Opinião

Contrabando jurídico: importação irregular do estado de coisas inconstitucional

Autor

  • Marcos Teixeira Junior

    é mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde (Fesurv) e é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça (assessor de ministro).

25 de setembro de 2022, 11h17

O sistema jurídico brasileiro, em 2015, importou da Colômbia o chamado Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). No entanto, parece que tal importação não foi submetida à fiscalização aduaneira. O ECI foi introduzido no bojo da petição inicial da ADPF 347, ou seja, quem trouxe esse produto da Colômbia o introduziu na mais alta corte do Brasil. Essa petição inicial está disponível (acesso público) no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal (STF). Nela, o autor argumenta que há no Direito Comparado "exemplos interessantes" de instrumentos que podem ser utilizados pelo Poder Judiciário para enfrentar "graves falhas estruturais nas políticas públicas voltadas à proteção de direitos fundamentais", sendo um desses instrumentos o ECI — criação da Corte Constitucional da Colômbia. Pugna pelo reconhecimento do ECI no sistema carcerário brasileiro.

Carlos Alexandre de Azevedo Campos é quem melhor explica. Segundo o professor, o ECI possui três pressupostos: a) um quadro de violação massiva de direitos fundamentais que abrange um número amplo de pessoas; b) uma manifesta falha estrutural, decorrente da falta de coordenação de medidas legislativas, administrativas e judiciais; c) a solução dessas medidas pressupõe mudanças estruturais, especialmente novas políticas públicas ou o ajuste das existentes.

O ECI é um modelo de processo estrutural. Refere-se a uma forma de litígio que envolve os três poderes do Estado — Executivo, Legislativo e Judiciário —, bem como um número amplo de pessoas. Os processos estruturais são instaurados com a finalidade de se resolver um cenário de manifesta violação a vários direitos fundamentais, por meio da atuação conjunta de uma pluralidade de autoridades, as quais devem criar novas políticas públicas ou readequar as já existentes.

O caso Brown vs. Board Education é muito citado quando se fala em processos estruturais. Uma criança negra de pouca idade (Linda Brown) era obrigada a percorrer um longo caminho até chegar à escola, pois as escolas que ficavam próximas de sua residência não aceitavam crianças negras. Inconformada com essa situação, Brown ajuizou uma ação em face do Conselho de Educação Estadual (Board of Education of Topeka). Em razão do não acolhimento da pretensão na instância de origem, houve apelação dirigida à Suprema Corte. Além de Brown vs. Board Education, o julgamento abrangeu outros casos análogos — Briggs vs. Elliot, Davis vs. Board of Education of Prince Edward County (VA.), Boiling vs. Sharpe, e Gebhart vs. Ethel. Em todos eles havia o questionamento acerca da segregação racial existente nas escolas públicas. A Suprema Corte, revendo sua interpretação acerca da 14ª Emenda, concedeu aos negros o direito de frequentar as mesmas escolas que os brancos. O caso enquadra-se no modelo de medidas estruturais da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Um outro modelo de processo estrutural é o compromisso significativo, instituto fabricado pela Corte Constitucional da África do Sul. No caso Olivia Road v. City of Johannesburg, a Corte enfrentou a questão do despejo das pessoas que viviam em prédios em situação precária, na periferia da cidade. Com o objetivo de reestruturar esses prédios, o município de Johanesburgo ajuizou uma ação cujo pedido foi rejeitado pelo Tribunal Regional e, posteriormente, em sede recursal, acolhido pela Suprema Corte de Apelação.

Os residentes recorreram então para a Corte Constitucional que admitiu o caso em maio de 2007. Em sua primeira decisão, a Corte determinou que deveria ser firmado um "compromisso significativo" entre o município e os recorrentes (residentes), à luz dos valores da Constituição. Embora neste caso a Corte tenha cunhado algumas características do "compromisso significativo", o instituto foi aperfeiçoado no caso Joe Slovo. Conforme aponta Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior, em ambos os casos os resultados do acordo foram satisfatórios e a fiscalização por parte do Poder Judiciário ocorreu de forma distinta. Pare ele, o modelo do "compromisso significativo" é mais adequado que o ECI, no que tange à interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas que devem ser implementadas pelo Poder Executivo.

Em paralelo com os modelos internacionais, registre-se que tramita na Câmara dos Deputados o PL 8.058/2014, que cria o processo especial de controle e intervenção do Poder Judiciário na implementação ou na correção de políticas públicas. O artigo 2º do projeto estabelece que o controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário rege-se pelos princípios elencados nos respectivos incisos (e.g. proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, equilíbrio orçamentário), sem prejuízo de outros que assegurem o gozo de direitos fundamentais. Ressalte-se que o projeto incorpora as últimas experiências do Direito Comparado, que "indicam o caminho a ser seguido pelo Poder Judiciário, em estreito contato com o Poder Público, para a construção do consenso ou a formulação de comandos flexíveis e exequíveis, que permitam o controle da constitucionalidade e a intervenção em políticas públicas, evitando que o juiz se substitua ao administrador" (conforme consta da Justificação).

