Aspectos jurídicos de sociedades com patrimônio líquido negativo (parte 3)
21 de setembro de 2022, 6h02
Continua parte 2
Responsabilização de sócios e administradores
O terceiro artigo da série "aspectos jurídicos relevantes de sociedades com patrimônio líquido negativo no Brasil" tem por objetivo uma abordagem acerca dos níveis de responsabilização pessoal, solidária e ilimitada de sócios e administradores na gestão de sociedades com patrimônio líquido negativo (PL Negativo).
O fato de determinada sociedade apresentar PL Negativo em decorrência do resultado de suas operações, por si só, não gera impactos para seus administradores, os quais devem permanecer atuando de forma diligente, buscando reverter o quadro deficitário da sociedade, dentro do limite de seus poderes e de acordo com os preceitos legais aplicáveis — afinal, é assim que o administrador deve sempre agir, de acordo com seus deveres de diligência [1], lealdade [2] e informação [3], não agindo em conflito de interesses [4] com a sociedade administrada.
Por outro lado, uma vez constatado que o administrador agiu de forma a gerar os prejuízos para a sociedade e contribuir para situação deficitária da entidade, aplicar-se-ão as sanções previstas na Lei 10.406/02 (Código Civil) e na Lei 6.404/76 (Lei das S.A. ou LSA).
Na LSA, temos que:
"Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II – com violação da lei ou do estatuto.
§ 1º. O administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática. Exime-se de responsabilidade o administrador dissidente que faça consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, não sendo possível, dela dê ciência imediata e por escrito ao órgão da administração, no conselho fiscal, se em funcionamento, ou à assembleia-geral.
§ 2º. Os administradores são solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que, pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles.
§ 3º. Nas companhias abertas, a responsabilidade de que trata o § 2º ficará restrita, ressalvado o disposto no § 4º, aos administradores que, por disposição do estatuto, tenham atribuição específica de dar cumprimento àqueles deveres.
§ 4º. O administrador que, tendo conhecimento do não cumprimento desses deveres por seu predecessor, ou pelo administrador competente nos termos do § 3º, deixar de comunicar o fato a assembleia-geral, tornar-se-á por ele solidariamente responsável.
§ 5º. Responderá solidariamente com o administrador quem, com o fim de obter vantagem para si ou para outrem, concorrer para a prática de ato com violação da lei ou do estatuto."
Já no Código Civil, destaca-se que, na sociedade simples, os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e terceiros prejudicados por culpa no desempenho de suas funções, conforme previsão do artigo 1.016. Ainda, o administrador de sociedade simples que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes e, se houver prejuízo, por ele também responderá (artigo 1.017 do Código Civil).
O dispositivo legal mais relevante nesse sentido talvez seja aquele veiculado no artigo 1.009 do Código Civil pelo qual "a distribuição de lucros ilícitos ou fictícios acarreta responsabilidade solidária dos administradores que a realizarem e dos sócios que os receberem, conhecendo ou devendo conhecer-lhes a ilegitimidade".
No mesmo sentido, é o § 2º do artigo 201 da LSA, pelo qual a distribuição irregular de lucros de uma sociedade implica em responsabilidade civil e criminal dos administradores, razão pela qual eventual distribuição de lucros ocorrida em uma sociedade com PL Negativo acarretaria responsabilização pessoal dos administradores.
Dessa forma, uma vez que os administradores atuem diligentemente e dentro de seus poderes, não há que se falar de responsabilização pela mera existência de um PL Negativo como resultado de uma gestão e operações regulares. Vale destacar, para fins didáticos, alguns exemplos em que a doutrina societária [5] indica como possíveis casos de irregularidades na gestão de um administrador: (1) lucros distribuídos que não sejam decorrentes de balanço aprovado, (2) lucros distribuídos que superam os lucros distribuíveis, (3) distribuição de lucros disfarçada em contrato com sócio, (4) aquisição de ações/quotas para fins de distribuição de lucro, (5) distribuição com débito salarial [6], entre outros.
Impossibilidade de distribuição de lucros
O entendimento pela impossibilidade de distribuição de lucros não realizados advém do "princípio da intangibilidade do capital social", que visa, em última análise, proteger credores contra atos dos sócios/acionistas em prejuízo da solvência da empresa, que é transposto por série de normas da Lei das S.A., especialmente, pela regra que trata da distribuição de dividendos somente a partir de balanço que demonstre a existência de lucros [7], à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados ou de reserva de lucros.
De acordo com a Lei das S.A., as reservas de lucros consistem nas contas constituídas pela sociedade para apropriação de lucros, de modo que os lucros acumulados e reservas devem ser utilizados, obrigatoriamente, para absorção dos prejuízos do exercício. Considerando que somente existirá reserva de lucros quando não houver prejuízo acumulado, as sociedades com PL Negativo não terão reservas de lucros [8] e, portanto, não distribuirão resultados enquanto tal condição permanecer.
Visto que a sociedade não apurou lucro, não é possível distribuir dividendos aos seus sócios, posto que a situação financeira da sociedade é incompatível com a sua distribuição. O artigo 201 da LSA é claro ao prever tal vedação:
Art. 201. A companhia somente pode pagar dividendos à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de lucros; e à conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais de que trata o § 5º do artigo 17.
