Opinião

Portaria RFB 208/22 e a transação de débitos sob contencioso administrativo

Autor

  • Eduardo de Souza Leão

    é economista advogado especialista em Direito Tributário membro da Comissão de Direito Tributário do IAP e da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB ex-conselheiro do Carf/Ministério da Fazenda e ex-presidente da CAT-OAB-PE.

27 de setembro de 2022, 18h29

Devido à grave crise econômica ocorrida em escala mundial desde o início da pandemia da Covid-19, ao final de 2019, refletindo diretamente na diminuição expressiva da atividade econômica em todos os setores produtivos, figura imprescindível o gerenciamento de cada recurso extremamente necessário à continuidade do desenvolvimento econômico, tanto pela administração pública como nas empresas privadas, sob pena de interferir no cumprimento das suas responsabilidades hodiernas.

Diante da realidade fática ineludível, quanto à necessidade de medidas políticas, legais e administrativas capazes de estimular a ampliação das atividades empresariais, gerando riquezas e promovendo desenvolvimento econômico da nação, foi promulgada a competente Lei Federal nº 13.988/2020, estabelecendo requisitos e condições para que a União, suas autarquias e fundações, e os seus devedores, formalizem o instituto da transação, modalidade de solução de litígios, relativo ao pagamento de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não.

Desta feita importa destacar que a transação dos débitos, nos expressos termos da Lei nº 13.988/2020, contempla a concessão de descontos nas multas, nos juros e nos encargos legais relativos aos créditos tributários existentes, lançados em dívida ativa ou ainda sob apreciação do contencioso administrativo (Artigos 2º e 10-A da Lei 13.988/2020), com o oferecimento de prazos e formas de pagamento via parcelamentos com características próprias, diversificadas, além da utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL, até o limite de 70% do saldo remanescente após a incidência dos descontos, quando houverem.

Com base na Lei nº 13.988/2020, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) inicialmente formatou o instituto da transação, para quem tivesse interesse na quitação de seus débitos, por meio da Portaria PGFN nº 14.402/2020, permitindo que as empresas interessadas em quitar suas obrigações perante o Fisco — e, ao mesmo tempo, em continuar desenvolvendo suas atividades econômicas com maior probabilidade de crescimento, respeitando seu fluxo de caixa e adequando rendimentos e despesas — efetivem procedimentos para pagamento das dívidas por meio de parcelamentos em melhores condições que as regras vigentes anteriormente.

O inusitado foi que, supostamente pretendendo regulamentar o instituto da transação previsto na Lei nº 13.988/2020, alterada pela Lei nº 14.375, de 2022, a Secretaria da Receita Federal emitiu comandos através da Portaria RFB nº 208/2022, criando obstáculos e exceções fora da previsão legal (Artigo 14 da Lei nº 13.988/2020), em especial quanto à restrição de propor ou receber proposta de transação individual, apenas para os contribuintes que possuam débitos objeto de contencioso administrativo fiscal em valores superiores a R$ 10 milhões — (Artigo 40, I da Portaria RFB nº 208/2022) —, e para a opção de transação individual simplificada, em montante superior a R$ 1 milhão — (§ 1º do Artigo 40 da Portaria RFB nº 208/2022), eliminando hipóteses plenamente factíveis pela legislação.

Como não bastasse, a Receita Federal também emitiu os Editais de Transação por Adesão RFB nº 01 e 02, previstos no parágrafo único do artigo 2º e no artigo 17 da Lei nº 13.988/2020, restringindo os benefícios apenas para os débitos de "pequeno valor" (até 60 salários mínimos na data da adesão) ou os considerados "irrecuperáveis", excluindo outras situações previstas na Lei nº 13.988/2020, conformando ilicitude inadmissível em flagrante dano aos contribuintes, assim como da própria União Federal, porquanto inviabiliza a consecução da finalidade da citada lei federal, no que diz respeito à entrada de receitas advindas do pagamento das pessoas jurídicas devedoras.

Ou seja, é ilegal o impedimento promovido pela referida portaria e pelos editais ao parcelamento decorrente da transação prevista na Lei nº 13.988/2020, interferindo ilegitimamente no desenvolvimento da atividade empresarial dos contribuintes, com base exclusivamente em normas regulamentares que impõem exigências sem previsão legal.

De fato, resta evidente o direito do contribuinte em ver afastadas as limitações e obstáculos impostos por meio de portaria e editais de natureza regulamentar, contrariando a expressa previsão da legislação de regência, ao ponto de interferir na consecução da finalidade da lei.

