Opinião

Controvérsia da aplicação do artigo 1.029 do Código Civil nas sociedades limitadas

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25 de setembro de 2022, 9h11

A aplicação do artigo 1.029 nas sociedades empresárias limitadas foi julgada no REsp 1.839.078/SP em 2021. Buscamos entender como o julgamento pode refletir na prática.

Em uma sociedade, seja limitada, anônima, simples ou qualquer outra, eventualmente nos deparamos com sua dissolução, e com isso, diversas questões a serem sanadas.

O direito de retirada é uma forma de dissolução da sociedade empresária em relação ao sócio, previsto no artigo 1.029 do Código Civil, no capítulo das sociedades simples. Por força do artigo 1.053 do mesmo diploma, as regras das sociedades simples se aplicam à sociedade limitada, quando o seu capítulo não oferecer regras próprias. Dessa forma, vemos os sócios de sociedades limitadas utilizando, largamente, o direito de retirada previsto no artigo 1.029.

Ocorre que a utilização de tal instituto, nos termos acima, é criticada por parte dos aplicadores do direito, sob o argumento de que o direito de retirada é previsto, sim, no capítulo das sociedades limitadas, de forma que não é correta, tecnicamente, a aplicação de regra da sociedade simples, por omissão.

O tratamento dado pelo capítulo das ltda's. seria a previsão contida no artigo 1.077 do Código Civil, que dispõe sobre a retirada de sócio não concorde com modificação do contrato social, com fusão da sociedade ou incorporação de outra, ou dela por outra, ou seja, o capítulo das ltdas., na forma do artigo 1.077 não prevê o direito de retirada imotivada pelo sócio.

Noutro giro, existe a possibilidade de o contrato social da sociedade limitada ser regido supletivamente pelas regras da Lei das Sociedades por Ações. Neste ponto, a questão se expande. Alguns defendem que, sendo o contrato social regido pela LSA, as regras da sociedade simples não seriam aplicadas em caso de omissão, mas sim as regras da LSA, pois não haveria omissão, de forma que o direito de retirada seria, novamente, suprimido.

Assim criou-se a problemática da aplicação do artigo 1.029: seria este aplicado em todos os casos, independente da previsão do artigo 1.077 e regência supletiva pela LSA?

Doutrinariamente, vimos o surgimento de 3 teorias sobre o assunto:

"1ª Não se aplica o artigo 1.029 de forma alguma, pois a previsão descrita no 1.077 traduz a vontade do legislador de forma completa. Nesse entendimento, o direito de retirada motivada extrajudicial só seria aceito em caso de não concordância do sócio com modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra (exatamente nos termos do art. 1.077), como entende Tavares Borba [1]. Essa corrente praticamente não tem reconhecimento pelos Tribunais.
2ª Se aplica o artigo 1.029 nos casos em que não haja regência supletiva do capítulo das Sociedades Anônimas, justamente pela previsão contratual estabelecida anteriormente pelos sócios, que já demonstra o não interesse na aplicação das regras da Sociedade Simples. Assim lecionam Fabio Ulhoa Coelho e Tarcísio Teixeira [2].
Por fim, se aplica o artigo 1.029 em ambos os casos acima, pois, aplicação das regras da sociedade simples nas ltda. é subsidiária, enquanto a regência da LSA às ltda. é supletiva, ou seja, secundária, conforme entendimento de Marlon Tomazette e André Santa Cruz" [3].

A terceira linha foi a adotado pelo STJ, no REsp 1.839.078/SP[4], ressaltando um ponto importante: o STJ considerou o direito de retirada do sócio um direito potestativo previsto na Constituição Federal, de não ser obrigado a permanecer associado.

Dessa forma, pelo entendimento do REsp 1.839.078/SP, o sócio que possui o desejo de se retirar da sociedade, mesmo que sem motivação, pode se valer dos procedimentos do artigo 1.029 do Código Civil.

Tal julgamento é interpretado por alguns como um afastamento das regras previstas pelos próprios sócios quando da constituição do contrato social e, dessa forma, temerário, do ponto de vista de a sociedade poder ser obrigada a  arcar com os haveres de um sócio que se retirou da sociedade imotivadamente, quando já tinha sido acertado, no nascimento da sociedade, que tal direito não poderia ser exercido, ou melhor dizendo, sequer existia, diante de o contrato social ser regido por diploma que não prevê tal possibilidade.

Existem também os que criticam a aplicação das regras da sociedade simples às ltdas., justamente por estas não serem sociedades empresárias, ou seja, tais disposições não alcançam todas as necessidades da sociedade limitada, que é uma sociedade empresária [5].

Respeitando e preservando todos os entendimentos, que integram e contribuem para o debate, cabe retornarmos à motivação da regência supletiva da LSA às sociedades limitadas.

Inicialmente, tal possibilidade foi prevista para sanar omissões, na falta do diploma específico da sociedade limitada. Por sua vez, o diploma específico das sociedades limitadas é o Código Civil.

Outro ponto a ser lembrado é que, embora saibamos que a sociedade empresária limitada é largamente utilizada em sociedades as quais tanto as pessoas dos sócios, quanto o aporte financeiro são elementos essenciais [6], a ltda. é uma sociedade contratual, majoritariamente reconhecida como possuidora de caráter intuitu personae, de forma que a regência supletiva da LSA poderia conferir ou enaltecer [7] à ltda. um caráter intitui pecúnia, típico das sociedades anônimas.

