Opinião

Rápidos como um raio: Benjamin Cardozo e Herculano de Freitas

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

14 de setembro de 2022, 12h01

Como nos textos anteriores (aqui, aqui e aqui), buscamos uma comparação contextual entre juízes imprescindíveis para a construção institucional judicante, espelhando um justice da Suprema Corte americana e um ministro do Supremo Tribunal Federal através de alguns detalhes biográficos e/ou decisões relevantes.

Paulo do Valle Junior/Reprodução
Uladislau Herculano de Freitas, em 1928
Paulo do Valle Junior/Reprodução

Neste momento, nossa visão se volta para Benjamin Nathan Cardozo (1870 – 1938) e para Uladislau Herculano de Freitas (1865 – 1926). O que os une é uma composição de quatro elementos: a) breves polêmicas acadêmicas, embora distintas; b) um curto período de permanência na Suprema Corte; c) a relevância de suas atuações jurídicas serem anteriores à assunção do cargo de Juízes da Corte Suprema; e, d) um livro extremamente relevante para a formação de gerações de juristas, fruto de preleções, aulas ou palestras.

Acerca da breve "polêmica" acadêmica de Cardozo, podemos observar que ele iniciou o curso de Direito quando possuía a duração de apenas dois anos, mas no momento em que o colegiado do curso, na Columbia Law School, decidiu aumentar a duração para três anos, Cardozo não se submeteu à mudança, e saiu sem conclui-lo, embora viesse a receber, muitos anos depois, o grau de doutor honoris causa [1].

Sua produção acadêmica é relativamente vasta, com textos criativos e distintos, como quando indicou a criação de um "Ministério da Justiça" ("ministry of justice"[2], uma espécie de pequeno comitê que observaria o direito aplicado e sugeriria mudanças, algo que não se confundiria com o cargo de Secretário de Justiça, tradicional na estrutura política americana.

Ou quando escreveu clássico texto sobre "direito e literatura" [3], ou quando escreveu sobre os paradoxos na ciência jurídica [4]. Contudo, nada se compara ao impacto de seu grande livro The Nature of the Judicial Process" [5], com uma clássica tradução entre nós, de Leda Boechat Rodrigues, como A Natureza do Processo e a Evolução do Direito [6], influenciando gerações de juristas, especialmente por ser fruto de suas preleções ministradas na Universidade de Yale (as famosas Storrs Lectures).

Era filho de Albert e Rebecca Nathan Cardozo, descendentes de judeus sefarditas, cujos antepassados foram perseguidos pela Inquisição e acabaram fugindo de Portugal para a Holanda, depois para a Inglaterra, e, por fim, acabaram nos Estados Unidos da América.

Cardozo foi indicado em 1932 pelo presidente Herbert Hoover para suceder ao grande Oliver Wendell Holmes Jr na Suprema Corte, até sua morte, ocorrida em 1938, numa judicatura bastante breve, marcada pelo fato de integrar, ao lado dos justices Louis Brandeis e Harlan Stone, o grupo que ficou conhecido como Os Três Mosqueteiros, pertencentes a ala mais liberal da corte, em apoio constante às políticas do New Deal, de Franklin Delano Roosevelt, em oposição ao grupo chamado de "Os Quatro cavaleiros do Apocalipse", um grupo da ala conservadora, composta pelos justices Pierce Butler, James Clark McReynolds, George Sutherland, e Willis Van Devanter [7].

Bernard Schwartz observou: "o destaque de Cardozo na jurisprudência americana não se dá com base em seu serviço na Suprema Corte" [8], especialmente devido a sua intensa atividade jurídica anterior, ajudando a consolidar e adaptar o common law aos designíos mais modernos da sociedade americana na era pós-industrial, a ponto de Arthur Goodhart afirmar que Cardozo será sempre lembrado por ser "o grande intérprete do common law[9].

A seu turno, na Suprema Corte brasileira, Herculano de Freitas também foi breve, porém intenso. A chamada do jornal O Paiz, de sábado, 15/5/1926, registrava: "Faleceu ontem o ministro Herculano de Freitas", dando a "repercussão da morte do ilustre brasileiro no país e no estrangeiro", que ainda mencionou: "foi no país uma das figuras de maior relevo mental e de grande valor social".

Tratou-se de verdadeira comoção geral, nacional e internacional. Se fazia acompanhar da caricatura de Gerson, e mencionava as honras fúnebres concedidas por diversos órgãos: STF, Faculdade de Direito de São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, Estado de São Paulo, Centro Acadêmico XI de Agosto, Conselho Nacional do Trabalho, Departamento Nacional do Ensino, Presidência da República, Senado Federal, Câmara dos Deputados, e, ainda, nos centros forenses e universitários da Argentina, conforme noticiado em Buenos Aires por El Diário, Última Hora, e La Razón.