Apenas para facilitar a visualização da ilicitude promovida, colacionamos quadro comparativo entre o disposto na lei e os comandos advindas da portaria, evidenciando as restrições ilegítimas, sem correspondência legal:

LEI Nº 13.988, DE 14 DE ABRIL DE 2020

Dispõe sobre a transação nas hipóteses que especifica; …

PORTARIA RFB Nº 208, DE 11 DE AGOSTO DE 2022

Art. 1º – Esta Lei estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.

Art. 1º – Esta Portaria disciplina os procedimentos, os requisitos e as condições necessárias à realização da transação dos créditos tributários sob administração da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

Art. 2º – Para fins desta Lei, são modalidades de transação as realizadas:

I – por proposta individual ou por adesão, na cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União, de suas autarquias e fundações públicas, na cobrança de créditos que seja da competência da Procuradoria-Geral da União, ou em contencioso administrativo fiscal; (Redação dada pela Lei nº 14.375, de 2022)

II – por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário; e

III – por adesão, no contencioso tributário de pequeno valor.

(…)

Art. 4º – São modalidades de transação dos créditos tributários em contencioso administrativo fiscal sob administração da RFB:

I – transação por adesão à proposta da RFB;

II – transação individual proposta pela RFB; e

III – transação individual proposta pelo contribuinte.

Art. 10-A. A transação na cobrança de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal poderá ser proposta pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, observada a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. (Incluído pela Lei nº 14.375, de 2022)

(…)

 

Art. 11. A transação poderá contemplar os seguintes benefícios:

I – a concessão de descontos nas multas, nos juros e nos encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente, nos termos do parágrafo único do art. 14 desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 14.375, de 2022)

II – o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória; e

III – o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.

IV – a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL, até o limite de 70% (setenta por cento) do saldo remanescente após a incidência dos descontos, se houver; (Incluído pela Lei nº 14.375, de 2022)”

 

Art. 40. Sem prejuízo da possibilidade de adesão à proposta de transação formulada pela RFB, nos termos do respectivo edital, poderão propor ou receber proposta de transação individual:

I – contribuintes que possuam débitos objeto de contencioso administrativo fiscal com valor superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais);

II – devedores falidos, em recuperação judicial ou extrajudicial, em liquidação judicial ou extrajudicial ou em intervenção extrajudicial;

III – autarquias, fundações e empresas públicas federais; e

IV – estados, Distrito Federal e municípios e respectivas entidades de direito público da administração indireta.

§ 1º Poderão propor ou receber proposta de transação individual simplificada os contribuintes que possuam débitos objeto de contencioso administrativo fiscal com valor superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e inferior ao limite previsto no inciso I do caput.

§ 2º A transação de débitos em contencioso administrativo fiscal cujo valor seja igual ou inferior aos previstos neste artigo será realizada exclusivamente por adesão à proposta da RFB, devendo ser não conhecidos, nesses casos, os pedidos de propostas individuais.

§ 3º Os limites de que trata este artigo serão calculados com base no valor de cada contencioso administrativo fiscal.

 

Conforme facilmente destacado no quadro comparativo, a Lei nº 13.988/2020 estabelece os requisitos e condições para a União e seus devedores realizarem a transação referente a cobrança de créditos tributários, por meio de proposta individual ou por adesão, autorizando descontos e formas de pagamentos especiais, inclusive quanto a débitos em contencioso administrativo tributário, e a indigitada Portaria RFB nº 208/2022 foi emitida com suposto objetivo de disciplinar procedimentos, os requisitos e as condições necessárias à realização a referida transação.

Ocorre que, sem qualquer previsão legal neste sentido, a referida Portaria RFB 208/2022 impõe que poderão propor ou receber proposta de transação, somente os contribuintes cujos débitos objeto de contencioso administrativo sejam superiores a R$ 10 milhões, ou proposta de transação individual, os débitos no contencioso superiores a R$ 1 milhão.

Como não fosse suficiente a imposição normativa excludente, ainda foram emitidos editais elegendo à transação apenas débitos de até 60 salários mínimos, ou de dívida considerada irrecuperável, contrariando frontalmente a intenção do legislador ordinário competente.

