Opinião

O afastamento do Brasil do civil law e a aproximação diária do common law

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20 de setembro de 2022, 20h32

Uma das primeiras aulas ministradas no curso de Direito consiste naquela que trata da distinção entre os ordenamentos jurídicos baseados na doutrina do civil law e do common law, sendo que o Brasil é sempre lembrado por sua essência romano-germânica e os Estados Unidos por sua origem anglo-saxã. Ainda que com razão, a realidade tem se modificado diariamente, uma vez que muito tem se importado do ordenamento jurídico norte-americano para o brasileiro. As últimas décadas foram marcadas por mudanças substanciais do direito processual, especialmente em relação à formação de precedentes pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. O Brasil, desde sua independência, tem refletido em suas leis a realidade vivida nos Estados Unidos, especialmente quando se analisa o Poder Público, como por exemplo o modelo de República, Federação, Poder Legislativo bicameral, presidencialismo, Justiça Federal e controle difuso de constitucionalidade [1].

Enquanto, por muitos anos, o STF exerceu sua função de forma reativa, os últimos anos foram marcados pela sua atuação prospectiva, especialmente com o advento das súmulas vinculantes, da repercussão geral e da "positivação do sistema de precedentes" realizada pelo Código de Processo Civil de 2015. Passou-se a observar que a Corte deixou de analisar casos de forma individual e começou a proferir decisões que serviriam como solução para futuros litígios. Essa função ficou ainda mais evidente com o advento do CPC/15, o qual estabeleceu em seu artigo 926 a obrigatoriedade dos tribunais uniformizarem sua jurisprudência, a fim de mantê-la íntegra, coerente e estável.

Em um dos últimos atos como presidente do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Luiz Fux editou a Recomendação n° 134/2022, a qual trouxe uma série de disposições acerca dos precedentes judiciais e da função dos magistrados na instauração e enrijecimento do sistema de precedentes no ordenamento jurídico. Destaca-se da Recomendação o seu artigo 4°, o qual aborda a necessidade dos magistrados contribuírem com "o bom funcionamento do sistema de precedentes legalmente estabelecido (…) observando e fazendo observar as teses fixadas pelos tribunais superiores". Com base nessa disposição, observa-se dois pontos de grande relevância: 1) o reconhecimento do Poder Judiciário em relação à instauração do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro; e 2) a função prospectiva dos tribunais superiores ao tratarem sobre determinada matéria.

A partir disso, fica ainda mais evidente que as decisões de tais Cortes não surtem efeitos somente interpartes, mas também traduzem o entendimento dos ministros em relação àquela matéria. Sob a ótica do artigo 926 do CPC/15, a uniformização e coerência da jurisprudência obrigam que os magistrados de primeiro e segundo grau se atenham àquele entendimento, a fim de aplicá-lo para os julgamentos de casos com similitude fática, sob pena de incorrer em desigualdade processual e violação da insegurança jurídica. O artigo 8° da Recomendação aborda expressamente a necessidade de observância dos precedentes, com vistas a não violar tais garantias processuais.

Contudo, a discricionariedade jurídica dos magistrados não foi retirada pela referida Recomendação, uma vez que em seu artigo 10 há expressa previsão referente à possibilidade do magistrado não aplicar o entendimento firmado pelos tribunais superiores, desde que haja "menção expressa, na decisão, sobre as razões que levam à necessidade de afastamento ou ao acolhimento dos precedentes trazidos pelas partes". Ou seja, aqui se observa na prática a aplicação de uma das ferramentas oriundas do common law, o distinguishing, ou também conhecido com distinção. Nada mais é do que o ato do magistrado realizar um cotejo entre a natureza fática do precedente paradigma e do caso em análise.

Todavia, conforme se observa na recomendação, tal feita exige fundamentação expressa acerca da sua não aplicação, não sendo juridicamente viável a mera insatisfação em relação a determinado entendimento suficiente para sua não aplicação. Essa distinção exige uma fundamentação ainda mais robusta quando se trata de precedente considerado qualificado, ou seja, aqueles de natureza vinculante.

A transformação no modelo decisório dos tribunais superiores, especialmente do STF, tem gerado mudanças institucionais e processuais no âmbito da Corte. Tal constatação é observada na doutrina de Luiz Guillherme Marinoni, o qual indica que tal transformação trouxe consequência sobre o modelo de julgamento dos recursos e sobre o comportamento esperado dos julgadores [2]. Tal feita tem aproximado o Brasil diariamente à doutrina do common law e garantido ainda mais valoração aos precedentes formados pelo STF e pelo STJ.

A aproximação do direito brasileiro ao common law tem sido, até o presente momento proveitosa, uma vez que a litigiosidade tem a tendência de reduzir, especialmente no âmbito dos tribunais superiores, os quais, por meio da sua jurisprudência defensiva, têm deliberado acerca de casos de relevância coletiva, e não somente casos com impactos individuais. Esse passo ficou ainda mais evidente com a EC n° 125/2022, a qual exigiu que os requerentes apresentassem a relevância de suas demandas ao interpor recurso especial perante o STJ. Os passos dados muito se traduzem no ideal de que tribunais superiores devem agir como cortes de precedentes, e não tribunais de cassação. Em um primeiro momento, tal feita tem se mostrado positiva. Há de se observar como a nova recomendação e demais disposições legislativas vão impactar na realidade processual brasileira.


[1] SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: Principais Decisões. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 3-4.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: Precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 26.

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