Opinião

Entendimento do STJ em relação ao consumidor bystander

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26 de setembro de 2022, 6h04

No Recurso Especial nº 1.967.728/SP (2021/0220661-1), o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tendo a ministra Nancy Andrighi na qualidade de relatora, proferiu decisão em 13/9/2021 inerente à impossibilidade do consumidor por equiparação figurar no polo ativo de uma ação indenizatória em face Itaú Unibanco e Mastercard Brasil, sob o argumento que esta lhe causou danos morais oriundos de uma prestação viciosa de serviço de cartão de crédito.

O recurso foi interposto no STJ em razão do indeferimento da apelação proposta pela parte autora, ora recorrente, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o qual reconheceu a ilegitimidade ativa daquela.

A recorrente alega a violação dos artigos 14, 17 e 29, todos do Código de Defesa do Consumidor, sustentando que fez uma viagem internacional com sua filha, a qual arcaria com todas as despesas. No entanto, houve o bloqueio do cartão de crédito da filha da recorrente sem prévia notificação, dando azo a um evento danoso que ultrapassou seu objeto e atingiu sua descendente, bem como à própria genitora.

Na ação movida pela filha da recorrente, o TJ-SP reconheceu a desídia dos réus (ora recorridos) em relação ao mesmo fato arguido pela recorrente, condenando-os a indenizar a sua filha. Porém, o juízo de 1º grau reconheceu a ilegitimidade ativa da recorrente, e extinguiu o feito sem resolução de mérito, bem como negou provimento à apelação interposta por ela.

Com os danos juridicamente reconhecidos em relação à filha da recorrente, nos resta discutir se a própria recorrente também deveria ter sido indenizada. Portanto, a discussão assenta-se no reconhecimento da legitimidade ativa da recorrente, a qual, mesmo não sendo a titular do cartão de crédito, alegou que sofreu as consequências do serviço precário prestado pelos réus, vez que sua condição, segundo alegado, configura-se como sendo a de consumidor por equiparação (bystander).

A partir dos pontos supracitados, o recurso especial, objeto da decisão em análise, buscou o reconhecimento da recorrente como consumidora por equiparação, o que, consequentemente caracterizaria sua legitimidade ativa para pleitear a indenização por danos morais, os quais já foram reconhecidos em relação à sua filha, titular do cartão de crédito.

Em relação a filha da requerente foi reconhecido o direito à indenização por danos morais. Mas tal responsabilidade do fornecedor foi por vício do produto e do serviço, nos quais não caberiam indenização à figura do consumidor bystander.

Dessa forma, tem-se por reconhecidos os danos morais, mas a indenização decorrente destes só recairia em relação à consumidora direta.

A ministra relatora Nancy Andrighi iniciou sua decisão citando os artigos 2º e 17, ambos do Código de Defesa do Consumidor, os quais conceituam a figura do consumidor e do consumidor por equiparação. A respeito disso, não cabe discussão acerca da aplicação do artigo 2º do CDC, vez que a legitimidade ativa da recorrente não foi indeferida. No entanto, no que diz respeito ao artigo 17, do CDC, entendesse necessária uma análise crítica acerca sua interpretação dada pelo STJ, mais especificamente, na decisão que será analisada no presente comentário jurisprudencial.

Segundo a jurisprudência da Corte:

"Equipara-se à qualidade de consumidor para os efeitos legais, àquele que, embora não tenha participado diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica". (AgRg no REsp 1000329/SC, 4ª Turma, DJe 19/08/2010. No mesmo sentido: REsp 1574784/RJ, 3ª Turma, DJe 25/06/2018; REsp 1787318/RJ, 3ª Turma, DJe 18/06/2020; REsp 1327778/SP, 4ª Turma, DJe 23/08/2016).

Nos casos em que o consumidor bystander foi prejudicado por vício do produto, o texto do CDC e a interpretação do STJ, restringem-se a responsabilizar o fornecedor somente nas situações descritas como decorrente de "fato" de produto e do serviço (artigo 12 a 17, do CDC). Isso é o que o código preceitua de forma literal, contudo em certas situações a responsabilização deveria ser estendida a casos que são conceituados como "vício" do produto ou serviço (artigo 18 a 25, do CDC), pois, o que observa-se aqui, é somente um problema de conceituação entre o que é fato do produto e o que é vício do produto. Portanto, se faz necessário um debate sobre estes dois conceitos,

Vício do produto, segundo a doutrina, configura um defeito menos grave, do qual decorre o mau funcionamento, a dificuldade de utilização ou de fruição do produto ou serviço, comprometendo sua prestabilidade. O vício do produto ou do serviço é algo intrínseco à coisa e não atinge a pessoa do consumidor ou os seus bens.

Por sua vez, será fato do produto ou serviço, se ocorrer um evento danoso externo gerado pelo produto ou serviço, o qual prejudica ou lesione o consumidor e terceiro que o utilize ou consuma. Na responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, diz-se que o vício ultrapassa a esfera da coisa, maculando a integridade física ou psíquica da vítima, gerando o dever de reparação por danos suportados por esta.

Com base nessas conceituações, me atrevo a dizer que o vício do produto ou serviço que gerar danos que extrapolem aqueles típicos de sua utilização, caracterizam fato do produto ou do serviço. O que, nesse caso, também daria ensejo a uma indenização por danos morais para o consumidor por equiparação.