Herculano de Freitas ficou pouco mais de três meses no Supremo Tribunal Federal, empossado em 28/1/1926, após indicação do presidente Arthur Bernardes, mas não chegaria a analisar o rumoroso Recurso Criminal nº 556 (caso do encouraçado São Paulo, relacionado ao estabelecimento do conceito de crime político), julgado por maioria de votos em 21/5/1926, ou seja, sete dias após seu falecimento.

Foi indicado para suceder ao ministro João Luiz Alves, que igualmente ocupou o cargo por um breve período (entre janeiro e novembro de 1925), e acabou sucedido pelo ministro Heitor de Sousa, que por sua vez seria sucedido por outro grande ministro, o jurista e literato Rodrigo Octavio.

Nascido em 25/11/1865 na cidade de Arroio Grande-RS, o gaúcho Herculano de Freitas muito cedo ficou órfão de pai, empregando-se como caixeiro de loja de armarinho em Pelotas, matriculando-se depois na Escola Militar de Porto Alegre, da qual seria desligado por seu envolvimento no movimento revolucionário.

Em 1965, durante o centenário do ministro Herculano de Freitas, o Deputado Cunha Bueno mencionaria em discurso a mudança de cidade, para frequentar o curso Anexo e depois a Faculdade: "seguiu para São Paulo com 18 anos (…) Cursou a Faculdade do Largo São Francisco, tendo durante um ano, na Faculdade do Recife, feito dois em um, obtendo distinção em todos os exames", formando-se na turma de 1888 [10].

A história narra que Herculano interrompeu o curso na Faculdade de Direito de São Paulo quando estava no terceiro ano, transferindo-se para a Faculdade de Direito do Recife, em solidariedade contra a injustiça praticada pela congregação contra um aluno, retornando posteriormente para concluir o curso em São Paulo [11].

Sua "polêmica" acadêmica reside em fato distinto do episódio de Cardozo. Tratava-se, antes, de ter ingressado como professor na Faculdade de Direito de São Paulo por Decreto e sem concurso, junto com outros colegas, que entretanto renunciaram ao cargo de professor em decorrência da repercussão ruim junto aos alunos, pois estes temiam pela qualidade de ensino, sem que tal fato afetasse Herculano de Freitas, que permaneceu inabalável.

Casa-se com Clotilde Glicério Cerqueira, filha do republicano histórico Francisco Glicério de Cerqueira Leite. Segundo o mesmo Cunha Bueno, Herculano de Freitas se empolga profundamente com o republicanismo: "Ao lado de Júlio Mesquita e Alfredo Pujol empenha-se com tal desassombro na propaganda pelo novo regime, que Glicério os apelidara de 'Os Três Mosqueteiros'", tal como Cardozo, e seria o responsável por proclamar a república em Franca e também em Ribeirão Preto.

Sua contribuição seria bastante relevante, especialmente na política, antes de assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi ele, anteriormente, promotor Público em Ribeirão Preto/SP, antes de ser nomeado chefe de Polícia no Estado do Paraná, para logo em seguida ser nomeado presidente do Estado do Paraná, além de ser também o laureado autor do anteprojeto da Primeira Constituição deste Estado.

Foi ainda vereador por São Paulo, deputado estadual, senador estadual, além de secretário-geral do governo Cerqueira César. Em 1915 foi eleito diretor da Faculdade de Direito de São Paulo, ocupando o cargo durante longos anos (1916-1925).

Entre 1913 e 1914 foi ministro da Justiça de Hermes da Fonseca. Em 1918, foi nomeado secretário da Justiça e da Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Conduziu, junto com outros juristas, e, a pedido do governo republicano, a análise do destino dos bens dotais de D. Isabel e de D. Leopoldina em 1893 [12], ele que era Lente por Decreto desde 1890 e catedrático desde 1891 [13]. Também foi o responsável por conduzir o projeto de Reforma Constitucional, levado à cabo em 1925, durante a Presidência Arthur Bernardes, convencendo o Congresso Nacional a aprovar uma PEC num momento em que não seria juridicamente possível, durante o Estado de Sítio, com um argumento simples, porém poderoso: em tempos normais é que não se precisa mudar a Constituição, mas em tempos conturbados sim.

Seu grande livro, "Direito Constitucional" [14], é fruto de suas aulas na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, compiladas por seus alunos, embora tenha produzido muitos outros textos de relevo sobre a própria reforma constitucional [15], sobre os Princípios gerais do Direito Público [16] e a Intervenção Federal [17]. Sua grande contribuição judicante perante o STF, embora num curto período, foi ajudar a delinear com brilhantismo uma questão sobre competência [18].