Com o julgamento do REsp 1.839.078, cuja matéria não recebeu revisão até o momento, o direito empresarial se mantém deixando de lado, em uma primeira análise, a temática que envolve agregar às empresas um caráter social, especialmente no que reflete nas sociedades empresárias limitadas, porquanto prima pela vontade individual dos sócios das sociedades, de integrar ou não quadro societário para exercer atividade econômica.


[1] "O direito de retirada previsto no referido artigo 1.029 não se aplica subsidiariamente às sociedades limitadas e às sociedades anônimas, as quais se encontram regidas por normas próprias (direito de recesso)". Borba, José Edwaldo Tavares. Direito societário / José Edwaldo Tavares Borba.  19. ed.  Barueri [SP]: Atlas, 2022, página 99.

[2] "Se o contrato social for omisso quanto ao regime de regência supletiva ou eleger o das sociedades simples, naquelas matérias em que o Capítulo do CC sobre sociedade limitada for omisso, aplicam-se as regras do Capítulo do CC sobre sociedades simples. Caso o contrato social eleja como regime de regência supletiva o da sociedade anônima, naquelas matérias, a sociedade limitada sujeitar-se- á às normas da LSA". COELHO, Fabio Ulhoa. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 33. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022., página 170.

"Em caso de omissões deste Capítulo, que trata da sociedade limitada, artigos 1.052 a 1.087, aplicam-se de forma subsidiária (supletiva) as disposições da sociedade simples, por exemplo, quanto às hipóteses de dissolução (CC, artigos 1.053). Mas, se preferir, o contrato social da sociedade limitada pode prever a aplicação subsidiária da legislação da sociedade anônima, Lei nº 6.404/76. No entanto, se dele não constar nenhuma previsão, aplica-se o regime jurídico da sociedade simples (CC, artigo 1.053)". Direito Empresarial Sistematizado: teoria, jurisprudência e prática / Tarcisio Teixeira.  10. ed.  São Paulo: SaraivaJur, 2022, página 78.

[3] "Em primeiro lugar, a possibilidade de aplicação supletiva da lei das sociedades por ações não afasta a possibilidade de aplicação às regras das sociedades simples, no que couber (…)". Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. Tomazette.  8. ed. rev. e atual.  São Paulo: Atlas, 2017., página 481.

"Ressalte-se, todavia, que a previsão de regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima não significa, necessariamente, que todas as matérias que não possuam regulação específica na parte do Código Civil relativa às sociedades limitadas serão disciplinadas pelas regras da Lei das S/A. É preciso distinguir com clareza a aplicação subsidiária de regência supletiva.  (…)

Em princípio, aplicam-se subsidiariamente à sociedade limitada as regras da sociedade simples (artigo 1.053, caput, do Código Civil)". Direito empresarial: volume único / André Luiz Santa Cruz Ramos.  10. ed.  Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, página 583.

[4] "RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. DIREITO SOCIETÁRIO. SOCIEDADE LIMITADA. APLICAÇÃO SUPLETIVA DAS NORMAS RELATIVAS A SOCIEDADES ANÔNIMAS. ARTIGO 1.053 DO CC. POSSIBILIDADE DE RETIRADA VOLUNTÁRIA IMOTIVADA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.029 DO CC. LIBERDADE DE NÃO PERMANECER ASSOCIADO GARANTIDA CONSTITUCIONALMENTE. ARTIGO 5º, XX, DA CF. OMISSÃO RELATIVA À RETIRADA IMOTIVADA NA LEI N. 6.404/76. OMISSÃO INCOMPATÍVEL COM A NATUREZA DAS SOCIEDADES LIMITADAS. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.089 DO CC". Supremo Tribunal de Justiça. RESP 1.839.078. Disponível em <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2030014&num_registro=201702518006&data=20210326&peticao_numero=-1&formato=PDF>

[5] "Em segundo lugar, as normas sobre as sociedades simples nem sempre se adequam à velocidade das relações empresariais da atualidade, na medida em que não foram feitas para disciplinar as sociedades empresárias. Ora, as sociedades simples não se destinam ao exercício de atividade empresarial, ao contrário das sociedades limitadas, que exercem basicamente tal tipo de atividade. Assim sendo, é um contrassenso buscar nas sociedades simples soluções para as sociedades limitadas". Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. Tomazette.  8. ed. rev. e atual.  São Paulo: Atlas, 2017, página, 445.

[6] "Não obstante a força de tais argumentos, é certo que esse personalismo não estará presente em todas as sociedades limitadas, vale dizer, a liberdade, que é assegurada aos sócios, permitirá a configuração de sociedades eminentemente personalistas, mas também de sociedades eminentemente capitalistas". Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. Tomazette.  8. ed. rev. e atual.  São Paulo: Atlas, 2017., página 446.

[7] "Em primeiro lugar, permite-se, por opção dos sócios, que a limitada seja regida supletivamente pelas normas das sociedades simples (sociedade de pessoas) ou pelas normas das sociedades anônimas (sociedade de capital). Outrossim, os sócios têm a liberdade de definir se a cessão das quotas é livre (artigo 1.057 do Código Civil de 2002), denotando uma natureza capitalista, ou se depende da anuência de todos, reforçando a natureza pessoal. Também se pode permitir um terceiro como administrador da sociedade (artigo 1.061 do Código Civil de 2002), como nas sociedades de capital, o qual será escolhido pela unanimidade ou por dois terços dos sócios, mas a regra é que só pode ser administrador quem é sócio, como nas sociedades das pessoas". Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1. Tomazette.  8. ed. rev. e atual.  São Paulo: Atlas, 2017, página, 447.

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