Evidencia-se que o ECI não é a única alternativa à solução dos problemas estruturais existentes no Brasil. Na verdade, o ajustamento do ECI no sistema jurídico brasileiro gera algumas perplexidades, especialmente o seu acoplamento ao procedimento da ADPF. O estudo do desenvolvimento do ECI pela Corte Constitucional da Colômbia, brilhantemente detalhado por Campos, revela que o instituto requer um procedimento específico que permita ao STF assegurar a implementação total de suas ordens — como fez a Corte Constitucional da Colômbia no emblemático caso do deslocamento forçado.

Em apertadíssima síntese, a utilização do ECI, no caso, objetivou solucionar um problema estrutural que abrangia mais de três milhões de pessoas ("a segunda cifra mais alta no mundo depois do Sudão"). A Corte reteve jurisdição sobre o litígio para assegurar a implementação de suas ordens; supervisionou o cumprimento das decisões, realizou audiências públicas destinadas ao debate das ordens formuladas; proferiu novas decisões e alcançou uma solução exitosa.

Por sua vez, a ADPF possui regras próprias de admissibilidade que dificultam tanto o acesso à jurisdição do STF quanto a implementação das ordens expedidas. Nesse contexto, haveria necessidade de o STF ampliar o escopo e o próprio procedimento da ADPF para que ela pudesse comportar o procedimento do ECI, especialmente a retenção de jurisdição, a fim de que por meio do monitoramento fosse garantida a eficácia das decisões.

Cabe reconhecer que a MC na ADPF 347 não é o único caso de declaração do ECI no âmbito do STF. Nos autos da ADPF 760, a relatora, ministra Cármen Lúcia, proferiu voto no sentido de reconhecer o estado de coisas inconstitucional no que se refere ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica. O julgamento encontra-se suspenso em razão de pedido de vista efetuado pelo ministro André Mendonça (em 6/4/2022). A própria ADPF 347 também se encontra com julgamento suspenso em razão de pedido de vista. Além desses, há outros pedidos de declaração do estado de coisas inconstitucional sendo processados.

O que há em comum nesses modelos de solução de problemas estruturais é a postura ativista da Corte Constitucional. Campos define o ativismo como o "exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos". O ativismo estrutural dialógico é o formato que ele entende legítimo na declaração do ECI. O conceito permite inferir que é possível o bom ativismo. Manuel Atienza, por outro lado, entende que juiz ativista é aquele que decide uma questão legal de acordo com suas opiniões sobre o que é justo, mesmo que isso signifique transgredir os limites estabelecidos pela lei. Embora entenda como negativa a postura "activista", afirma ser positiva a tendência "activa", exemplificando esta última com a decisão da Corte Constitucional da Colômbia que fixou parâmetros para um sistema de saúde, sendo que, posteriormente, "el Parlamento de ese país dictó una ley que desarrollaba el derecho a la salud (implícito en la Constitución) siguiendo lo que había establecido la Corte".

No âmbito do STF, podemos citar como bom ativismo o reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico legítimo (ADI 4.277, 2011), bem como o caso da regulamentação da política pública de acessibilidade denominada "audiodescrição", oportunidade em que a Corte foi deferente com os demais Poderes e ativista em face do próprio Tribunal a quo —especialmente quando o STF observou que "não se pretende um governo de juízes" (ADPF 309 MC-Ref, 2014).

Nos dias atuais, em que muitos associam o ativismo a uma má atuação do Poder Judiciário, relembrar o caminho que a pequena Linda Brown percorria é um bom reforço para admitir a existência do bom ativismo.

Em conclusão, espera-se que o ordenamento jurídico brasileiro seja capaz de ter um sistema de solução de problemas estruturais adequado e coerente – caso efetivamente seja essa a intenção dos três Poderes —, importando regularmente um modelo estrangeiro ou desenvolvendo um genuinamente brasileiro (ainda que composto de peças oriundas do Direito Comparado).

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Referências

Atienza, Manuel, "Siete tesis sobre el activismo judicial". Disponível em: <https://dfddip.ua.es/es/documentos/siete-tesis-sobre-el-activismo-judicial.pdf?noCache=1540204326938>. Acesso em: 12 set. 2022.

BRITTO, Livia Mayer Totola; KARNINKE. O caso Brown v. Board Education, medidas estruturantes e o ativismo judicial. In: Congresso de Processo Civil Internacional, IV, 2019, Vitória. Anais do IV Congresso de Processo Civil Internacional. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2019. p. 273.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 2ª ed. Salvador: JusPodivm, 2019.

Machado Segundo, H. de B., & Casimiro Gomes Serafim, M. (2022). AS DIFICULDADES EPISTÊMICAS PARA A FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS NO BRASIL. Revista Do Direito, (66), 91-111. https://doi.org/10.17058/rdunisc.vi66.15739. Acesso em: 12 set. 2022.

VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araújo. Separação de poderes, estado de coisas inconstitucional e compromisso significativo: novas balizas à atuação do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, 2015. (Texto para discussão nº 186). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td186. Acesso em: 12 set. 2022.

Autores

  • é assessor de ministro do STJ Mauro Campbell Marques, mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação Ensino Superior de Rio Verde (Fersurv) da Universidade de Rio Verde (UniRV) e analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça.

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