. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9961.htm. Acesso em 17/9/2022.

[6]  BRASIL. Projeto de Lei n. 2.033 de 2022. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154313. Acesso em 17/9/2022.

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