O senso comum costuma afirmar que não se sabe o que vem primeiro, se o relâmpago ou o trovão, a luz intensa ou o barulho ensurdecedor. Sabe-se apenas que a rapidez engana os olhos, mas não retira a beleza magnificente do fenômeno.

Benjamin Cardozo e Herculano de Freitas foram também rápidos como um raio, vivos na memória e nas marcas dos escritos que os imortalizaram. Atravessaram as nuvens e caíram apenas uma vez no epicentro da Suprema Corte de seus países, permanecendo como recordação e nostalgia. Aliás, o ministro Muniz Barreto se referiu ao ministro Herculano de Freitas como "um meteoro fulgurante" [19]. A figura também serve a Benjamin Cardozo, assim como serviu a ambos o apelido por integrarem o grupo chamado de "Os Três Mosqueteiros", por motivos diversos.


[1] LEVY, Beryl Harold. Realist Jurisprudence and Prospective Overruling. University of Pennsylvania Law Review, vol. 109, 1960, p. 10. Confira-se a nota de rodapé n. 31.

[2] CARDOZO, Benjamin N. A Ministry of Justice. Harvard Law Review, 12 Vol. 35; Iss. 2, 1921.

[3] CARDOZO, Benjamin N. Law and Literature, Yale Law Review, 1925.

[4] CARDOZO, Benjamin N. The Paradoxes of Legal Science. New York: Columbia University Press. 1927.

[5] CARDOZO, Benjamin N. The Nature of the Judicial Process. New Haven: Yale University Press, 1921.

[6] CARDOZO, Benjamin N. A Natureza do Processo e a Evolução do Direito. Trad. Leda Boechat Rodrigues. São Paulo: Editora Nacional de Direito, 1956.

[7] WHITE, G. Edward. The Constitution and the New Deal. Harvard University Press, 2000, p. 81.

[8] SCHWARTZ, Bernard. Supreme Court Superstars: The Ten Greatest Justices, Tusla Law journal, vol. 31, 1995.

[9] GOODHART, Arthur. Five Jewish Lawyers of the Common Law. New York: OUP, 1949, p. 55.

[10] BUENO, Cunha. [Discurso]. Sessão Ordinária da Câmara Dos Deputados, 198., 1965, Brasília. [Ata da] 198ª Sessão, em 30 de novembro de 1965: [homenagem pelo transcurso do centésimo aniversário de nascimento do ex Deputado Herculano de Freitas]. Diário do Congresso Nacional, 1 dez. 1965.

[11] LOBO, Candido. Uadislau Herculano de Freitas. Poliantéia de Herculano de Freitas. São Paulo, 1965, p. 49

[12] FREITAS, Uladislau Herculano de; et all. Bens dotaes de D. Isabel e de D. Leopoldina. Revista Da Faculdade de Direito de São Paulo, V. 1, 1893.

[13] O EDITOR. Congregação dos lentes da Faculdade de Direito de São Paulo em 1894. Revista Da Faculdade de Direito de São Paulo, V. 2, 1894.

[14] FREITAS, Uladislau Herculano de. Direito Constitucional. São Paulo: E/A, 1923.

[15] FREITAS, Uladislau Herculano de. Reforma constitucional. Revista de direito público e de administração federal, estadual e municipal, v. 10, nº 2, p. 115-120, ago. 1925.

[16] FREITAS, Uladislau Herculano de. Princípios gerais do direito público. Revista do Supremo Tribunal Federal, nº 55, p. 543-565, ago. 1923.

[17] FREITAS, Uladislau Herculano de. A intervenção federal nos Estados. Revista do Supremo Tribunal Federal, nº 56, p. 511-542, set. 1923.

[18] FREITAS, Uladislau Herculano de. Intelligencia do artigo 60, letra d da Constituição da República. Revista de Crítica Judiciária, v. 3, p. 395-411, maio 1926. Acórdão do Ministro Herculano de Freitas, relator do processo, acompanhado de comentário do Sr. Abelardo Lobo.

[19] BARRETO, Muniz. [Discurso]. Sessão Ordinária do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, 24., 1926, Rio de Janeiro. [Ata da] 24ª Sessão, em 14 de maio de 1926: [comunicação do falecimento do senhor ministro Herculano de Freitas]. Diário da Justiça, p. 1759, 15/05/1926.

Autores

  • faz pós-doutoramento em Direito (Università degli Studi di Perugia, Univali e UnB). É doutor e mestre em Direito. Professor do programa de mestrado em Direito do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal). Professor da pós-graduação em "Direito e Poder Judiciário" da Escola Judicial de Goiás do TJ-GO. Membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais). Membro da Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal). Membro da ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil). Membro da ABrL (Academia Brasiliense de Letras). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Advogado.

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