É só o começo: a onda conservadora extrapola a superação de Roe v. Wade
27 de setembro de 2022, 19h24
Junho de 2022 foi um mês de retrocessos na Suprema Corte dos Estados Unidos. Um mês antes, o vazamento de documentos que davam conta da virada jurisprudencial de Roe v. Wade, precedente que até então garantia o direito ao aborto, aumentou a expectativa quanto à decisão no caso Dobbs v. Jackson Women's Health Organization [1]. A questão era saber se a corte manteria a garantia constitucional à interrupção da gravidez ou se superaria a decisão de quase meio século.
A essa altura, não há mais dúvida. Em 24 de julho deste ano, por maioria de seis a três, a corte abandonou a noção ampliada de privacidade que lhe possibilitara o reconhecimento do direito ao aborto. Naturalmente, o debate sobre interrupção da gravidez não é apenas jurídico. Envolve questões sanitárias, éticas, culturais e religiosas, razão pela qual o tema se evidencia entre os demais.
Mas há outras decisões que, em razão da atenção concentrada no caso Dobbs v. Jackson, passaram despercebidas.
Uma delas é do dia anterior e é marcada por uma leitura expansiva da Segunda Emenda [2]. Em 23 de junho, a corte analisou a constitucionalidade da "Sullivan Law", de Nova York, que regulamenta o uso de armas. Promulgada em 1911, a "Sullivan Law" tornou-se símbolo da reação estatal contra uma onda de assassinatos e suicídios. A lei exigia a comprovação de necessidade (proper cause) para porte de arma fora de casa.
A corte considerou-a inconstitucional, por restringir uma garantia constitucional e por conferir poder arbitrário às autoridades locais. Em suma, estendeu o direito de os cidadãos portarem armar e carregarem-nas consigo em local público, sendo prescindível a autorização especial ou justificativa da necessidade.
"Nada no texto da Segunda Emenda estabelece a distinção entre domicílio e local público no que diz respeito ao direito de possuir e usar armas", é a conclusão do caso New York State Rifle & Pistol Association Inc. v. Bruen [3]. A decisão segue o histórico da corte, em especial, os casos District of Columbia v. Heller e McDonald v. Chicago.
Na mesma semana, as liberdades de crença também estiveram em discussão, no julgamento dos casos Carson v. Makin e Kennedy v. Bremerton School District. A liberdade de culto e a laicidade estatal são o cerne do que protege a Primeira Emenda, em torno da qual se deram os debates [4].
Em Carson v. Makin, a Suprema Corte reconheceu a inconstitucionalidade do programa de assistência educacional do estado de Maine. Famílias que morem longe das escolas públicas secundárias podem escolher escolas particulares e o Estado repassa às escolhidas o valor correspondente à matrícula. Segundo a lei estadual, poderiam participar todas as instituições, desde que não religiosas (o regulamento usa a palavra "nonsectary").
A regra explicava-se pela aparente incoerência de repassar dinheiro público a uma instituição de ensino com viés religioso. Era uma forma de a autoridade local, cumprindo a Primeira Emenda, separar igreja e Estado.
No entanto, para a corte, toda restrição baseada na mera manifestação de crença é inconstitucional. Com isso, escolas com viés religioso podem participar de programas assistenciais, mesmo aqueles com repasse de verba estatal.
O caso Kennedy v. Bremerton School District trata do mesmo tema. Joseph Kennedy trabalhava desde 2008 como técnico do time de futebol da Bremerton School, uma escola pública. Anos depois, a diretoria foi informada sobre uma prática reiterada do treinador: após o término de cada jogo, Joseph Kennedy reunia os alunos para agradecerem e orarem.
Em atenção à Primeira Emenda, a escola notificou o professor para que evitasse, dali em diante, qualquer forma de imposição de prática religiosa aos alunos. Primeiro, o professor se convenceu da inconveniência de suas orações pós-jogo. Mas isso não durou muito. Logo sentiu que havia "quebrado seu compromisso com Deus" e prosseguiu com as orações. A escola demitiu-o em seguida.
Quando o caso chegou à Suprema Corte, a maioria se formou para reconhecer a inconstitucionalidade da postura da escola. Destacou o fato de que, após as partidas, Kennedy apenas fazia uma oração privada (quiet personal prayer).
O voto dissidente, entretanto, apontou que os fatos não eram exatamente aqueles. A gravação acostada aos autos mostrava as orações lideradas por Kennedy: no meio do campo de futebol, com vários alunos por perto, diante de veículos midiáticos locais convocados pelo próprio treinador.
Não se tratou, propriamente, de uma forma privada de professar a fé. O caso era de um professor do ensino público que liderava momentos religiosos em ambiente escolar. No entanto, "a Corte ignorou essa história", apontaram os Justices Sotomayor, Brayer e Kagan.[5]
Embora diferentes, os casos assemelharam-se no resultado: placar de seis contra três. A maioria conservadora, composta por indicações de G.W. Bush e de Trump, avança em pautas sensíveis ao eleitorado — direitos reprodutivos, liberdade religiosa e flexibilização do controle de armas.
Algumas decisões, como a do caso Dobbs v. Jackson, tomam proporções maiores e tornam-se alvo de debates. Outras, porém, tomam forma longe do debate público. Sem alarde, o conservadorismo se impõe na velocidade que escreveu o poeta: de repente, não mais que de repente. Ou não.
[1] Roe v. Wade, 410 US 113 (1973) e Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, 597 U. S._____ (2022).
[2] Segunda Emenda, em tradução livre: "Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido".
[3] New York State Rifle & Pistol Association Inc. v. Bruen, U. S._____ (2022).
[4] Primeira Emenda, em tradução livre: "O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos".
[5] Kennedy v. Bremerton School District, 597 US _ (2022).
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