Embora o legislador não tenha consagrado uma definição de dano moral, a doutrina e a jurisprudência convencionam que ele é afeto ao patrimônio imaterial de uma pessoa, atingindo lesivamente sua tranquilidade, intimidade, honra, imagem etc.

A reparação em casos em que se verifica o dano moral foi reconhecida como garantia fundamental, estando presente no texto da Constituição de 1988 (artigo 5º, V e X), bem como, no artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 186, do Código Civil. Também se faz necessário para uma melhor análise da decisão em análise, aduzir sobre a diferença entre dano moral e o mero contratempo. Para tanto, o julgador deve observar se o fato foi capaz de desestabilizar de forma relevante a esfera psíquica do consumidor, e não apenas se revelar como um mero desconforto que pode ser contornado ou suportado sem prejuízos de grande monta.

Também deve-se observar que a chamada "indústria do dano moral" é algo que merece um olhar crítico, não devendo ser tomada como uma verdade absoluta, sob pena de anuir com formas precárias de prestações de serviços da cadeia de fornecimento.

Ocorre que, para a ministra relatora: "Não houve, assim, um defeito que ultrapassou os limites do serviço de fornecimento de crédito a ponto de causar danos ou riscos à segurança física ou psíquica da recorrente, na forma do artigo 14 do CDC".

Porém, convêm destacar que o defeito pode não ter ultrapassado os limites do serviço de fornecimento de crédito, porém, a afirmação de que os danos suportados pela recorrente não geraram riscos a sua integridade física ou psíquica, é, no mínimo, leviana. Isso porque, no presente caso, mãe e filha, esta na qualidade de consumidora direta e aquela de consumidora por equiparação, passaram por um grande infortúnio, vez que estavam em viagem internacional e as custas da estadia delas dependia unicamente do cartão de crédito bloqueado sem prévio aviso.

Ora, em se tratando de uma viagem internacional, onde a recorrente dependia do cartão de crédito para arcar com suas despesas, diante do não pagamento destas, o defeito apresentado pelo cartão de crédito é perfeitamente apto a causar danos à sua segurança física ou psíquica. O fato de estar em um país que não de origem, sem recursos financeiros, gera insegurança, medo, angústia e mais uma série de problemas. Portanto, entendemos que o prejuízo de ordem moral ao qual a recorrente foi submetida ultrapassa a esfera do mero aborrecimento.

Salienta-se que o fato do evento danoso ter ocorrido em território estrangeiro só potencializa a incidência dos danos morais.

Por exemplo, não se pode constatar que não passou pela mente da recorrente que ela poderia ser detida ao não conseguir pagar a conta de um restaurante, ou de ter sua bagagem confiscada quando do checkout do hotel onde estava hospedada. Tais eventos, poderiam gerar graves consequências à recorrente. No entanto, a iminência de suas ocorrências, a qual se deu por conta da impossibilidade de utilização do cartão de crédito, por si só, deveria ser apta a ensejar uma indenização por danos morais à recorrente.

Com base no exposto, no tocante ao artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor, mais adequado seria estender sua aplicação ao caso em comento, onde restou confirmada a alta carga de danos morais suportados pela vítima, independentemente de ela ser consumidora bystander. É que, se o artigo 17, do CDC equipara aos consumidores todas as vítimas do evento danoso, e este ocorreu por conta de defeito relativo à prestação de serviços, inerente ao bloqueio sem prévia notificação, é inegável a legitimidade ativa da recorrente no aludido recurso.

Ademais, a padronização de decisões como esta, que não reconhece a legitimidade ativa do consumidor bystander, sobretudo em situações semelhantes à que é objeto desta análise, fornece uma sensação de impunidade ao fornecedor do serviço, o qual não se preocupara se sua desídia atingirá terceiros.

Tais decisões deveriam ser tomadas tendo com base o caso concreto, mensurando especificamente os danos suportados pelo consumidor bystander, não baseando-se apenas na literalidade dos dispositivos legais.

Portanto, o reconhecimento da legitimidade ativa da recorrente deveria ser deferido, bem como, os respectivos danos morais.

Em suma, tanto a decisão abordada nessa análise, quanto o entendimento adotado pelo STJ em relação ao consumidor bystander, demonstram que a legislação consumerista não está sendo aplicada com o propósito para qual foi criada, qual seja, a proteção do consumidor.

A aplicação da norma consumerista com o seu respectivo viés protetivo não se verifica na decisão em comento, vez que esta beneficia o fornecedor do serviço, isentando-o de indenizar um terceiro que se encontrava na qualidade de destinatário final de um serviço. A recorrência de decisões nessa mesma linha de interpretação dá azo à insegurança jurídica da figura do consumidor bystander, pois nota-se um preterimento na proteção consumerista conferida a eles.

Portanto, entendemos que em sendo reconhecido o dano moral suportado pelo consumidor propriamente dito, a sua modalidade equiparada também merece ser reparada. Atrevemo-nos a afirmar que esta interpretação extensiva pode atuar também de forma preventiva, fazendo com o que o fornecedor busque sempre a melhoria de seus serviços, funcionando, inclusive como uma condenação pedagógica.

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