§ 1º. A distribuição de dividendos com inobservância do disposto neste artigo implica responsabilidade solidária dos administradores e fiscais, que deverão repor à caixa social a importância distribuída, sem prejuízo da ação penal que no caso couber. (g.n.)
Convém ainda apontar que, no Código Civil, há previsão similar acerca da responsabilidade dos administradores na situação de distribuição de lucros ilícitos ou fictícios, no artigo 1.009 [9], não sendo imputação de responsabilidade restrita somente aos sócios.
Ademais, a distribuição de lucros, em caso de resultados financeiros positivos, à título de dividendos aos sócios é isenta de imposto de renda, conforme previsão do artigo 10, caput, da Lei nº 9.249/1995:
"Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior."
Uma vez que a isenção se refere genericamente a "lucros calculados com base nos resultados apurados" há que se entender que estão abrangidos pela isenção os lucros distribuídos aos sócios em consonância com o resultado positivo obtido no exercício. Isto é, em regra, a distribuição de lucros não pode ser feita em prejuízo do capital, o que incluiria a situação de PL Negativo, de modo que nos casos em que as autoridades verificarem que os lucros não foram realmente alcançados, os administradores, nesses casos, poderão sofrer sanções societárias [10] e até penais [11], bem como eventuais reflexos tributários [12] que resultam na desqualificação do "dividendo" como se fosse uma "remuneração" ou um pagamento sem causa.
Responsabilidade dos sócios
Os sócios, por sua vez, somente são atingidos pela responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada em caso de desconsideração da personalidade jurídica, uma vez identificadas as hipóteses que a autorizam tal qual previsto no artigo 50 do Código Civil, que aqui transcrevemos:
"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º. Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º. Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º. O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º. A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º. Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica." (g.n.)
Como se observa do artigo 50 supra, a responsabilização do sócio para além dos bens e direitos detidos pela pessoa jurídica do qual ele é sócio somente se justifica quando há abuso da personalidade jurídica, o que só pode ser decretado por decisão judicial e pressupõe (1) desvio de finalidade – i.e., prática de atos ilícitos ou prática lesiva aos credores; ou (2) confusão patrimonial entre os direitos e obrigações do sócio e da sociedade.
Ainda assim, convém ressaltar que quando uma sociedade apresenta PL Negativo, certas repercussões societárias emergem. Por exemplo, pelo artigo 111 da LSA, "as ações preferenciais sem direito de voto adquirirão o exercício desse direito se a companhia, pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios consecutivos, deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus, direito que conservarão até o pagamento, se tais dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam pagos os cumulativos em atraso".
Conclusões
Em suma, não obstante inexistir norma que atribua a responsabilização pessoal, solidária e/ou ilimitada a sócio ou administrador de sociedade exclusivamente em razão da mesma possuir PL Negativo, é de suma importância se atentar para as hipóteses em que, ao reduzir capital social ou entregar caixa de qualquer outra forma ao sócio ou administrador quando inexistir lucros correntes ou lucros acumulados para tanto, diversas implicações de natureza cível e societária (bem como tributária e criminal) podem surgir de tal procedimento. Isso porque, societária e contabilmente, uma sociedade com PL Negativo não pode distribuir lucros, pois não se distribui o que não existe.
No próximo (e último) artigo da série, trataremos sobre a incorporação de sociedades com PL Negativo no Brasil.
Continua parte 4
[1] Lei nº 6.404/76: "Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa (…)".
[2] Lei nº 6.404/76, art. 155.
[3] Lei nº 6.404/76, art. 157.
[4] Lei nº 6.404/76, art. 156.
[5] SAAD. Gustavo Diniz. Curso de Direito Comercial. – 1ed. São Paulo: Atlas, 2019. p.134.
[6] Decreto Lei nº 368/68. Art. 1º – A empresa em débito salarial com seus empregados não poderá: I – pagar honorário, gratificação, pro labore ou qualquer outro tipo de retribuição ou retirada a seus diretores, sócios, gerentes ou titulares da firma individual; II – distribuir quaisquer lucros, bonificações, dividendos ou interesses a seus sócios, titulares, acionistas, ou membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos.
[7] Nesse sentido, o art. 202, III da LSA prevê que os lucros registrados na reserva de lucros a realizar deverão ser acrescidos ao primeiro dividendo declarado após a realização, se não tiverem sido absorvidos por prejuízos em exercícios subsequentes .
[8] LSA: Art. 182. A conta do capital social discriminará o montante subscrito e, por dedução, a parcela ainda não realizada. § 4º Serão classificados como reservas de lucros as contas constituídas pela apropriação de lucros da companhia.
[9] "Art. 1.009. A distribuição de lucros ilícitos ou fictícios acarreta responsabilidade solidária dos administradores que a realizarem e dos sócios que os receberem, conhecendo ou devendo conhecer-lhes a ilegitimidade".
[10] Código Civil: Art. 1.059. Os sócios serão obrigados à reposição dos lucros e das quantias retiradas, a qualquer título, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se distribuírem com prejuízo do capital.
[11] Código Penal: Art. 177 – Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembléia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo: § 1º – Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: I – o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembléia, faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo; (…)
[12] Lei nº 8.981/95, art. 61 determina a requalificação como "pagamento sem causa" – que será analisado em maiores detalhes mais a frente neste estudo.
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