Ocorre que a Portaria RFB nº 208/2022, inadvertidamente exige que a dívida no contencioso administrativo seja superior a um milhão de reais, o que não é o caso de milhares de contribuintes que possuem débitos no contencioso administrativo perante a RFB, em tramitação nas DRJs e/ou no Carf, enquanto os editais emitidos pela RFB, nos termos do parágrafo único do Artigo 2º e no Artigo 17 da Lei nº 13.988/2020, ao invés de cumprirem sua função regulamentar ao preceito legal instituído, consubstanciam regramentos exclusivos para dívidas inferiores a 60 salários mínimos ou considerada irrecuperável, situações extremas que não acometem as dívidas da maioria, conquanto não sejam passíveis de imposição por meio de normas regulamentares.

A ofensa ao princípio da legalidade (Constituição, artigos 5º, inciso II, 37 e 150, inciso I; CTN, artigo 97, inciso II), é clara e manifesta na portaria e nos citados editais, que inovaram quanto a restrições (inexistentes na legislação de regência) de direitos outorgados pela competente Lei Federal nº 13.988/2020.

Ora, mesmo os decretos devem fiel obediência às leis de regência (Constituição, artigo 84, inciso IV; CTN, artigo 99), quanto menos portaria e editais emitidos por órgão do Executivo, que deveriam tão somente regulamentar os procedimentos ao exercício do direito previsto na legislação originária, contudo jamais criar objeções a própria eficácia e finalidade da lei, quanto ao aumento de arrecadação em face da quitação dos débitos em aberto pelos contribuintes estimulados pelas melhores condições de pagamento.

A verdade é que as normas regulamentares, dentre as quais a portaria e os editais da Receita Federal, não podem inovar na ordem jurídica (artigos 99 e 100 do CTN), porquanto configuram meros atos normativos expedidos por autoridade administrativa (artigo 100, inciso I do CTN), com objetivos específicos de tornar a lei eficaz e plenamente aplicável, conquanto não possuam competência legislativa.

Sendo certo que a norma complementar não pode estabelecer limitações ao exercício de direito concedido por Lei, apresentam-se ilegítimos os comandos normativos que impedem, dificultam ou excepcionam o estabelecido na legislação de regência, ao ponto de eliminar a finalidade precípua da lei a qual deveria promover sua concreção perante a sociedade.

Mesmo ao exercer uma competência delegada, o agente público elegido precisa respeitar o limite material da legislação, de modo que, emitindo regras por meio de instrução normativa, portaria e/ou edital, tais normas figurem restritas ao definido na lei regulamentada, sob pena de extrapolarem os limites de sua alçada.

No caso, apesar do objetivo aparentemente legítimo, o ente federal não atentou ao definido na Lei de Regência, impedindo a máxima eficácia do direito outorgado, porquanto a dicção dos artigos da indigitada Portaria RFB nº 208/2022 assim como a previsão dos Editais de Transação por Adesão da Receita Federal, infligiram limites e restrições ao previsto nos artigos 2º, 10-A e 11 da Lei nº 13.988/2020, quanto à oportunidade de pagamento de débitos submetidos ao contencioso administrativo em condições especiais.

Neste sentido, enquanto a Lei nº 13.988/2020 visa a estimular a regularização dos contribuintes devedores, proporcionando condições mais favoráveis ao adimplemento, em especial fazendo justiça fiscal ao possibilitar o encerramento dos debates no seio administrativo sem maiores prejuízos aos litigantes, a citada Portaria RFB nº 208/2022 e os Editais de Transação por Adesão RFB nº 01 e 02 da Receita Federal, desconstituem esse direito, contrariando a finalidade da lei.

De forma inequívoca pode-se concluir que os impedimentos estabelecidos nos dispositivos da Portaria RFB nº 208/2022 e dos Editais de Transação por Adesão RFB nº 01 e 02, não só desrespeitaram o princípio da legalidade, como terminaram por traçar limites e restrições completamente fora da finalidade normativa regulamentar.

Induvidosamente, as normas regulamentares citadas instituíram situações que extrapolam sua competência complementar, mutilando a prerrogativa dos entes legislativos, estipulando exigências e impedimentos em desconexão com a própria finalidade da lei, confluindo em deliberações além de seus reais objetivos, mesmo que a pretexto da edição de procedimentos regulamentares. A dicotomia é tamanha que a portaria irá estimular e potencializar o litígio judicial, pois será a única via de socorro!

Autores

  • é economista, advogado, especialista em Direito Tributário, membro da Comissão de Direito Tributário do IAP e da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, ex-conselheiro do Carf/Ministério da Fazenda e ex-presidente da CAT-OAB-PE.

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